Hugh Hefner é o único morto de quem não se pode dizer que foi para um sítio melhor. É uma piada que já circulava há anos, obviamente contada no futuro, e que agora está a ser multiplicada pelas redes sociais. Não carece de explicação.
Pode parecer redutor, mas no caso de Hugh Hefner a sua relação com as mulheres era o elemento que o definia. A sua viúva, Crystal, por exemplo: tem menos 60 anos do que ele, e nos primeiros tempos de namoro as modelos gémeas Kristina e Karissa Shannon também partilhavam cama com o milionário. Não é convencional e dá azo a muito falatório sobre troca de interesses – a jovem mulher tem o que o velho homem quer, e vice-versa. E depois, diria ele? Porque é que a vida tem de ser convencional?
Foi precisamente o medo do convencional que lhe arruinou o primeiro casamento. Hefner, nascido em Chicago em 1926, no seio de uma família conservadora, tentou encaixar no estilo de vida que era esperado dele. Em 1949, aos 23 anos, e depois de servir no exército durante a Segunda Guerra Mundial, casou-se com Millie Williams, com quem teve dois filhos. Dez anos mais tarde, divorciaram-se. “Ambos tínhamos muitas dúvidas sobre o casamento”, diria Hefner, muitos anos depois, em entrevista ao jornal Chicago Tribune. “Mas eu não tinha outro plano que não fosse casar-me e, de algum modo, viver feliz para sempre. Rapidamente comecei a temer estar a transformar-me nos meus pais. Era o que via acontecer aos meus amigos. Pessoas que eram tão divertidas nos tempos de escola estavam a tornar-se aborrecidas.”
Foi quando estava casado, ainda a tentar ser aborrecido, que Hefner teve a ideia que ia mudar a sua vida – e abanar a sociedade americana de alto a baixo. Em 1952, despediu-se do seu emprego a escrever textos publicitários, quando lhe foi negado um aumento. No ano seguinte, quando descobriu que por 200 dólares podia publicar fotos de uma sessão fotográfica de Marilyn Monroe, em que ela posara nua para um calendário, em 1949, lançou o primeiro número da Playboy, com a atriz nas páginas centrais (que se tornariam um ícone da cultura pop). Setenta mil cópias que voaram quase completamente em duas semanas. Um sucesso inesperado até para o seu criador – essa primeira edição não levou o número 1 na capa porque Hefner tinha muitas dúvidas que viesse a haver número 2.
Duas décadas mais tarde, a revista do coelhinho (“o playboy do mundo animal”, justificaria o artista que inventou o símbolo, Art Paul) chegaria a vender mais de sete milhões de exemplares por mês. Mas, pelo caminho, Hefner esteve a um passo de ir para a cadeia: uma edição com a atriz Jayne Mansfield nua – fotos que hoje podiam perfeitamente constar de um catálogo de roupa – levou-o a ser detido e julgado por editar “literatura obscena”. A sua sorte foi que o júri não conseguiu chegar a acordo, resultando num impasse judicial. Mas esse foi um importante passo na revolução sexual em curso na América.
No início dos anos 70, no pico da popularidade da revista (que se transformara num império, com clubes, hotéis, casinos e programas de televisão ligados à marca), nasceu outro braço icónico da Playboy: a mansão. Hefner comprou a casa em Los Angeles e a cidade nunca mais foi a mesma. As suas festas extravagantes, repletas de coelhinhas passadas, presentes e futuras, faziam com que todas as outras parecessem velórios. E o dono da casa não se limitava fazer de anfitrião para os convidados, no seu inseparável robe vermelho de seda: Hugh Hefner era efetivamente o playboy por excelência, o hedonista-mor, que vivia para as coisas boas da vida. E, para ele, não havia coisas mais boas na vida do que mulheres. Sobretudo as que viviam em casa dele.
Namorou com muitas. Tantas que ele próprio não perderia tempo a contá-las. Mas só se casaria mais duas vezes: com Kimberley, em 1989, até 2010, e Crystal, em 2012. Ambas playmates. Claro.
Mas o contra-ataque dos conservadores americanos dos anos 80 fizeram-lhe mossa. A revista, atacada por todos os lados, dos puritanos às feministas, foi perdendo popularidade. Os anos 90 não foram melhores, e depois veio a era da internet. De repente, o sexo não vendia: oferecia-se. Já poucos pagavam para ver a beleza feminina em toda a sua crueza irresistível. O império desmoronava-se, as dívidas acumulavam-se. Finalmente, o ano passado, a mansão foi vendida, com a condição de que Hefner poderia lá viver até à sua morte.
Que aconteceu esta noite – de causas naturais. Uma morte ordinária para uma vida extraordinária. Uma morte aborrecida.