Tem 75 anos e vive em Brasília, no Palácio do Jaburu, com a sua mulher Marcela, 42 anos mais nova e conhecida por exibir uma tatuagem com o nome e apelido do marido no pescoço. Michel Temer é uma das eminências pardas da política brasileira e, na segunda semana de maio, deverá tornar-se Presidente interino do país durante seis meses. Ninguém diria que este filho de libaneses, antigo advogado e professor de Direito, chegaria tão longe. Personagem de pose esfíngica e aristocrática, já foi descrito como “mordomo de filme de terror” e tem a alcunha de Drácula por ser parecido com Béla Lugosi, o ator húngaro que imortalizou na sétima arte o herói de Bram Stoker.
Mestre nos jogos de bastidores e habituado a viver na sombra, o ainda vice-presidente do Brasil tem pela frente o maior desafio da sua já longa carreira pública. Os seus compatriotas estão divididos sobre o futuro que os aguarda e, de acordo com uma sondagem feita já este mês pelo Instituto Datafolha, apenas um a dois por cento votaria em Michel Temer, caso houvesse eleições presidenciais neste momento. Mas não só: 60% acha que ele deveria renunciar e 58% entende que merece o mesmo destino de Dilma Rousseff – um processo de impeachment. O que, em teoria, pode muito bem acontecer e por diferentes razões. Ele é um dos governantes implicados no escândalo Lava Jato por ter alegadamente traficado influências junto da administração da Petrobrás, a gigante energética de que se aproveitavam as elites e através da qual se realizaram contratos e negócios fraudulentos superiores a dois mil milhões de euros. As denúncias feitas pelo ex-senador Delcídio do Amaral, que fez um acordo de delação para ver reduzida a sua pena, ainda podem comprometer Temer. No entanto, o seu poder e influência têm-lhe permitido escapar a tudo. Aliás, não é a primeira vez que o antigo presidente da Câmara dos Deputados vê o seu nome envolvido em esquemas de corrupção. Em 2009, a Polícia Federal lançou a Operação Castelo de Areia com o objetivo de identificar os políticos que recebiam luvas da construtora Camargo Corrêa. Temer era apontado como um dos principais suspeitos, por ter alegadamente aceite subornos de 300 mil euros, entre 1995 e 1998. O caso acabou por ser anulado pelo Superior Tribunal de Justiça, devido a supostas irregularidades na recolha de provas.
Os verdadeiros cromos da corrupção
É este o historial – abreviado – da personalidade que pode converter-se no 37º Presidente do Brasil e que anda numa roda-viva a fazer convites para um futuro governo. Um historial que levou Dilma Rousseff a manifestar a sua indignação contra o seu antigo aliado, a quem acusa de falta de ética: “É estarrecedor que um vice-presidente, no exercício do seu mandato, conspire contra a presidenta. Abertamente. Em nenhuma democracia do mundo uma pessoa que fizesse isso seria respeitada. Porque a sociedade humana não gosta de traidor.” [sic]. Ela tem motivos para se sentir injustiçada e julgar-se vítima de um julgamento sumário por ter recorrido a um expediente de engenharia financeira, a exemplo do que fizeram todos os seus antecessores desde o fim do regime militar, em 1985. O seu único crime foi ter dado uma “pedalada fiscal” há dois anos, de modo a equilibrar artificialmente as contas federais e não aumentar o défice público. Até prova em contrário, mero desrespeito pelos procedimentos orçamentais, nada mais, como a própria não se cansa de repetir: “Não há contra mim nenhuma acusação de desvio de dinheiro público. Não há contra mim acusação de enriquecimento ilícito. Não fui acusada de ter contas no estrangeiro.” É também por isso que ela rejeita demitir-se e que não aceita comparações com o corrupto Fernando Collor de Mello, protagonista do primeiro processo de destituição na América Latina e forçado a abandonar a presidência, em 1992, face ao acumular de indícios incriminatórios. Por ironia da História, Collor de Mello é um dos 81 senadores que, nos próximos dias, vai discutir e votar se Dilma deve abandonar o cargo. Banido da vida pública até 2007, nesse ano conseguiu ser eleito pelo seu estado natal, Alagoas, e continua a dar azo a todo o tipo de polémicas. É um dos 47 políticos implicados no Lava Jato e a polícia já lhe confiscou três carros de luxo avaliados em meio milhão de euros.
Outro dos 47 no escândalo da Petrobrás é o deputado Bruno Araújo, convertido em estrela mediática por ter sido dele o voto decisivo para o impeachment de Dilma, na noite de 17 de abril – por estranha coincidência, data em que se assinalava o 10.º aniversário do massacre de Eldorado dos Carajás, em que 19 camponeses foram abatidos pela polícia nesta pequena cidade no Sul do Estado do Pará. Raquel Muniz foi outra das individualidades que defendeu o afastamento de Dilma com o argumento de que o Brasil precisa de novas soluções, dedicando o seu voto ao marido, Rui Muniz, presidente da autarquia de Montes Claros, em Minas Gerais. Doze horas depois, o homenageado recebia voz de prisão, acusado de desviar verbas públicas. Um outro caso paradigmático foi protagonizado pelo deputado Paulo Maluf, antigo governador de São Paulo, que disse votar contra Dilma para combater a corrupção. É que este senhor foi condenado, à revelia, a três anos de prisão em França, devido a lavagem de dinheiro, os EUA acusam-no de ter roubado mais de 11 milhões de dólares e nem sequer pode viajar para fora do Brasil por integrar a lista de criminosos da Interpol.
Evangélicos e paraísos fiscais
Por tudo isto, na opinião de muitos brasileiros, o que sucedeu no último domingo em Brasília foi um circo de horrores, em que os 513 eleitos na Câmara dos Deputados expuseram todas as suas misérias. Convém sublinhar que, apesar dos caricatos discursos moralistas, 299 estão sob alçada da Justiça e, entre estes, 76 já foram julgados e condenados por todo o tipo de crimes. Só não foram parar ao cárcere devido à imunidade parlamentar ou aguardarem recursos e decisões de tribunais superiores. Em suma, três em cada cinco deputados e senadores brasileiros são ou foram arguidos em casos de corrupção, garante a ONG Transparência Brasil. Números que falam por si e que incluem um aliado de longa data de Michel Temer: o todo-poderoso presidente da Câmara de Deputados e grande promotor do processo para afastar Dilma do poder, Eduardo Cunha. Uma criatura que parece fazer jus ao seu apelido. É réu no Lava Jato e tem por isso um processo pendente no Supremo Tribunal Federal para que lhe seja retirada a imunidade por suspeita de ter embolsado mais de 35 milhões de euros em “propinas”.
O que lhe permitiu abrir várias contas na Suíça e em outros paraísos fiscais, acabando por ser também “apanhado” nos Panama Papers. Em junho de 2010, a revista Piauí traçou o perfil a Michel Temer, que descreveu o seu amigo Cunha de forma notável: “Tem lá o jeito dele (…). Mas é competente, trabalhador, dedicado e tem uma inteligência privilegiada. Só recentemente descobri que ele não é advogado.” Isto é, reconheceu que o antigo tesoureiro da campanha presidencial de Collor de Mello sempre soube sobreviver politicamente a tudo, nem que fosse à custa da fraude e da mentira. Cunha sempre se fez passar por advogado, mas nunca teve qualquer canudo.
Jesus anda de Porsche
A sua carreira é o exemplo perfeito daquilo que os brasileiros cunham como fisiologismo: troca de favores, distribuição de cargos e artimanhas corruptas, sempre em detrimento do erário público. Para cúmulo, Eduardo Cunha é visto como o chefe de fila dos evangélicos no Congresso, alguém que usa a religião para defender os seus interesses e impor uma agenda tão conservadora quanto hipócrita. Exagero? Basta invocar um dos argumentos do Supremo Tribunal para autorizar as investigações a Cunha: ele e a mulher possuem uma frota de oito automóveis de luxo registada apropriadamente em nome da empresa Jesus.Com. Tem sido ele um dos grandes responsáveis pelo avanço dos evangélicos na sociedade brasileira – eram 13 milhões há um quarto de século, agora são 43 milhões. O problema não é esse. O Congresso eleito em 2014 é considerado o mais conservador desde o fim do regime militar e Cunha tem conseguido aprovar inúmeras medidas retrógradas: redução da responsabilidade criminal (de 18 para 16 anos); novo estatuto da família (só entre homens e mulheres); agravamento da lei do aborto; liberalizar a aquisição e porte de armas (dos 25 para os 21 anos). Entre outras iniciativas, querem ainda decretar o terceiro domingo de dezembro como o Dia do Orgulho Heterossexual e não hesitam em manifestar a sua intolerância junto de ativistas gay, simpatizantes de candomblé e de outros credos, vistos como adoradores do Diabo.
Renan Calheiros, presidente do Senado, é outro amigo comum a Michel Temer e a Eduardo Cunha. É ele quem vai agora gerir o processo de Dilma na câmara alta do Parlamento e promete fazê-lo com total “isenção e neutralidade”. Na segunda-feira, 18, o jornal Globo voltava a dar destaque aos problemas de Calheiros com o Lava Jato. Um antigo diretor da Petrobrás, em mais uma delação premiada, acusa-o de ter recebido seis milhões de dólares. A sua credibilidade volta a ser seriamente posta em causa. Algo que já ocorreu vezes sem conta, sem nunca beliscar a carreira deste “artista da hipocrisia política”, como lhe chamou o El País. O caso mais mediático, de 2007, chamou-se Renangate e deveu-se ao seu affair com uma jornalista de quem teve uma filha. Ou melhor, deveu-se ao facto de ser uma empresa de construção civil a pagar a casa da amante e a pensão da criança, em dinheiro vivo. Alguém acredita que um tal currículo lhe permite ser um juiz imparcial no julgamento do “crime de responsabilidade” imputado a Dilma Rousseff?
O longo calvário da destituição
As quatro fases para afastar Dilma Rousseff da presidência. Um processo que nada tem a ver com corrupção
17 de abril
Por 367 votos a favor,
137 contra, sete abstenções e duas ausências, a Câmara dos Deputados dá por iniciado o processo de impeachment, que passa automaticamente para o Senado
10 de maio
Data em que os senadores devem concluir a segunda fase do processo: a votação em que basta uma maioria simples (41 em 81) para a destituição avançar – um cenário dado como garantido. Dilma é suspensa por 180 dias
Maio-outubro
Dilma Rousseff será sujeita a um julgamento para se apurar se cometeu – ou não – o “crime de responsabilidade” por ter manipulado o orçamento federal de 2014 (aquilo que os brasileiros definem como pedalada fiscal). Os trabalhos serão dirigidos pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski
Outubro-novembro
Senado é novamente chamado a votar o destino de Dilma. Caso seja ilibada (precisa de uma maioria de dois terços), regressa automaticamente à presidência. Se for a decisão contrária, Michel Temer assume o cargo e forma um governo de unidade nacional até às eleições de 2018. Pode haver também eleições antecipadas se deputados e senadores aprovarem uma emenda constitucional nesse sentido