Onde antes havia casas, há escombros. Onde havia terra seca, continua a haver água. As tendas passaram a fazer parte da paisagem, numa espécie de instalação que abriga vivos e que tarda a fazer esquecer os mortos.
Cerca de 100 mil pessoas continuam a viver em abrigos provisórios, praticamente um ano depois de o Idai lhes ter levado as casas, o sustento e, a muitos, a família. Recentemente, o primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho Rosário, prometeu a cerca de mil famílias do campo de Mandruzi que o Executivo continuará a empreender esforços para prover materiais resistentes para que as pessoas possam construir as suas casas. A verdade é que a História de Moçambique conta-se agora antes do Idai e depois do Idai, uma espécie de marco que já queria mais memória e menos presença no dia a dia de uma população ainda profundamente traumatizada.
“As pessoas estão quebradas, animicamente”, lamenta Pedro Monjardino, coordenador da Médicos do Mundo Portugal (MdM) em Moçambique. “Estão abaladas, destroçadas, sem ânimo nem o vislumbre de um futuro melhor em breve. Muitas empresas fecharam, criando um aumento de desemprego. E o número de portugueses na Beira [onde a comunidade nacional era das mais consideráveis do país] baixou significativamente”, resume o responsável, que integrou a Operação Embondeiro (ver no final do texto), a maior criada por Portugal para responder à tragédia.
O Idai, que atingiu a região da Beira a 14 de março de 2019, afetou 1,5 milhões de pessoas e a contagem dos óbitos parou em redor dos 600, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo quantas vidas se perderam naqueles dias.
Pobreza, fome e resiliência
A província de Sofala, a mais atingida pelo ciclone, era, até 2018, responsável por cerca de 10% do PIB de Moçambique. Durante duas décadas, a economia nacional cresceu a um ritmo médio de quase oito pontos percentuais ao ano, até sofrer um abrandamento em 2016: a descida do preço das matérias-primas, a inflação, novas regras tributárias e a quebra do investimento direto penalizaram as contas da antiga colónia portuguesa, precisamente na mesma altura em que foi descoberto que o país tinha cerca de 1,4 mil milhões de dólares em “dívidas ocultas”, o que lhe retirou o apoio financeiro do Fundo Monetário Internacional.
Num país em que 60% da população é pobre, um ciclone com a dimensão do Idai só poderia significar três coisas: morte, fome e mais pobreza. E, claro, uma quebra na economia, com o Produto Interno Bruto a escorregar de 4,7% para 2,4%, segundo contas do Banco Mundial.
Entre estradas alagadas, pontes caídas, pontos de água destruídos, latrinas desfeitas, unidades de saúde em ruínas e escolas sem telhado, as várias ONG que se mantiveram no terreno após a fase de emergência do ciclone têm concertado esforços com as autoridades nacionais para conseguir reconstruir a região.
“O governo moçambicano está a fazer um bom trabalho”, começa por dizer Carlos Almeida, coordenador da ONG Helpo em Moçambique, em declarações à VISÃO.
Mas “as colheitas [de março] estão comprometidas. Há areia por todo o lado nas zonas férteis, os terrenos estão saturados e o ano de 2020 não vai correr bem. Vai ser muito difícil”. As sementeiras deste mês, as primeiras desde o ciclone, seriam fundamentais para aplacar a fome de uma população que vive, sobretudo, de agricultura de subsistência. No entanto, as chuvas torrenciais que se fizeram sentir no final de dezembro, e novamente no início de fevereiro, destruíram as poucas culturas que pareciam estar a conseguir vingar no fustigado solo da região. Os preços dos alimentos no país têm disparado nos últimos meses, e nem a distribuição de sementes por parte de ONG e Governo parece estar a fazer efeito.
Há, segundo a ONU, cerca de dois milhões de pessoas em risco de passar fome até março. “No Dombe, as pessoas estão efetivamente a passar mal. Estão protegidas, estão a viver em lugares onde não há riscos de alagamento, mas vai ser um ano muito complicado. Acho que vai ser um ano de grande dificuldade”, repete o responsável, regressado recentemente de uma visita às zonas mais afetadas pelo ciclone. O Dombe, na província de Manica, e a norte do rio Buzi, foi um dos distritos mais afetados na ocasião. E é um dos que mais sofrem para se reerguerem.
Reconstrução a passo
A reconstrução dos edifícios públicos e particulares continua a marcar passo: primeiro foi a escassez de materiais, depois os preços significativamente inflacionados por via da procura e, mais tarde, os caprichos da Natureza, com a estação das chuvas a mostrar-se mais agressiva do que seria expectável.
“Apenas 10% das escolas que foram afetadas estão reabilitadas ou em fase de reabilitação. Muitas das construções estão a começar só agora”, revela Marta Monteiro, coordenadora de projetos da Fundação Gonçalo da Silveira, que está no terreno para reconstruir duas escolas, em comunidades com as quais trabalha há vários anos, lembrando que o ano letivo começou em fevereiro e que muitas escolas começaram a ter aulas nas mesmas condições do ano passado: sem telhado, algumas, severamente danificadas, outras.
É, aliás, nas escolas que Marta tem conseguido confirmar aquilo que no início lhe pareceu apenas uma sensação: o trauma ainda demasiado visível das populações. “Sente-se a tensão em pessoas de todas as idades. Têm ainda muito receio. Falam do ciclone chamando-lhe ‘ele’, como se fosse uma entidade. Nas várias ações de apoio psicossocial que fizemos, notámos que os diretores da província queriam falar sobre o ciclone. Há muitos casos de alunos e professores que ainda estão muito traumatizados”, lamenta.
Durante algumas semanas, várias ONG disponibilizaram equipas de psicólogos para prestarem apoio às populações logo depois do ciclone. Mas à medida que o tempo vai passando, as equipas vão abandonando o país, ou por falta de verba ou porque é necessário acorrer a outras crises humanitárias.
E em Moçambique, as famílias que passaram três dias em cima de árvores ou de telhados, as mães que viram os filhos serem-lhe arrancados pela força do vento e das águas e as crianças que perderam todos os familiares tentam seguir com as suas vidas. “As pessoas estão muito satisfeitas por estarem vivas”, salienta Carlos Almeida. Mas “ainda há dias, uma mãe me contava que o filho acorda todas as noites a pedir que ela o salve… É uma tragédia silenciosa. De qualquer forma, este povo tem uma resiliência que me espanta todos os dias. Estão contentes por estarmos com eles, por lhes darmos importância e, apesar de saberem que vai continuar a ser apertado, estão a olhar para a frente”, anima-se. O responsável lembra ainda que passou recentemente pelas novas 69 casas construídas pela Cáritas Internacional numa das zonas devastadas pelo Idai, o que o “encheu de otimismo”.
Para quem está no terreno há muitos anos, é fundamental encontrar alento nas pequenas conquistas. Mesmo que elas não sejam suficientes para compensar o que ainda falta fazer. Se não, vejamos: os dados mais recentes da Unicef dão conta de que mais de 1,1 milhão de crianças no país precisa de assistência por carência alimentar; centenas de crianças e jovens nunca voltaram à escola depois do Idai; a ajuda humanitária representa 70% do suprimento das necessidades da população em todo o país. E as necessidades de financiamento para a reconstrução do ciclone superam os três mil milhões de dólares, com as doações a ficarem ainda aquém desse valor.
Se latrinas e pontos de água não forem reconstruídos, a população vai ainda ter de lidar com doenças como a cólera, enquanto espera que os centros de saúde voltem a operar para poderem ajudá-la. Numa terra onde o tempo parece, tantas vezes, que não passa, é urgente apressá-lo para que as famílias deixem apenas de tentar sobreviver.
A força da solidariedade
A Operação Embondeiro foi montada em conjunto entre a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e a Médicos do Mundo Portugal, logo após o Idai ter tocado a costa moçambicana. Depois da primeira fase (de emergência, que teve a duração de dois meses), em que foi possível enviar para Moçambique dois voos humanitários com equipas médicas, 70 toneladas de material para montar o hospital de campanha e a maternidade local – com o apoio da Sociedade Francisco Manuel dos Santos, do grupo Jerónimo Martins e da EuroAtlantic Airways – , a Operação Embondeiro passou às fases seguintes: reabilitação e reconstrução. Até agora, esclarece a CVP, a organização já fez chegar às áreas afetadas pela tempestade 220 toneladas de ajuda humanitária, tanto por via aérea como marítima. A revista VISÃO Solidária Moçambique no Coração, publicada pelo grupo Trust In News e cujas receitas reverteram totalmente a favor das vítimas do ciclone, contribuiu com 33 515 euros para esta operação, que, segundo os dados mais recentes disponibilizados pela CVP, angariou até agora mais de 2,8 milhões de euros.
Em agosto deste ano, a Médicos do Mundo Portugal desligou-se da iniciativa, tal como estava previsto e depois de terminar a sua função no terreno junto das equipas da CVP, que entretanto se dedicaram totalmente à reconstrução do Centro de Saúde, da Maternidade e Unidade de Urgência de Macurungo, um dos bairros da Beira. O projeto custou 899 mil euros e foi oficialmente entregue às autoridades moçambicanas em janeiro de 2020. Numa altura em que ainda existe muito por fazer, há pelo menos outros cinco projetos a necessitarem de apoio, e cujos consórcios são integrados pelas seguintes ONG: Fundação Fé e Cooperação, Fundação Gonçalo da Silveira, Vida, Oikos Portugal, Cáritas Portugal, ADPM, Apoiar, Health4Moz, Médicos do Mundo Portugal, Instituto Marquês de Valle Flôr, Helpo e TESE.