Há um mapa antigo e outro recente de Angola, no escritório de António Alves Martins, em Luanda, secretárias velhas e monitores informáticos a brilhar, um cofre anacrónico e um aparelho de fax sempre a apitar. Foi entre estas paredes brancas que nasceu, há 53 anos, as mesmas que agora testemunham o início da sua segunda vida.Foi também neste quarto que o menino António andou a “aprontar”, planeando abrir buracos na rua para os carros caírem lá dentro. E depois oferecer-se para ajudar a tirá-los, na mira de “uns patacos”. Aqui viveu “uma infância gostosa” e se fez adulto. Até que teve de partir.Em 1975, a Martal, da qual o pai era sócio-fundador, prosperava. Geria uma rede de quatro supermercados e dez talhos, 40 mil cabeças de gado, um matadouro, uma fazenda de café e outra de laranjas, bem como fábricas de moagem de milho, pão, biscoitos, massas alimentícias e vinagre. Dois anos antes da descolonização, uma empresa alemã ofereceu 83 milhões de dólares pela sociedade comercial. A proposta foi recusada. Alves Martins, o pai, embarcou de regresso a Portugal, deixando em suspenso a aventura africana de quatro décadas, que nunca saberá como vai acabar – entretanto, morreu. Alves Martins, o filho, seguiu, contrariado, para o Porto, continuando o curso de Economia iniciado em Luanda, mas sempre com o pensamento na terra natal. Sobra o terceiro protagonista da história: Manuel Pinheiro, o primo, 54 anos, os últimos 40 em Angola, de onde nunca mais saiu por “amor à terra” e “sangue revolucionário” a correr nas veias. Aplaudiu a bandeira da República Popular a subir, na independência de 1975, e, desde então, segurou as pontas do negócio no terreno de todos os perigos, a que não faltou uma prisão de 30 dias. E, no entanto, teimou em ficar. Com os acordos de Bicesse, em 1991, António Alves Martins regressou à morada da meninice e chorou, compulsivamente, ao reencontrar um antigo serviçal da família: “Não há lugar no mundo que me faça sentir em casa, como Luanda.” E em 2002, instalou-se em definitivo na capital angolana, junto do primo, deixando a mulher e dois dos seus três filhos em Portugal, para relançar, com os herdeiros dos outros sócios, a empresa de sempre: “Estamos aqui sem saudosismos, porque acreditamos neste país”, diz, no quarto que o trouxe ao mundo, agora o seu “escritório africano”. À Martal, os primos reservam-lhe um futuro radioso, proporcional ao desenvolvimento galopante que se verifica em Angola, agora que tudo mudou. Até o nome da Rua António Barroso, hoje Marien N´guabi, no bairro de Alvalade, onde o falecido Alves Martins ergueu o seu sonho:”Não estamos nos anos 30″, afirma o filho. “É preciso muito know how, bastante dinheiro e rejeitar o novo colonialismo.” Já Agostinho Neto, recorda Manuel Pinheiro, se referia a África como “um pedaço de carne para os abutres picarem”.Operação LuandaJosé Sócrates chega, no próximo 4 de Abril, a Angola, onde vai permanecer quatro dias, e com ele viajam 80 grandes empresários: “Vai ser a maior comitiva portuguesa de sempre a Luanda”, adianta fonte do gabinete do primeiro-ministro. “Vai ser também a sua primeira visita a um PALOP e a sua primeira grande visita a um país estrangeiro.” E um sinal de que, além de Espanha e do Magrebe, Lisboa está de olho no país que já foi a jóia da coroa do Ultramar. Outros governantes portugueses estabeleceram, nos últimos meses, uma autêntica “ponte aérea” com a capital angolana, num vaivém constante do poder, com vista a alcançar, segundo a mesma fonte, “uma nova etapa nas relações entre os dois países”. E que terá o seu auge nesta visita, durante a qual serão assinados vários acordos bilaterais, nas áreas da formação de quadros e da saúde, além da criação de um centro logístico em Luanda para empresas nacionais e do previsível anúncio de uma nova linha de crédito, já que a existente, no valor de 100 milhões de euros, se encontra esgotada. Após três décadas de guerra civil, Angola tornou-se, de novo, na terra de todas as oportunidades. Nenhuma economia está a crescer tanto, no mundo. As previsões apontam para 27%, no final de 2006, graças, em grande parte, ao aumento da produção de petróleo (poderá em breve ultrapassar a instável Nigéria, actual maior produtor da África subsariana) e também da subida dos preços do crude. A inflação, que ainda em 2002 era de 300%, cairá para 10%, no final deste ano. As contas públicas foram controladas, apostou-se no kwanza e a dívida externa vai sendo gerida com habilidade – e, neste capítulo, a resolução da dívida com Portugal, a que só falta fechar o acordo com uma dúzia de empresas das 140 iniciais, traz confiança crescente. Até a caótica Luanda está a mudar: mais limpa, mais iluminada e com uma dinâmica tão forte que dispara o comércio formal, em lojas bem decoradas e cadeias sul-africanas de fast-food, e a construção das torres das multinacionais, reperfilando a silhueta da graciosa baía, para a qual também se anuncia uma reabilitação em grande escala, envolvendo capitais portugueses.Os ventos de mudança depressa levaram a um fluxo imparável de empresas nacionais para Angola, que anunciam, a uma cadência diária, novos projectos, parcerias ou reforços de posição – são 200 a operar no país e um número indeterminado de firmas angolanas de capital português. Com quase tudo por fazer e os sectores não petrolíferos a crescer 11% ao ano, este mercado é emergente “para quem está na posse” – diz João Gomes Cravinho, secretário de Estado da Cooperação – de “vantagens competitivas como a língua, proximidade cultural e conhecimento histórico”. O número de residentes portugueses em Angola subiu em flecha, de 21 mil para 47 mil em três anos, embora seja preciso cautela, na leitura dos dados, já que o Consulado de Luanda refinou, recentemente, o apuramento estatístico e as cifras são agora mais exactas. “Em todo o caso, regista-se, seguramente, um aumento”, adianta o cônsul adjunto, Pedro Laima. A Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP), em Luanda, aprovou, no ano passado, 83 projectos superiores a 100 mil dólares de empresas portuguesas. Em 2001, apenas cinco. São “os dividendos da paz”, diz Gomes Cravinho.Cidade lotadaAviões cheios continuarão, mesmo após o reforço, já em curso, de um voo por semana da TAP e da TAAG, a ligar Lisboa e Luanda. Mesmo que uma passagem em classe turística custe mais de 1 500 euros. À chegada, é impossível encontrar um quarto, na capital angolana, sem uma reserva com semanas de antecedência. O lobby do Hotel Trópico, da Teixeira Duarte, fervilha com desalojados em desespero e outros clientes – portugueses, chineses, brasileiros, espanhóis, nórdicos -, já instalados, preparando mais um dia de negócios. E o cenário repete-se, no Hotel Alvalade, no Presidente, no Tivoli, no Continental ou numa qualquer espelunca. Os restaurantes da ilha transbordam de estrangeiros, na senda de uma refeição acima dos 50 dólares.No infernal tráfego luandense, a que umas centenas de novos polícias recém-formados em Portugal tentam impor uma ordem inviável, convivem as velhas latas do costume, os audazes minibus azuis (candongueiros), os bólides dos que fizeram fortuna na “gasosa” (corrupção) e também máquinas vulgares, que transportam o português de classe média, nas suas rotinas de trabalho, ou um qualquer empresário luso a preparar o primeiro grande passo. Ou já o segundo.Duplamente comendador, Fernando Pinto Teixeira, 70 anos, fiscaliza a instalação de uma linha de montagem de tubos metálicos. Fixado na luz da solda, assa, com a restante administração da Ferpinta, debaixo da cobertura das novas instalações da empresa, em Angola. Já passaram quase quatro décadas desde que iniciou, com um operário apenas, o negócio, numa oficina de 300 metros quadrados, em Oliveira de Azeméis. O que está a nascer em Viana, nos arredores de Luanda, é um pavilhão coberto, com o tamanho de um campo de futebol, que vai fabricar tubos, perfis e chapas metálicas, com selo de qualidade. “Uma indústria de base – indispensável a qualquer país”, segundo o líder desta firma “totalmente familiar”. Ao todo, são 42 mil toneladas de aço, por ano, mais 20% do que as necessidades do país. Só que o comendador acredita bastarem dois ou três anos para que o excedente corresponda à exacta medida do crescimento do sector. Agora que há paz, a empresa vai investir 80 milhões de dólares nesta fábrica, e também noutras duas (alfaias agrícolas e mobiliário escolar e hospital), bem como num hotel de cinco estrelas, com 200 quartos, mal se encontre terreno: “Angola pode ser um grande país.”O feitiço do LobitoSócrates que vá preparando os rins para quando visitar a unidade da Ferpinta, junto de uma estrada lunar de terra. E o estômago. Para chegar a Viana, tem de cruzar, pela antiga estrada de Catete, os musseques sombrios, onde alastra a cólera, que tornam a metrópole de 4 milhões de habitantes nuns 30 quilómetros de bazar contínuo, onde milhares de sobreviventes angolanos e congoleses lutam pelo seu dólar diário. Angola ocupa o 160.º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, tenco subido seis posições em relação há um ano. Dois terços da população, estimada em 11 milhões, continuam a viver abaixo da linha de pobreza – o lado oculto do milagre angolano. Um lado que Marina Alegre, 41 anos, aprendeu a deixar de ver, preferindo relevar os rostos africanos, que, embora miseráveis, “transmitem felicidade”. Em 2003, veio espreitar o “paraíso” de que tanto lhe falaram. Não tem raízes em Angola nem sequer alguma vez cá tinha posto os pés. Era Natal e a província de Benguela enfeitiçou-a. Em menos de um mês, abriu um cabeleireiro com salão de estética, na Restinga do Lobito, e uma boutique, na Zona 28 (antiga Rua 28 de Maio), no centro da cidade. “Sinto que aqui tudo é possível.”Ainda se iludiu, pensando que conseguia manter o seu cabeleireiro em Vilamoura. Mas como não existem negócios teleguiados, teve de deixar cair um deles. E foi o português. Dois anos e meio depois, não deu por mal empregues os 150 mil dólares investidos no Lobito. Mexem-lhe com os nervos as eternas dificuldades burocráticas, o pesadelo de obter um visto de trabalho, os prazos que nunca se cumprem: “Eles costumam dizer que têm o tempo e nós o relógio.” Quando quer tudo para ontem, sabe que “o ontem, em Angola, não existe e que o amanhã logo se vê”. E as superstições, como aquela da depilação interferir com a fertilidade.Só sente mesmo a falta do filho, de 13 anos, que ficou em Portugal.A segunda invasão As empresas portuguesas, grandes como a Secil, que vai investir 50 milhões de dólares numa cimenteira, no Lobito, ou pequenas, como o cabeleireiro de Marina Alegre, não vão sozinhas a jogo. O boom angolano trouxe a cena outros parceiros, que poderão ameaçar, quando a ANIP revelar, em breve, o ranking de 2005, a posição de Portugal como líder do investimento directo no país. A começar pela China e os seus 2 mil milhões de euros de crédito, a troco de petróleo. “Angola é uma noiva com muitos pretendentes e pode dar-se ao luxo de escolher”, afirma Fernando Neves, delegado da Associação Industrial Portuguesa (AIP) em Maputo e também em Luanda, onde, agora, passa a maior parte do tempo. “As boas oportunidades, em Moçambique, já as perdemos, aqui ainda temos uma grande expectativa, primeiro na capital e, daqui a uns três anos, nas províncias.”Nas tréguas que se seguiram aos acordos de Bicesse, já se tinha verificado um fluxo de empresas portuguesas. “Foi uma autêntica invasão”, recorda Carlos Bayan Ferreira, presidente da Câmara de Comércio Portugal Angola. “Muita gente partiu sem preparação, de peito aberto, à procura do ouro prometido e só encontrou um desastre financeiro.”Este segundo fluxo, diz o responsável desta Câmara com 500 sócios, a maior a operar em Portugal, “tem outro cuidado, informa-se e sai muito mais preparado”. Às vezes, conta, “há quem faça tantos estudos prévios que acaba por perder a oportunidade do negócio”. Outra novidade nas relações dos empresários portugueses com Angola tem a ver com a diminuição da chamada “política do contentor”, em que as trocas comerciais se limitavam à exportação, a distância segura. A Unicer, líder das exportações portuguesas para Angola, prepara-se para instalar uma unidade no Bom Jesus, arredores de Luanda, mal o Conselho de Ministros aprove o projecto de 84 milhões de dólares. “Uma das razões que nos levou a avançar foi precisamente a convicção de que a política do contentor chegou ao fim”, afirma Vaz Branco, administrador da empresa. Os 165 milhões de litros anuais de cerveja que ainda chegam nos navios ao frenético porto de Luanda deverão passar a ser fabricados junto do rio Kwanza (onde a Coca-Cola já está presente).Antes de submeter o projecto à ANIP, Vaz Branco estudou a fundo o mercado angolano, que acredita valer 400 milhões de litros anuais, mas com tendência para subir, caso se confirme o aumento, previsto pelo Banco Mundial, de 6 milhões de habitantes da população angolana, na próxima década. E, nas conclusões da sua análise, vinga o business as usual, em que o “factor emocional deverá valer zero”. Até porque, adianta, “a classe dirigente de Angola está cada vez mais experiente e, na hora da verdade, olha só para os números”.Negociando com o papãoClaro que as empresas que se instalaram no período das trevas, na década de 90, e aguentaram a posição, estão hoje em condições privilegiadas para resistir à concorrência de um mercado em que os negócios se sobrepõem à política económica. As grandes construtoras nacionais estiveram sempre em Angola e são elas que continuam na liderança do sector. Os produtores e distribuidores de materiais de construção, bebidas e alimentos também se encontram na linha da frente. E quanto ao “papão” chinês, há quem prefira juntar-se a ele a deixar-se engolir.Ao fim de 15 anos de actividade em Angola, a ESCOM é um dos maiores investidores estrangeiros no país, na área dos diamantes e energia, nas Lundas, imobiliário, em Luanda, aviação (Air Gemini), pescas, no Namibe. A empresa do Grupo Espírito Santo apostou 700 milhões de dólares nestes ramos e também na distribuição, obras públicas, saúde, águas e saneamento, fazendo várias parcerias estratégicas internacionais. E, entre elas, com o grupo industrial chinês Beiya. Enquanto a ESCOM lança as fundações do Edifício Espírito Santo, de 25 pisos, no centro de Luanda, a sua administração usa de prudência para lidar com essa história das afinidades que não significam facilidades: “É preciso mostrar que o compromisso com Angola é de longo prazo, envolvente, e não um mero exercício contabilístico.”Com a chegada em força, a Luanda, de outros países, o que está a dar são as parcerias com empresas angolanas. Este é também o modelo que as autoridades angolanas incentivam. “Geram emprego e trazem maiores benefícios à nossa economia”, diz fonte do Governo angolano. “E funcionam”, prossegue Fernando Faria, da AIP, já que o empresariado local está cada vez mais activo. “O que não resulta, de certeza, é aquela pessoa que vem para cá porque tem um amigo que conhece um primo de um assessor do José Eduardo dos Santos. Essa é que leva a grande paulada e nunca mais vê o dinheiro.”Os donos do dinheiroOs conhecimentos com a família dos Santos podem, no entanto, dar os seus frutos. Há dez meses, Fernando Teles, 54 anos, largou o BPI na situação de líder da banca em Angola (cuja meia centena de agências contribuíram em 30% para os resultados anuais do grupo), e juntou-se a um conjunto de empresários para fundar o Banco Internacional de Crédito (BIC), entre os quais Isabel dos Santos, a filha do Presidente angolano, e Américo Amorim. Ex-bancário e agora banqueiro, Fernando Teles saiu do BPI com sete quadros, aos quais se reuniram mais uns setenta. Entretanto, abriu 24 agências. E triunfou: “Não gosto de perder nem a feijões.””Este é um país tão extraordinário, que a filha do Presidente tem 25% de um banco e ninguém questiona de onde vem o dinheiro”, comenta Rui Câmara e Sousa, 53 anos, empresário no ramo dos materiais de construção, regressado a Benguela, província de que o seu avô foi governador. Ironias à parte, este investidor está “muito confiante num país a tornar-se normal”.Além do BIC, Isabel dos Santos é parceira da PT, na rede móvel Unitel, e agora também da Iduna, uma empresa de mobiliário, que se prepara para investir 2,5 milhões de dólares numa fábrica em Luanda. Quanto a Américo Amorim, é parceiro da Sonangol na Galp Energia, que irá a jogo na concessão de mais blocos petrolíferos, em Angola. Nesta explosão de negócios em que toda a gente procura o seu lugar, a banca portuguesa trava um braço-de- ferro em Luanda, de vencedor incerto. Há meses, o presidente do Conselho de Administração do BCP, Paulo Teixeira Pinto, afirmou que o Millennium haveria de ser líder em Angola. Na altura, ninguém o levou a sério. Mas, agora que lançou a OPA sobre o BPI, é bem capaz de o conseguir. Nesta corrida financeira, estão, também, o BES, o Totta e a Caixa Geral de Depósitos. “Trata-se uma grande vantagem para as empresas já conhecidas destes bancos, em Portuga”, frisa Fernando Anjos, delegado do ICEP em Luanda. O dinheiro, neste país, é quase tudo. Quem procura o El Dorado angolano tem de se munir de bastante, sabendo que um armazém de 500 metros quadrados custará pelo menos 4 mil dólares por mês e que as rendas de um espaço comercial e de uma habitação também custam uma fortuna, além dos gastos com os “nós” burocráticos, que, por vezes, só a “gasosa” desata. “Quem se instala em Angola sem capital nem crédito não tem a mínima possibilidade”, comenta Fernando Pinto Teixeira, da Ferpinta. “Há boas oportunidades mas isto também não é nenhuma árvore das patacas – os que falharam em Portugal, vão falhar aqui.”‘O bichinho mordeu’O dj do Palos incendeia, numa febre de sexta à noite, a casa cheia de uma clientela que se divide, basicamente, entre angolanos e portugueses, unidos pelo house e pela pop. Contagiados pelo ritmo e muito álcool, estão indiferentes às quadrilhas de bandidos que os esperam nos cantos, à saída, e que incluem os próprios polícias, “à coca” de dinheiro, a troco de protecção. A discoteca Bingo, noutro ponto da cidade, acolhe os funcionários lusos de uma próspera empresa informática. No Bahia, no Animatógrafo, no D. Quixote, as pistas estão cheias de expatriados. Às mesmas desoras, Abílio Correia, prepara o começo de mais um dia, nos contentores da Mota-Engil, no musseque da Petrangol, que partilha com mais de cem operários portugueses. Com contrato de seis meses, o carpinteiro de toscos já passou por quase todas as construtoras nacionais, em Angola, sempre no cuidado de não gastar mais de 200 dólares por mês, que é o orçamento de um jantar seguido de noitada de arromba, em Luanda. Não vai nessa o Correia, nascido em Malanje há 51 anos,”mais preto do que branco, mais angolano do que português”. Até anda de candongueiro, contando os dias para rever a família em Leiria, mas sem pressas de partir, porque ainda está a recuperar “o tempo perdido”, os 20 anos em que a descolonização o atirou para longe. Faz-lhe confusão ver os seus colegas da Mota-Engil a sonhar com lotarias para se livrarem de uma emigração forçada pela crise em Portugal. “Se me saísse o totoloto, nunca mais deixava isto.”Os fantasmas do passado surgem, aqui e ali, um racismo latente, mas nunca assumido. Faltará uma geração para resolver os traumas da descolonização. Vive-se no meio de África com bacalhau, azeite, vinho (Angola é, desde 2004, o principal mercado português) e cerveja nacional. As parabólicas captam a RTP e a SIC, a bola nunca falha e são os golos do Benfica, do Porto e do Sporting que mais unem os dois povos – “O futebol é uma mais-valia tremenda”, diz o delegado do ICEP. Numa manhã de domingo, o clã Vieira prepara a arca e arranca a todo o vapor para a ilha do Mussulo, um paraíso ainda preservado da colonização dos musseques, com areia a escaldar, água morna e palmeiras esguias desafiando o céu azul. Foi disto tudo e muito mais que José Vieira, 47 anos, sentiu falta, durante os anos em que viveu num quartel, em Leiria – “aquele bichinho de Angola sempre a morder”. E tanto mordeu que regressou.Enfrentou “o ódio inicial” de quem olhava para ele como um “pula” (branco) indesejado, mas acabou por ficar. Casou, segunda vez, com uma angolana, de quem tem dois filhos, trabalha arduamente numa firma de materiais de construção e também dorme num contentor. Quando chega o fim-de-semana, desforra-se numa caçada ou numa memorável pescaria no Mussulo ou no Cabo Ledo – “Aqui vive-se mais”, remata.
Angola, de novo
Quando José Sócrates visitar Luanda, a 4 de Abril, vai encontrar um país em euforia económica. Acabada a guerra, esta é a terra de todas as oportunidades. Até a caótica Luanda está a mudar