Não se sabia que Fernando Ulrich, atual chairman do BPI e CEO do mesmo banco entre 2004 e 2017, era adepto de corridas de automóveis mas, perante a juíza que preside ao julgamento do chamado cartel da banca, recorreu a esse desporto motorizado para explicar o funcionamento da concorrência. “Em todos os negócios, as empresas fazem tudo o que podem para perceber o que os concorrentes andam a fazer”, disse o gestor, pedindo à juíza Mariana Machado que imaginasse uma corrida de Fórmula 1 em que os pilotos conduzissem com os olhos vendados, sem que pudessem utilizar os espelhos retrovisores. “À quinta volta, ou estavam todos mortos, ou então, para sobreviverem, teriam de seguir a 60 km/hora em vez de seguirem a 300”. A metáfora serviu-lhe à justa para explicar que “nas empresas é a mesma coisa. A gestão de olhos vendados, que alguns parecem defender, não existe.”
O “bancário” – como se apresentou em tribunal – foi ouvido como testemunha nesta terça-feira, dia 15, no Tribunal da Concorrência, em Santarém, durante o julgamento dos recursos das coimas de €225 milhões aplicadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) a 12 bancos nacionais devido à troca de informação considerada “sensível”. Segundo o regulador, durante onze anos, os bancos partilharam informação sobre condições comerciais, nomeadamente sobre os spreads praticados no crédito à habitação, crédito ao consumo e até crédito às empresas, uma prática que a AdC considerou “inaceitável”.
Na sala do tribunal, foram já ouvidos representantes de algumas das instituições acusadas, mas nenhum antigo ou atual presidente de banco tinha viajado até Santarém para responder às perguntas da juíza – nem está previsto que mais algum o faça. Mas Ulrich entendeu que o seu “dever” era estar ali. “Fui o responsável do banco [BPI] durante o período da investigação [da AdC], com responsabilidades executivas sobre a banca de retalho”, explicou. Ao contrário de outros que ou mudaram de banco, “ou estão reformados, ou já não estão entre nós, eu tenho saúde, estou no banco, tenho a possibilidade de estar aqui, de dar a cara”. Mais à frente, esclareceu: “Não vim cá dizer que não me lembro ou que não sabia.”
Esta não foi a primeira vez que Ulrich se deslocou a Santarém. No passado dia 9, assistiu durante oito longas horas ao depoimento de João Cardoso Pereira, economista sénior da AdC. Mas aquilo que ouviu não lhe agradou, a avaliar pelos gestos e acenos de cabeça que ia fazendo quando discordava das afirmações do perito.

Houve troca, mas não prejudicou
Em relação à matéria em julgamento, o gestor esclareceu que, com base na sua já longa experiência de cerca de 40 anos na banca, se lhe perguntasse qual o segmento mais competitivo, que maior valor cria e que melhor serve o cliente, responderia que “é o crédito à habitação.”
Partindo de um argumentário de quatro pontos, que apresentou ao longo de cerca de duas horas de audiência, Fernando Ulrich declarou-se a favor da troca de informação e da transparência, neste e noutros setores de atividade, desde que tal não infrinja as leis da concorrência nem prejudique os consumidores. O gestor defendeu a criação de “uma entidade independente” que recolhesse e centralizasse a informação, “com regras”, e que a tornasse pública junto de “clientes e concorrentes” – um pouco à semelhança do que a CMVM faz em relação às entidades que supervisiona (seguradoras, fundos, etc). Essa seria uma forma de evitar aquilo que “algumas pessoas fizeram, nos bancos, para serem simpáticos para com os colegas, convencidos de que não tinha interesse nenhum.”
Afirmando ter lido “várias centenas”, mas não a totalidade das 900 páginas da acusação da AdC, o gestor disse não ter encontrado uma prova de que algum consumidor tivesse sido prejudicado pelo comportamento dos bancos em matéria de crédito à habitação. “Isso não existe em lado nenhum. Nem nas oito horas que o economista da AdC passou aqui [a depor].”
Confessando que, nesse dia, saiu “frustado” do tribunal, por não ter ouvido “nenhuma explicação” para o que está escrito na acusação da AdC, entidade que acusou de querer não só condicionar a opinião pública contra a atuação dos bancos, como também de lhes aplicar coimas chorudas – a do BPI atinge 30 milhões de euros. Sugeriu, por isso, que a AdC deveria ter chamado os bancos, para os admoestar ou para lhes aplicar coimas mais baixas, à semelhança do que faz o Banco de Portugal, resolvendo o assunto em menos de um ano. Ao fim de tantos anos, “já não é possível ter uma conversa com quem tinha responsabilidades” na maioria dos bancos em causa.
Sem nunca negar que houve troca de informação entre os bancos, Ulrich disse várias vezes não conseguir encontrar nenhum problema nessa prática, uma vez que a lei da concorrência diz que as trocas de informação “são proibidas quando destinadas a impedir ou restringir a concorrência”, o que é algo que diz nunca ter acontecido. “Considero que a prática dos bancos não era proibida porque não tinha a intenção de lesar clientes ou concorrentes. Não houve um consumidor prejudicado”, disse ainda. Defendendo que a lei deve ser clarificada, deu o exemplo dos EUA, onde a lei “proíbe as trocas de informação, ponto”.
Para convencer a juíza de que os bancos nunca combinaram nada entre si, Ulrich trouxe para a sala de audiências o seu passado na banca. “Já repararam na conflitualidade entre bancos e os seus responsáveis, entre o quais eu me incluo?”, perguntou. De seguida, recordou alguns episódios marcantes, como a tentativa de fusão entre o BPI e o BES, anulada unilateralmente na véspera da Assembleia Geral. “Acha que isso não deixou feridas, e que a seguir ficámos todos maiores amigos e andámos a conspirar para fazer mal aos clientes? Não passa pela cabeça de ninguém…” Referiu ainda as suas divergências com o ex-líder do BES, Ricardo Salgado – que até lhe valeram um corte de relações com “um grande amigo, que hoje é Presidente da República, mas que na altura era comentador e que me criticou por atitudes que tomei”, provocando sorrisos entre os muitos advogados presentes.
No final da audiência, foi decidido efetuar uma investigação a um eventual atestado médico falso que tem mantido arredada do tribunal uma antiga funcionária bancária que as autoridades nem sequer conseguem notificar, dada a sua ausência do domicílio habitual. O julgamento em Santarém caminha para o final, com as alegações finais marcadas para os dias 21, 23, 24, 25 e 28 de fevereiro. A sentença deverá ser emitida em abril.