O juiz-conselheiro Orlando Afonso lembra-se bem daqueles dias, na década de 1990, em que recebeu e acompanhou em Lisboa colegas polacos, que vinham estagiar no Supremo Tribunal de Justiça e no Conselho Superior de Magistratura (CSM). “Beberam muito da organização judiciária em Portugal”, recorda, para aplicação nas novas leis de Justiça do seu país, recém-libertado do domínio soviético e em transição para a democracia multipartidária.
Observaram e estudaram, sobretudo, como foram constitucionalmente consagrados a autonomia do Ministério Público (MP), a independência dos juízes face aos poderes executivo e legislativo, e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Por incumbência do Conselho Consultivo dos Juízes Europeus, do Conselho da Europa, no qual ainda é o representante de Portugal, Orlando Afonso fez depois várias viagens à Polónia, e a recordação mais forte que guarda ocorreu logo na primeira deslocação. Aconteceu no Parlamento, em Varsóvia. “Vi deputados com a Constituição portuguesa nas mãos, e a dizerem que queriam o nosso sistema de Justiça plasmado na nova lei fundamental da Polónia.”
Como vão longe esses tempos, a ponto de esta quarta-feira, 26, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ter dado um mês ao Executivo de Varsóvia para reverter a investida que iniciou contra a “independência da Justiça” e o “Estado de Direito”, condições essenciais para aderir à União Europeia. Em caso contrário, ameaçou Juncker, “a Comissão está pronta a desencadear, sem mais demoras, o procedimento previsto no artigo 7 do Tratado de Lisboa, que pode levar à suspensão do direito de voto de um Estado-membro”, se persistir “uma quebra grave” dos valores europeus.
Hoje, o Sejm (a câmara baixa do Parlamento), o Senado e o Governo polacos são dominados pelo nacionalista e ultraconservador Partido Lei e Justiça (PiS), que está apostado em submeter a organização judiciária aos ditames do seu poder executivo e legislativo. O primeiro e significativo sinal dessa deriva, analisa o juiz-conselheiro Orlando Afonso, surgiu há dois anos. “A Secção Constitucional do Supremo Tribunal da Polónia tomou decisões que o Governo se recusou a acatar, o que é completamente contra o Estado de Direito”, diz.
Depois, o ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, tornou-se também procurador-geral da República, até com poderes para nomear procuradores-especiais, estiolando a autonomia do MP polaco. De seguida, as intenções do PiS ficaram absolutamente claras. O Executivo submeteu ao parlamento, onde o PiS tem maioria absoluta, duas propostas de lei que demoliam a independência da organização judiciária. Numa, o parlamento ficava com o poder de escolher 22 dos 25 membros do Conselho Nacional Judicial, equivalente ao nosso CSM, órgão responsável pela nomeação e promoção dos juízes. Na outra, ficava consignada a possibilidade de o Governo destituir, de imediato, os juízes que compõem atualmente o Supremo, e nomear novos magistrados. “Tudo isto é um atentado completo contra a Constituição polaca, a ideia de Estado de Direito e a garantia de julgamentos independentes e imparciais, consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, indigna-se o juiz-conselheiro Orlando Afonso.
Houve protestos populares em Varsóvia, dois partidos da oposição, a Plataforma Cívica e o Moderno, acusaram o PiS de tentativa de “golpe” a todas as formas de exercício de poder no país, e até Lech Walesa, antigo presidente e rosto histórico da Polónia democrática, surgiu ao lado dos contestatários.
Entre a espada e a parede, o Presidente polaco, Andrzej Duda, ex-dirigente do partido no poder, contrariou pela primeira vez o antigo primeiro-ministro e atual líder do PiS, Jaroslaw Kazcynski, o homem que na verdade mexe todos os cordelinhos. Duda vetou as propostas de lei relativas à escolha dos membros do Conselho Nacional Judicial e à possibilidade de destituição imediata dos atuais magistrados do Supremo, para que o Governo nomeasse outros juízes. Mas deixou passar um terceiro diploma, também muito controverso, que atribui ao ministro da Justiça competências para nomear e afastar os juízes que presidem aos tribunais regionais e aos de recurso de 2.ª instância.
Orlando Afonso diz ter informações de que já foram instaurados processos-crime a juízes que se manifestaram publicamente contra as medidas do Governo. E é uma incógnita a forma como o PiS vai reagir ao ultimato de Jean-Claude Juncker. Até porque pode contornar os vetos do Presidente Duda com uma maioria de três quintos no Parlamento, convencendo, para isso, o pequeno partido Kukiz’15 a juntar-se-lhe.
Por agora, a retórica dos dirigentes do PiS continua agressiva. Dizem que o partido quer pôr fim à “tribunalocracia” e à “corrupção” de uma classe, a dos magistrados, que apenas serve “os interesses das elites”. Supõe-se que o Presidente turco, Recep Erdogan, não o diria melhor.