Fake news ou partilha de conhecimento? Manipulação da opinião pública ou esclarecimento da cidadania? Verdades alternativas ou rigor científico? Tolerância ou discursos de ódio nas redes sociais? Como um yin e um yang, a dualidade associada às evoluções digitais e à sociedade em rede foi comum às diversas intervenções de abertura da edição de 2018 do Web Summit.
“A Web transformou o mundo para o bem e para o mal,” admitiu o pai da rede mundial; “A tecnologia é que deve servir os humanos e não o contrário,” argumentou o governante francês para o digital; “A velocidade da mudança, boa e má, parece estar a acelerar,” definiu o fundador maior evento de empreendedorismo e tecnologia do mundo, Paddy Cosgrave; “Podemos ter sucesso fazendo o bem,” assumiu a responsável ambiental da Apple.
Duas vozes fizeram-se ouvir em particular esta segunda-feira em Lisboa. A de António Guterres, o secretário-geral da ONU, que condenou a associação entre armas e inteligência artificial. E a do pai da World Wide Web (WWW), Tim Berners-Lee, que defendeu um pacto para melhorar a qualidade do mundo digital.
“Temos o dever de consertar uma série de coisas que existem na atual Web. (…) O mundo precisa de uma Web segura diversa aberta acessível,” afirmou o cientista britânico perante a sala praticamente repleta do Altice Arena, com capacidade para 20 mil pessoas. Berners-Lee quer aproveitar já o ano que vem para isso: além de se cumprirem três décadas da invenção da WWW, em 2019 o mundo cruza o marco de mais de 50% do globo ligado à internet, ao passo que a outra metade se prepara para essa viagem.
Mais que um manifesto, com o #fortheweb o investigador pede um contrato com nove princípios para garantir que a rede seja segura, diversa, aberta e acessível. Aos cidadãos pede participação para criar conteúdos ricos, que criem e respeitem as comunidades e a dignidade humana num recurso aberto a todos. Já as empresas deverão proporcionar uma internet acessível em termos de preço, que respeite a privacidade dos clientes e se afirme como um bem público. Dos governos exige que dê condições de acesso à Web a todos e em todo o momento, garantindo o direito dos cidadãos à privacidade.
A Google e o governo francês foram pioneiros na adesão ao #fortheweb, que conta com mais de meia centena de subscritores, entre empresas, cidadãos e governos. “Temos de evitar o Wild West of the Web, evitar o abuso,” avisou depois Mounir Mahjoubi, secretário de Estado para o Digital de França, o primeiro país a assinar o contrato.
Máquinas que matam
Com um cenário de cubos de plástico empilhados e iluminados de azul e amarelo, foi debaixo de milhares de luzes das lanternas dos telemóveis que António Guterres chegou à sala. Mas nem assim o retrato que o “Senhor ONU” trazia consigo ficou menos negro. Criticou fortemente a associação de tecnologias inteligentes ao armamento e defendeu a interdição do uso de armas autónomas. “Máquinas com o arbítrio e a capacidade de tirar vidas são politicamente condenáveis, moralmente repugnantes e deviam ser proibidas pela lei internacional,” sustentou.
Apontou ainda o dedo à Web por, embora não os tenha criado, estar a permitir a amplificação de populismos, e defendeu que por outro lado o mundo tarda em organizar-se para enfrentar as consequências da maior automatização do trabalho na criação e destruição de funções e no aumento do desemprego: “Não estamos a preparar-nos suficientemente depressa para isso, é óbvio,” atirou.
Ficaram os avisos, mas na sala cheia de participantes nada que esmorecesse o entusiasmo com que encaram os próximos três dias. Luzes e som perfeitamente sincronizados, intervenções cadenciadas, curtas e estudadas, estimulavam os aplausos e gritos esporádicos. Como quando se anunciou a entrada de Paddy Cosgrave no palco. “Ninguém no mundo junta tantos empreendedores como a Web Summit,” disse o fundador do evento que este ano realiza a terceira edição consecutiva em solo português e que há um mês firmou a presença por mais uma década, num acordo de €110 milhões com o Governo. “Vai ser a nossa casa nos próximos dez anos,” reforçou.
Um projeto que (ainda) não é uma startup
Nos quatro dias desta edição, a organização espera que 70 mil pessoas cruzem caminhos entre a FIL e o Altice Arena, façam contactos, mostrem ideias de negócio, possam seduzir investidores ou abrir a porta a negócios. Entre eles está Daniel Tanque. Sentado nas primeiras filas, este licenciado pelo Técnico, mestre em Engenharia Informática e que teve uma bolsa do MIT Portugal, não vem só ver o evento: este ano está cá a dar a cara pelo seu projeto, a HeadExam.
“É um projeto, não é uma startup,” como faz questão de sublinhar. A ideia, explica, nasceu em 2015 como um hobby de faculdade, quando começou a juntar numa plataforma os exames nacionais de Matemática de acesso ao ensino superior, permitindo aos utilizadores a resolução de exercícios. Foi acrescentando funcionalidades à plataforma, como uma componente adaptativa que pudesse adequar a ferramenta às dificuldades de cada aluno, introduzindo entretanto também componentes de machine learning.
Este ano candidatou o protótipo ao programa Alpha da Web Summit, para projetos em fase inicial de desenvolvimento, e foi selecionado. E esta terça-feira vai poder apresentar a solução num espaço dedicado na cimeira de empreendedorismo e tecnologia. O próximo passo é procurar mercado (nomeadamente escolas privadas que queiram usar a solução para os seus alunos) e investidores que permitam dar escala ao projeto e expandi-lo a nível internacional.
Como num pitch
É também mundial a projeção que António Costa espera que o evento dê a Portugal na década que aí vem, depois do acordo feito com a Web Summit. Num sotaque britânico, entrecortado com apelos aos empreendedores nacionais, o primeiro-ministro voltou a fazer o paralelismo da inovação e empreendedorismo dos portugueses com a empresa dos descobrimentos levada a cabo há séculos, “ligando pessoas, culturas e bens” e abrindo “uma nova era de progresso global.”
“Da história aprendemos que os muros são prisões e que as pontes são caminhos para o futuro,” rematou na sua intervenção, fechada com mais luzes e som, palmas, abraços, caras de satisfação, milhares de confétis libertados na arena. Está aberta oficialmente a terceira Web Summit realizada em Portugal. A sala vai desmobilizando a caminho da Night Summit.
Daniel – que com outras dezenas de empreendedores participantes no programa Alpha tinha entretanto sido chamado por minutos ao palco para os últimos momentos do arranque do evento – regressa à cadeira nas primeiras filas com um sorriso nos lábios. O motivo: lá em cima, como se estivesse num pitch com investidores, apanhou Costa por um instante e explicou-lhe a importância que o projeto da HeadExam pode ter para o setor da educação. Esta terça-feira de manhã, na visita que o primeiro-ministro vai fazer à Web Summit, espera que António Costa passe pelo espaço onde está a demonstrar o seu protótipo.