Lembra-se de já ter visto antes este filme? Em ano de eleições, um Governo socialista decide reforçar a aposta em medidas que rendem votos – entre elas, aumentos da Função Pública –, mas que podem revelar-se imprudentes, devido a uma conjuntura externa mais adversa do que se julga. O PSD quer convencê-lo de que o Orçamento do Estado de 2019, acabado de aprovar na especialidade, é uma repetição do OE 2009. Na altura, o desfecho foi digno de cinema de terror: surpresas, dor, recessão e austeridade. Existem coincidências sedutoras entre os dois anos, mas 2019 chegará com uma conjuntura internacional muito diferente e com contas portuguesas mais equilibradas. A comparação faz sentido? A VISÃO foi olhar para os dois documentos e perceber o que aproxima e afasta os dois momentos.
“Infelizmente, o Orçamento é histórico, porque lembra o eleitoralismo nefasto de 2009 ou até de 1999”, afirmou o deputado social-democrata, António Leitão Amaro. Dias depois, foi o seu colega de bancada Adão Silva a bater na mesma tecla, num tom mais agressivo. “O partido socialista é useiro e vezeiro em prometer mundos e fundos, na véspera das eleições, para depois meter Portugal no fundo, no buraco, sobrando para os portugueses a austeridade”, avisou.
A menção a 2009 é tudo menos aleatória. Ao contrário do que o Orçamento assumia, esse ano acabou em recessão e deu o tiro de partida para um período de graves desequilíbrios orçamentais que, conjugados com a pressão dos mercados sobre a Zona Euro, resultou na intervenção da Troika, num desemprego recorde, em subidas de impostos e em cortes de salários e de pensões. Este é um trauma bastante vivo entre os portugueses. Lembrá-lo é também uma derradeira tentativa de colar o PS a José Sócrates – um flanco que Mário Centeno tem, até agora, mantido protegido.
“Há vários níveis de incerteza em relação a 2009 e a 2019, mas, como é um ano eleitoral, o Governo não deixou de fazer expansão orçamental, num momento em que há sinais contrários para as contas públicas”, explica Leitão Amaro à VISÃO.
Ambos os orçamentos serão aplicados pelo PS em ano de legislativas, não escapando ao adjetivo “eleitoralista”, utilizado pela oposição. Um argumento mais difícil de vender quando o défice está próximo de zero. “O OE de 2009 foi fortemente condicionado pelas eleições. Já (até ao momento) o de 2019 foi-o pouco, cedendo, sobretudo, naquilo que o Governo teve de conceder às gerações presentes de pensionistas, em detrimento das gerações futuras, no acordo com Bloco e PCP”, refere o deputado socialista Paulo Trigo Pereira. “De qualquer modo, um défice estimado de 0,2% é não eleitoralista e, a verificar-se, um acontecimento que será histórico.”
O simbolismo da comparação não escapa a Trigo Pereira. Um défice zero ajudará a apagar o carimbo de irresponsabilidade orçamental que acompanhava os socialistas desde a crise. “A gestão orçamental de Mário Centeno e da sua equipa marca uma mudança cultural que eu espero vir a consolidar-se no PS de António Costa e que se distingue do PS de Sócrates”, acrescenta.
Um mundo e um país diferentes
O mundo era um local diferente há dez anos. Embora o pior da crise ainda estivesse por chegar, o OE 2009 foi apresentado um mês depois da falência do Lehman Brothers e no meio da implosão do sistema financeiro internacional. O petróleo estava acima dos 100 dólares/barril (hoje, nos 73), cada euro valia perto de 1,5 dólares (1,2 agora) e as taxas de juro chegavam quase aos 5% (a Euribor a três meses encontra-se atualmente em terreno negativo).
Uma nova crise acabará por chegar nalgum momento, mas dificilmente terá a mesma violência da de 2008, que foi a mais profunda desde a Grande Depressão. O Orçamento de 2009 já apontava para uma estagnação na Zona Euro – que acabou por revelar-se uma recessão –, enquanto a estimativa para 2019, ainda que também assinale um abrandamento, aponta para um crescimento de 2,1 por cento. A diferença é importante, porque é aí que estão os principais clientes de Portugal.
Esse é um dos fatores que explicam o maior otimismo com a economia nacional. Enquanto Centeno conta com um crescimento de 2,2% no próximo ano, Fernando Teixeira dos Santos esperava apenas 0,6% para 2009, um valor considerado logo na altura por Paulo Rangel como “sobrestimado”. A realidade traria, de facto, uma recessão a Portugal.
Contudo, a crítica do PSD é especialmente dirigida à gestão das contas públicas, sugerindo que, tal como em 2009, estamos perante um Orçamento que assume medidas populares que podem revelar-se imprudentes. Nenhuma medida passou a simbolizar tanto isso como o aumento de 2,9% que o Governo concedeu aos funcionários públicos em 2009, o mais expressivo desde 2001. O reforço ficava acima dos 2,5% previstos para a inflação, mas, como os preços acabaram por cair nesse ano, ele representou um aumento ainda mais substancial no poder de compra dos trabalhadores do Estado.
Teixeira dos Santos reconhece hoje que algumas das medidas tomadas na altura poderiam ter sido diferentes. Em declarações recentes à Exame, o ex-ministro das Finanças afirma que, “se na altura tivesse a informação de que disponho hoje, há decisões que nunca teria tomado”. Quais? “O aumento de salários.” Para o próximo ano também estão previstos aumentos, mas mais modestos: o compromisso do Governo é com 50 milhões de euros de dinheiro fresco (a que se juntam mais €750 milhões, fruto do descongelamento das carreiras).
Ainda do lado da despesa, enquanto o OE 2009 contava com um reforço dos apoios sociais de 19,4% para 20,4% do PIB, para o próximo ano a expectativa é de estabilização nos 18,3%. Em relação à receita, 2009 foi marcado por outra medida emblemática: a descida do IVA de 21% para 20%, aplicada logo em julho 2008, mas este imposto voltaria a ser aumentado por Sócrates em 2010.
Claro que o número mais importante de contas públicas é outro: o equilíbrio entre receitas e despesas. E é aí que reside provavelmente a maior diferença entre os dois momentos. Para o próximo ano, o Governo espera ficar muito próximo de um défice zero (0,2% do PIB), depois de três anos em que cumpriu, ou até bateu, as metas com que estava comprometido com Bruxelas.
Em 2009, o objetivo do défice era bastante mais elevado. O Governo previa 2,2%, mas, meses antes de o ano acabar, essa estimativa já estava quase em 6%. No final de 2009 e perante algumas revisões de regras pelo caminho, esse ano deixou para a História um défice de 9,8% do PIB. Há um mundo de diferença entre 2009 e 2019. Isto significa que temos hoje mais margem para aguentar o embate de uma crise internacional ou interna?
“Em 2019 estaremos com crescimento e muito melhores no défice, estimando-se uma redução do peso da dívida para esta legislatura. O saldo orçamental e a taxa de desemprego serão muito melhores em 2019 do que eram em 2009”, nota Trigo Pereira. Além disso, “estamos mais bem preparados institucionalmente”. “Temos hoje instituições públicas independentes do Governo e projetos da sociedade civil que fazem escrutínios ao Orçamento e às previsões macroeconómicas”, acrescenta. A nível europeu, novos instrumentos e reformas, desde o Mecanismo Europeu de Estabilidade à União Bancária, deixam a Zona Euro mais protegida de futuras pressões, em caso de dificuldades em países e bancos.
O regresso do diabo?
É difícil ouvir as declarações dos deputados do PSD sem nos lembrarmos da narrativa central do partido nos primeiros meses do Governo de António Costa. Intervenções social-democratas davam a entender que esta solução governativa iria resultar numa nova crise gravíssima. Uma posição que ficou resumida numa frase que Pedro Passos Coelho terá dito à saída de uma reunião à porta fechada do PSD: “Vem aí o diabo.”
Hoje, sabemos que o diabo não veio e que o PSD ficou agarrado a uma narrativa ultrapassada. É será este um regresso a ela? Leitão Amaro faz questão de explicar que não é esse o objetivo. “Nunca me ouviu a fazer o discurso do diabo”, sublinha. “Por alguma razão, referi-me a 2009 e também a 1999. Não estamos a prever que vá haver um grande estrondo, mas queremos sublinhar a ideia da cigarra e da formiga. O inverno prepara-se no verão.”
Embora mais cauteloso, o PSD tem de encontrar um ângulo de crítica a um Orçamento que, a um ano das eleições, equilibra as contas ao mesmo tempo que aprova medidas de estímulo aos rendimentos. Enquanto o CDS argumenta que o OE 2019 traz austeridade escondida, os sociais-democratas defendem quase o oposto: que Centeno devia ter aproveitado os ventos favoráveis dos últimos anos para navegar mais rápido. “O Governo já devia ter um défice zero”, diz Leitão Amaro.
Talvez a comparação com 2009 seja exagerada. Não existem, em todas as décadas, crises como a de 2008, e o “normal” é a economia crescer e não estar em recessão. No entanto, isso não significa que a sugestão de maior prudência seja desprovida de sentido. A última crise deixou um legado perigoso para as contas portuguesas: uma dívida pública altíssima. Em 2009, o Governo previa que o endividamento do Estado pudesse ascender a 64% do PIB, ainda que, com mais dados e novas regras, tenha acabado por ficar em quase 84%. Atualmente, a dívida está acima de 121% do PIB, uma das mais altas do mundo. Um endividamento desta dimensão significa que o País está mais vulnerável, como Trigo Pereira reconhece. “O saldo orçamental quase equilibrado é muito importante. Porém, o peso das dívidas pública e privada e o crédito malparado são ainda fatores para grande vulnerabilidade”, avisa.
A verdade é que a economia europeia está a desacelerar e avistam-se nuvens cinzentas no horizonte: desde a possibilidade de uma guerra comercial aberta até à normalização da política monetária com juros menos baixos, passando por consequências mais nefastas resultantes do Brexit e pelo impacto do embate orçamental entre Roma e Bruxelas. O próximo ano parece trazer um filme menos assustador do que o de 2009, mas, se o ciclo se tiver invertido, convém não sermos os últimos a percebê-lo.