“Eu vou ligar ao Alex”, ouve-se a ecoar na praça vazia de gente e de barulho. As conversas alegadamente privadas tornam-se públicas com a ajuda do vazio: o aeroporto de Lisboa está deserto como nunca antes, portas fechadas, luzes que piscam – as avariadas, no teto e as das caixas de ATM a chamar a atenção de ninguém. O silêncio é cortado pelo som do ar condicionado, num espaço onde estão cinco pessoas. Aqui, na praça central do aeroporto, onde a FNAC, o Starbucks ou a TUMI costumam entreter as centenas, os milhares de viajantes antes de se dirigirem às portas de embarque, multiplicam-se somente os cartazes a anunciar “que bom vê-lo outra vez”, os dispensadores de desinfetantes, as marcações de distanciamento social nos bancos e as portas fechadas. Nesta madrugada, pelo menos, os funcionários do aeroporto são duas vezes mais que os passageiros que aguardam para levantar voo.
Até agora, foi possível reduzir o contacto ao mínimo essencial. Cartão de embarque digital, passagem na segurança de forma rápida e eficaz – com direito a medição de temperatura – e distanciamento social garantido. Na porta de embarque, os funcionários esforçam-se para que os passageiros não se juntem demasiado.
As marcas no chão facilitam o processo, e são constantes as passagens dos funcionários a limpar superfícies e a garantir que tudo está desinfetado. Dentro do avião, toalhitas desinfetantes são entregues à entrada, e apesar de o voo estar praticamente cheio, há filas em que é possível manter um banco vazio entre passageiros. Não há revistas de bordo, o serviço de refeições está reduzido a um mínimo essencial e viagem faz-se como sempre. Mas de máscara, claro – no caso, a MO Ad-Tech, certificada como a única que inativa o novo coronavírus, e totalmente made in Portugal.
Aliás, este foi o maior desafio de toda a viagem: praticamente 12 horas seguidas sem poder retirá-la. Isso e preencher o impresso fornecido pela tripulação, com as recomendações do Governo alemão sobre a presença em território germânico: sem grandes detalhes sobre que cuidados se deve ter ou que entidades contactar em caso de necessidade, ficamos apenas muito bem avisados sobre em que ilegalidades estamos a incorrer se viermos de alguma das áreas de risco e não cumprirmos a quarentena obrigatória. Mas seguimos.
Alemães dispensam medidas de segurança
O segundo maior desafio? Tentar não tocar em nada no aeroporto de Frankfurt – a escala possível num voo para Bolonha, numa altura em que existem ainda poucas opções em termos de viagens aéreas. Foi a grande surpresa no que toca a falta de cuidado: no aeroporto inteiro, apenas um dispensador de desinfetante, à porta do Duty Free.
Durante pelo menos as três horas a que a escala obrigou, nem uma vez as superfícies – mesas, bancos, o que seja – foram limpas ou desinfetadas, apesar de o aeroporto estar praticamente cheio. A máscara, apesar de obrigatória, é ignorada por vários passageiros, sobretudo os alemães, que também dispensam as distâncias recomendadas. Encontrar um espaço que garanta estarmos a dois metros de qualquer outro passageiro não é tarefa fácil, e comprar algo parece absolutamente desaconselhado tendo em conta a falta de cuidado óbvia: também os balcões não são desinfetados regularmente, muito menos os terminais de multibanco. O embarque pode ser, facilmente, adjetivado de caótico.
Já em Bolonha, o caso muda de figura. Entrega-se a declaração de que não temos sintomas, de que não testámos positivo para a Covid-19 e de que não estivemos com alguém que saibamos ter contraído a doença, e informamos o lugar onde vamos estar alojados durante a estada, bem como um contacto. Em troca, recebemos um folheto com o que devemos fazer em caso de apresentar alguma sintomatologia relacionada com a Covid-19. Antes de sair do aeroporto, controlo de temperatura – uma medida que se repete nas estações de comboios – e nada de contacto com os motoristas dos autocarros, por exemplo: os bilhetes compram-se em máquinas automáticas e a validação é feita em terminais digitais. Ninguém se pode sentar em bancos contíguos a menos que estejam a viajar juntos, a máscara e os desinfetantes já se tornaram paisagem.
Módena, o retrato da ausência
Sob um escaldante sol que marcou os dias praticamente todos, Módena é o epíteto do abandono. Nesta cidadezinha ocre com cerca de 185 mil habitantes e uma luz facilmente comparável à de Lisboa, as ruas, geralmente pouco cheias, estão agora desertas. As portas dos estabelecimentos estão fechadas, e muitas delas possivelmente não voltarão a abrir. As igrejas e museus reduziram os horários de visita e a lotação máxima – globalmente as visitas caíram mais de 50% em termos homólogos, segundo nos informa o Turismo da cidade.
E claro, só se ouve italiano nas ruas, numa altura em que o turismo internacional é praticamente inexistente. “Temos que ter paciência”, atira o taxista de meia idade que me recebe com um sorriso rasgado. “Não há turistas, mas também não há trabalhadores nas ruas. Ninguém. Temos de ter paciência”, repete como que a tentar convencer-se. A região foi fortemente afetada pela pandemia, a indústria automóvel, profícua n região, ainda não tem uma estratégia clara para o médio prazo, as empresas mantêm os funcionários em teletrabalho quando possível, a Universidade de Bolonha está de portas fechadas.
As montras das lojas de rua que permanecem abertas estão parcialmente tapadas com enormes cartazes a anunciar reduções de não menos de 30% – seja em vestuário, utensílios de cozinha, sapatos ou produtos de beleza. Os restaurantes parecem ser os que vão enfrentando melhor a pandemia, mas apenas os mais tradicionais. É o caso do Ristorante da Danilo, com quase 50 anos de história, que se se enche à hora de almoço e já tinha o livro de reservas completo para o jantar de uma quinta-feira tão normal quanto outra qualquer. Segundo os funcionários, o movimento tem sido constante, apesar dos constrangimentos – e ainda bem, que qualquer um dos pratos vale muito a pena.
O mesmo registam as pequenas esplanadas e cafés junto à Catedral de Módena, que se enchem de gente ao final da tarde para um copo de vinho e uns petiscos. Todos os dias as esplanadas se encheram – com a devida ressalva de que só podem ter metade das pessoas que antes. De qualquer forma, é um pequenino sinal de vitalidade numa economia desesperada (o PIB italiano escorregou 12,4% no segundo trimestre do ano, face aos meses anteriores).
É certo que muitos deles tiveram de adotar as entregas ao domicílio e o take-away para continuar a respirar, mas houve mesmo que aproveitasse a oportunidade para levar a criatividade mais longe. Foi o caso de Massimo Bottura, o conceituado chef italiano que para além da [reconhecidíssima] Osteria Francescana, detém também o Franceschetta 58, que passou a sugerir uma espécie de kits prontos a cozinhar: basicamente cada dia disponibilizava alguns pratos com ingredientes frescos que eram entregues semi preparados. O objetivo era que a receita fosse terminada pelo cliente, em casa, numa espécie de refeição confecionada a 4 mãos. E mesmo agora, que o espaço já reabriu, continua a ser possível optar por este menu. “Temos de permanecer muito otimistas e faze tudo o que estiver ao nosso alcance com o que temos. Todos nós aprendemos isso durante a quarentena”, referiu Bottura ao Fathom, recentemente.
Na mesma ocasião, o dono de um dos melhores restaurantes do mundo pediu ainda aos europeus que se mantenham unidos numa altura em que as fronteiras do Velho Continente continuam fechadas aos EUA, de onde vêm alguns dos principais consumidores de alta gastronomia.
“Nascemos para abrir a porta e dizer bem-vindo. Bom dia. Tenha um ótimo almoço. Aproveite. Somos uma comunidade europeia e precisamos de ficar juntos. Precisamos ficar juntos! Eu acredito profundamente na comunidade europeia “, afirmava Bottura.
O tom otimista é secundado pela guia nos recebe no topo da Torre Ghirlandina, de onde, lá do alto, se avista uma Módena vazia de pessoas. “Não temos quase recebido turistas internacionais, mas esperamos que melhore com o regresso de alguns voos. Pelo menos teremos os europeus”, contava-nos. “No ano passado, ao sábado, tínhamos cerca de 500 visitantes. Este ano não chegam aos 100”, lamentava, antes de atirar com um sorriso que acredita “que vai melhorar. Tem de melhorar!”
Os pedidos dos comerciantes de vários setores são simples e vão-se repetindo: “obrigada por terem vindo, por terem confiado em nós. Voltem sempre e, se puderem, escrevam no Trip Advisor como correu a experiência. É importante as pessoas perceberem que já estamos novamente abertos e com todas as medidas de segurança”.
E para nós, foi importante perceber que nos sentimos tão seguros em terras de Luciano Pavarotti como em Portugal. É que apesar de as viagens ainda tardarem a retomar uma qualquer espécie de normalidade, é reconfortante ter a garantia de que podem saber tão bem – ou quase tanto – quanto antes.