A morte do oftalmologista Li Wenliang, médico num hospital de Wuhan, a cidade chinesa epicentro da epidemia que levou a Organização Mundial de Saúde a declarar o estado de emergência global, provocou uma revolta digital nas redes sociais chinesas.
O óbito foi confirmado na sexta-feira, dia 7, às 2h58 da manhã (hora local), pelo hospital onde o médico trabalhava. As mensagens de condolências não se fizeram esperar, mas vieram acompanhadas de críticas ao regime do Partido Comunista Chinês por ter silenciado o oftalmologista aquando da sua denúncia do novo coronavírus.
O médico de 34 anos foi uma das oito pessoas repreendidas pelas autoridades chinesas por ter “espalhado rumores” sobre o 2019-nCoV. A acusação deveu-se ao facto de, a 30 de dezembro, Li Wenliang ter alertado um grupo de colegas de profissão, através do serviço de mensagens WeChat, de que tinham sido detetados sete casos de doentes com uma infeção semelhante à SARS no hospital onde trabalhava. O oftalmologista já associava os casos ao mercado de marisco e de animais exóticos de Wuhan e chegou a partilhar uma imagem microscópica do vírus com os outros profissionais de saúde que pertenciam ao grupo.
No dia seguinte, a 31 de dezembro, as autoridades chinesas revelavam à Organização Mundial de Saúde estarem a tratar dezenas de pacientes com uma pneumonia de causas desconhecidas.
A polícia de Wuhan interpelou o médico a 3 de janeiro, acusando-o de ter “perturbado severamente a ordem social” com as suas mensagens no WeChat. Pediram-lhe que parasse imediatamente com aquele comportamento ou teria de enfrentar consequências criminais. Li Wenliang foi obrigado a assinar uma declaração na qual admitia que a sua atitude tinha sido “ilegal”.
Depois de regressar ao trabalho, o médico revelou que estava infetado com o novo coronavírus a 1 de fevereiro, acabando por morrer seis dias depois.
O tópico mais lido da rede social chinesa Weibo (uma espécie de Twitter) na madrugada de sexta-feira, 7, era a notícia da morte do oftalmologista, com mais de 1,5 mil milhões de visualizações.
“Queremos liberdade de expressão” era um dos tópicos mais discutidos ao final do dia de quinta-feira, 6, quando surgiram as primeiras notícias da morte do médico. Mas na sexta-feira de manhã a hasthag #wewantfreedomofspeah já tinha desaparecido, após ter somado mais de dois milhões de visualizações e de ter dado origem a mais de 5 500 publicações, em apenas cinco horas.
Outro dos tópicos com milhares de partilhas dizia: “O governo de Wuhan deve um pedido de desculpas ao doutor Li Wenliang”. Os internautas também têm invocado insistentemente o artigo número 35 da Constituição chinesa, que prevê a liberdade de expressão.
As perguntas que a polícia fez ao médico também se tornaram virais: “Vai parar o seu comportamento ilegal?” e “Compreende que será punido caso não pare com esse comportamento?”. Alguns internautas publicaram fotografias com máscaras cirúrgicas com as palavras “Eu não compreendo”, numa referência ao interrogatório.
Todas as publicações que instigavam à ação ou a manifestações nas ruas foram rapidamente apagadas.
Este tipo de reações são raras no ambiente ultracontrolado da China. Desta vez, não só vários cidadãos anónimos deram voz à indignação, como também representantes oficiais e grandes empresários.
O jornal oficial do Partido Comunista Chinês, o People’s Daily, chegou a publicar um tweet que falava em “luto nacional” pela morte do médico, mas a partilha seria mais tarde apagada e substituída por uma mensagem mais neutral.
Uma publicação especializada em economia, a Caixin, sediada em Pequim, escreveu que “uma sociedade saudável não deve ter uma só voz”.
Um executivo da gigante Alibaba, Gao Xiaosong, sugeriu na sua conta da Weibo que o governo chinês avance com legislação que proteja os denunciantes como o médico agora falecido, a quem chamou de “herói”.
A revolta digital foi tal que a Comissão Central para a Inspeção da Disciplina, responsável por punir a corrupção nas instituições oficiais chinesas, comprometeu-se a investigar os “problemas relacionados com o Doutor Li Wenliang levantados pelo público”.
As críticas da população refletem as suas suspeitas de que as autoridades tenham tentado esconder a gravidade da epidemia, apesar da pressão dos cientistas para a partilha de informação a nível internacional.
A Organização Mundial de Saúde expressou no Twitter “profunda tristeza” pela morte de Li Wenliang e também a Comissão Nacional de Saúde chinesa expressou as suas condolências.
Até ao momento, o novo coronavírus já infetou mais de 30 mil pessoas e provocou cerca de 600 mortos.