Para muitos portugueses, os últimos tempos talvez pareçam estranhos. Depois de anos duríssimos de crise, em que cada décima de redução do défice era dolorosa, o Governo de António Costa tem continuado a equilibrar as contas – rumo ao excedente de 2020 –, ao mesmo tempo que apresenta medidas de alívio e de estímulo aos rendimentos.
Como Mário Centeno conseguiu gerir essa aparente contradição? A resposta não é o “fim da austeridade” nem a “austeridade escondida”. Não há explicações secretas. Se olharmos com atenção, os números do Orçamento do Estado contam a história orçamental destes cinco anos. O ministro das Finanças conseguiu manter a trajetória de descida do défice, mesmo com a pressão de necessitar da aprovação de outros partidos, mas também foi bafejado pela sorte na evolução da conjuntura externa.
Se a gestão orçamental desde 2015 fosse um cocktail, levava uma grande dose de crescimento económico, misturada com controlo férreo da despesa para dar acidez e com doces políticas do BCE, a que se acrescenta um toque de impostos indiretos e cativações. Agite bem sem deixar crescer muito o investimento público e chega ao primeiro excedente orçamental desde 1973. Estes são os ingredientes de Mário Centeno:
CRESCIMENTO DA ECONOMIA
Provavelmente nenhum fator foi tão importante para a redução do défice. A economia portuguesa acelerou a partir de 2016 para níveis inesperados. Por exemplo, o governo inscreveu no orçamento para 2017 uma previsão de crescimento de 1,5%. Hoje sabemos que a economia cresceu 3,5%. É uma diferença enorme. Mais crescimento significa mais emprego e, por sua vez, mais receita fiscal e contribuições (e menos gastos com subsídio de desemprego).
O período em que Portugal teve de reduzir o défice durante uma recessão profunda pode ter criado a ideia de que o défice só desce com novas medidas dolorosas. Mas nem sempre é assim. Se a consolidação for feita em tempos de crescimento, ela é muito menos exigente. É um pouco como empurrar uma pedra gigante numa reta ou numa subida muito inclinada. Custa na mesma, mas o esforço é diferente. Como o défice é medido em percentagem do PIB, é possível que caia mesmo sem medidas. Pode até gastar mais. O Governo dirá que o crescimento não foi uma questão de sorte, mas o resultado das suas políticas, mas nem os mais otimistas dentro do Executivo esperavam um vento tão favorável.
TURISMO
Um dos principais responsáveis pelo crescimento. Numa primeira fase ajudadas pela insegurança nos destinos do Norte de África, as exportações de “viagens e turismo”, aquilo que os turistas estrangeiros gastam em Portugal, saltaram de 6,5% para 8,3% do PIB, entre 2015 e 2018. Isso traduziu-se em mais visitantes mas também em gastos médios mais elevados. Foram construídos mais hotéis (ou Airbnb), renovados imóveis e contratados trabalhadores. Essa indústria deixou de estar tão dependente “do sol e da praia” e tornou-se competitiva à escala global.
O controlo apertado da evolução da despesa tem sido a principal arma orçamental do ministro das Finanças
CONTROLO DA DESPESA
Chegamos às variáveis sobre as quais o Governo tem mais controlo. A história central da gestão orçamental é o garrote que o ministro das Finanças colocou sobre a despesa. Em todos os anos, houve o cuidado de impedir que o aumento dos gastos superasse o crescimento da economia. Ia subindo, ma non troppo. O Governo tomou posse com uma despesa pública total equivalente a 48,2% do PIB e prevê para 2020 que ela se fixe em 43,3%. É uma diminuição de quase cinco pontos percentuais, o que significa que o Estado terá, no próximo ano, o peso mais baixo em 20 anos. Por contraste, a receita tem flutuado um pouco, mas está praticamente igual a 2015 (-0,3 pontos). Quase toda a consolidação tem vindo da travagem da despesa.
INVESTIMENTO PÚBLICO
Nenhuma rubrica teve um desempenho tão desapontante nos últimos quatro anos como a do investimento público. Depois de ter colapsado em 2016, a recuperação tem sido muito lenta, falhando sucessivamente (e por muito) os objetivos fixados pelo Governo. O OE 2020 prevê que o investimento avance para 2,3%, mas esse valor já estava inscrito no OE 2019… e no OE 2018. Este desvio, mesmo que não seja propositado, deu uma ajuda ao défice.
NÃO DESCIDA DE IMPOSTOS
O Governo avançou com algumas medidas de alívio de impostos diretos – por exemplo, as recentes alterações aos escalões de IRS –, mas grande parte delas foram sendo “anuladas” por ligeiros agravamentos numa série de pequenos impostos, quase todos sobre o consumo. O OE 2020 sintetiza bem aquilo que foi a tendência ao longo da legislatura anterior. O executivo alivia famílias e empresas – por exemplo, com o aumento da dedução de IRS para filhos com menos de 3 anos e com o alargamento da taxa reduzida de IRC –, mas também as penaliza com um agravamento do imposto de selo sobre o crédito ao consumo e “medidas de incentivo à descarbonização”. Quando se somam todas as medidas do lado da receita, chegamos a um alívio muito ligeiro de 72 milhões de euros. Um indicador que recebe cada vez mais atenção é a carga fiscal, que tem renovado máximos nos últimos anos. Contudo, é importante dizer que mais carga fiscal não significa que os contribuintes estejam a pagar mais impostos. As contas do Banco de Portugal confirmam que as alterações legislativas não contribuíram para o seu agravamento. No entanto, mostram que diminuir o peso dos impostos na economia não é uma prioridade para este Governo.
BCE, investidores E Banco de Portugal
O Governo beneficiou de uma conjuntura externa bastante favorável. Não só apanhou uma economia internacional em expansão, como um Banco Central Europeu (BCE) a insistir numa política de juros em mínimos e sem desistir de medidas não convencionais. Isso contribuiu para a descida da fatura anual com juros, uma das rubricas que mais ajudaram na redução do défice orçamental. O Governo argumentará que esse alívio se deveu à sua atuação na credibilização da gestão orçamental junto dos investidores, mas dificilmente o resultado teria sido tão positivo sem o dedo do BCE. Além disso, Centeno tem também beneficiado do reforço dos dividendos. Entre Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos, o Estado receberá mais de 700 milhões em 2020.
CATIVAÇÕES
Há cinco anos, a maioria dos portugueses nunca tinha ouvido falar em cativações. Daí para a frente, a expressão passou a ser sinónimo de “cortes escondidos”. Na realidade, as cativações normalmente não correspondem a cortes. Podem, isso sim, implicar que determinado serviço venha a receber menos do que estava orçamentado. E esse é um poder muito importante para o ministro das Finanças. Em 2016, foi aquilo que permitiu cumprir as metas de défice, depois de um primeiro semestre complicado. Nesse ano, foi atingido o recorde de cativações da última década e meia. Embora, daí para a frente, tenham deixado de estar em níveis historicamente elevados, elas deram uma ajuda importante ao sucesso orçamental do Governo.