Na adolescência, vendia limonadas e pão doce com sementes de sésamo nas ruas de Istambul. Nessa altura, o seu grande sonho era tornar-se jogador de futebol. O pai, antigo guarda-costeiro, nunca lhe deu rédea solta para trocar os livros pela bola. Por ser um homem de fé e acreditar que o futuro do filho passava pelos estudos – sempre em escolas onde nunca se afastasse dos preceitos islâmicos –, Ahmet Erdogan conseguiu evitar que Recep fosse contratado pelo Fenerbahce. Pior mesmo, só ver o jovem envergar a camisola da outra grande agremiação da cidade, o Galatasaray. Um e outro clube são politicamente nacionalistas e sociologicamente interclassistas. No entanto, as raízes centenárias de cada um são bem distintas. O emblema pelo qual bate o coração do hoje Presidente da Turquia tem a sua origem no lado asiático de Istambul, cujos adeptos eram, no passado, pobres mas empenhados em subir na vida. Em contrapartida, o Galatasaray nasceu do lado europeu do Bósforo, graças às elites com educação francesa. Um dos seus adeptos era Mustafa Kemal, o oficial que, em 1923, se tornou o primeiro Presidente da Turquia laica, após a implosão do Império Otomano. Mustafa Kemal ficou na História por acabar com o Califado, querer modernizar o país e autointitular-se Ataturk, o pai dos turcos. Recep Tayyip Erdogan quer igualmente ser recordado pelas gerações futuras e até gosta que lhe chamem o “pai da nova Turquia” (a expressão já serviu de título a um livro de 2014). Aparentemente, a revolta militar ocorrida na madrugada de 15 para 16 de julho veio facilitar-lhe a tarefa.
Ao aterrar às 3 horas e 20 minutos da manhã, do último sábado, no aeroporto de Istambul, Erdogan declarou de forma entusiástica que os amotinados não iriam ter sucesso e que o golpe para o derrubar era uma “prenda de Deus”. Tendo em conta tudo o que aconteceu depois desse momento, dir-se-ia que o comentário faz todo o sentido – não pela metáfora religiosa mas pela realidade política. Aos quase 300 mortos e mais de um milhar de feridos na intentona, seguiu-se uma violenta purga em todas as esferas do Estado sob o pretexto de não deixar impunes os responsáveis. O politólogo e escritor turco Cengiz Aktar, entrevistado pelo diário francês Libération, diz antes tratar-se de uma “gigantesca caça às bruxas” que permitirá ao Governo controlado pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (no poder desde 2002) instaurar uma “ditadura civil”. E Erdogan, vaticina, poderá finalmente chefiar um regime presidencial à moda de Vladimir Putin: “Sem nenhum tipo de contrapoder como todos os países não democráticos do mundo que o fizeram antes dele.”
Onda de prisões
Os números oficiais sobre o que está a acontecer na Turquia parecem confirmar os seus receios. Mais de seis mil militares receberam ordem de prisão, incluindo 112 dos 372 generais e almirantes que existem no país. Mais de 2500 juízes e procuradores foram sumariamente destituídos. Mais de 30 dos 80 governadores do território tiveram de abandonar os cargos. Mais de oito mil polícias e agentes das forças de segurança foram afastados das suas funções. Mais de 21 mil professores do ensino privado viram confiscadas as suas licenças para dar aulas e, no setor público, 15 mil tiveram idêntica sorte, além de 1500 reitores e dirigentes universitários terem sido notificados para apresentarem a demissão. Mais de 1500 funcionários do ministério das Finanças ficaram a saber que tinham perdido o emprego. A lista promete continuar nos próximos dias.
No total, o número de detidos supera os 20 mil e alguns tinham bem visíveis as marcas de tortura quando foram publicamente exibidos. É o caso do general Akin Özturk, chefe da Força Aérea, que o primeiro-ministro Binali Yildirim garante ter confessado o seu envolvimento no motim supostamente instigado pelo líder religioso Fetullah Gullen, exilado nos EUA. Ancara pede agora a extradição deste último – que não vai à Turquia há quase duas décadas e reside na Pensilvânia –, enquanto Washington admite ponderar o assunto logo que receba um pedido formal e lhe sejam apresentadas provas da conspiração de Gullen.
Xadrez complicado
A questão ameaça azedar as relações entre os dois países. A Turquia é membro da NATO e o principal aliado muçulmano dos EUA. Não é por acaso que o Pentágono e as tropas americanas foram colocadas em nível de alerta máximo nos dias 15 e 16. É em território turco que está uma das maiores bases da Aliança Atlântica, Incirlink, onde se armazenam meia centena de bombas de hidrogénio, mais de 25% do arsenal nuclear da NATO, segundo Hans M. Kristensen, da Federation of American Scientists, citado pela New Yorker. Ora sucede que o comandante turco da base de Incirlink terá participado na sublevação contra Erdogan e as autoridades de Ancara decidiram cortar a eletricidade ao complexo militar. Na madrugada de domingo, 17, a situação estava já normalizada mas ficou clara a importância da Turquia no xadrez global.
Parceiro em risco?
“Os turcos enviaram tropas, aviões e barcos para todas as missões da NATO. Do Afeganistão aos Balcãs, da Síria à Líbia (…). Infelizmente, é provável que os militares na sequência deste golpe fiquem concentrados em controvérsias domésticas, investigações infinitas e exames de lealdade”, escreveu na revista Foreign Policy o general James Stavridis, antigo comandante supremo da NATO. Ou seja, os EUA e respetivos aliados habilitam-se a ficar privados – temporariamente? – de um parceiro fundamental, com todas as consequências que isso representa. Basta um exemplo: alguém acredita que a guerra civil na Síria e os desafios colocados pelo Daesh se possam resolver sem o contributo de Ancara? Recep Tayyip Erdogan sabe o que faz quando é criticado pelas chancelarias do Ocidente. Apesar dos apelos à contenção e para ser magnânimo, o Presidente da Turquia ameaça ser implacável com todos os que desafiaram o seu poder. A reintrodução da pena de morte, que poderá ser votada novamente no Parlamento, é um mero sinal. Angela Merkel e outros dirigentes já fizeram saber que essa possibilidade será uma sentença capital nas aspirações da Turquia para se tornar membro de pleno direito da União Europeia. Será que Erdogan também já não acredita no processo de adesão do seu país, do qual foi um fervoroso defensor desde os tempos em que era presidente da Câmara de Istambul (1994-1998)? Estará ele a preparar-se para rasgar velhos compromissos e lançar a Turquia numa fase de isolamento ou de novas alianças a oriente? A História e a geografia não lhe permitem grandes veleidades. Afinal, como costuma dizer Thomas Pickering, um dos mais prestigiados embaixadores americanos, “a Turquia é talvez o único país do mundo completamente cercado de problemas”.