Antigo cronista da VISÃO, Pedro Andersson é jornalista e responsável pela rubrica da Sic “Contas-Poupança”, onde são dadas dicas sobre como as pessoas e as famílias podem poupar em várias situações do dia-a-dia.
Neste livro, editado pela Contraponto e à venda por €14,40, o jornalista ajuda-o a poupar de forma inteligente, encontrando as melhores formas de fazer render mais as suas poupanças, de pagar menos pelo crédito à habitação ou de garantir uma reforma digna no futuro, por exemplo.
Transcrevemos parte do capítulo sete, dedicado aos automóveis e onde o autor dá dicas para não se deixar enganar em algumas situações e aprender a poupar enquanto conduz.
O seu carro tem o conta-quilómetros martelado?
Já tinha ouvido falar em conta-quilómetros martelados, mas nunca pensei que fosse um problema tão grave em Portugal. Estou absolutamente convencido que uma enorme (enormíssima) percentagem dos carros usados vendidos anualmente em Portugal têm os quilómetros adulterados. O seu será um deles?
Apercebi-me disso depois da reportagem do Contas-Poupança que fiz sobre o tema. Descobri que é possível pedir uma certidão no IMT (Instituto da Mobilidade e Transportes) com as quilometragens anotadas em cada uma de todas as inspeções obrigatórias de qualquer veículo em Portugal. Basta saber a matrícula. Não tem de ser o proprietário. Se eu quiser saber o histórico do seu carro, posso fazê-lo facilmente (e nunca saberá que tenho essa informação). Pago 30 € (ou 27 se fizer o pedido online, porque beneficio de um desconto de 10%) e fico a saber se o conta-quilómetros andou para trás em algum ano desde que o carro começou a fazer inspeções. Esta informação vale ouro se estiver interessado em comprar um carro em segunda mão.
Fiz a experiência com o primeiro carro que tive e que vendi há muitos anos. Fui presencialmente ao IMT e recebi a certidão em casa. Se tivesse feito o pedido online seria muito mais rápido e receberia o documento por e-mau. Verifiquei que não só chumbou muitas vezes (embora não saiba a razão), como deu para ver que num dado ano mais recente passou de cerca de 160 000 quilómetros para 110 000. Em apenas um mês, ficou 59 000 quilómetros mais novo.
Logo após a reportagem ter sido emitida, comecei a receber dezenas de mensagens de pessoas que confirmaram que também tinham sido enganadas em muitos milhares de quilómetros.
No caso de carros importados, há duas páginas europeias nas quais, pagando cerca de 10 €, pode também saber informações sobre o veículo antes de o comprar. São o www.autodna.com e o uk.vin-info.com. O VIN é o Vehicle Identification Number, ou seja, o número de quadro do carro (está no Documento Único Automóvel).
Nestas páginas europeias pode ainda encontrar o número de proprietários que a viatura já teve e os acidentes em que esteve envolvida e, em alguns casos, até tem as fotografias dos peritos da seguradora. Ora estas informações são importantíssimas caso esteja interessado em comprar um determinado carro usado, seja a um particular, seja num stand.
Um inspetor de um centro de inspeções contactou-me anonimamente dizendo que todos os dias apanha mais do que um carro com o conta-quilómetros adulterado.
Como há 200 centros em Portugal, se isso acontecer em todos, estamos a falar em mais de 50 mil casos novos todos os anos. É uma prática generalizada.
Só que não podem fazer nada porque não está nas competências deles. De acordo com a lei atual, as alterações nos conta-quilómetros não são consideradas falhas de segurança, logo não dão direito a reprovação. O incidente nem sequer é anotado na folha de inspeção. Em alguns centros anotam, mas unicamente para uso interno.
Após a reportagem, muitos dos que se aperceberam de que foram enganados confrontaram os vendedores (na maioria stands de automóveis) e partilharam na página do Contas-Poupança que os vendedores optaram por receber de volta o carro e devolveram o dinheiro ou trocaram por outro carro mas sem os quilómetros alterados. Medo do tribunal ou de ficarem com fama de «marteladores» de conta-quilómetros?
Em todo o caso, estas informações são sobretudo úteis para a próxima vez que pensar em comprar um carro em segunda mão. Não precisa comprar às cegas. É verdade que terá de gastar 30 € ou 12 € (se for um carro estrangeiro) mas acredito sinceramente que vale a pena esse «investimento» para garantir que não está a comprar um carro com mais 70, 80 ou 100 000 quilómetros do que o vendedor diz. Pode fazer a diferença não só no estado do veículo, como no preço.
CASO REAL
«Graças a esta reportagem, eu e o meu marido evitámos ser enganados três vezes (em stands e sempre carrinhas Renault Megane de 2014/2015). O primeiro, que era um achado, depois de tudo acertado para fechar negócio, depois de muitas conversas sobre estas aldrabices modernas, parecia-nos muito confiável e uma pessoa séria. Mas por descargo de consciência, através do AutoDNA, com o n° de quadro, descobrimos que a viatura foi vendida num leilão acidentada frontalmente, uma batida com danos muito extensos. Desistimos de imediato e o senhor disse que não sabia de nada… Claro que não!
Na segunda, aparentemente era um bom negócio – mas não um “achado” — porque achámos que “achados” poderiam ser sinónimo de aldrabice na certa; explicámos o que nos sucedeu com o quase negócio anterior, o senhor muito íntegro, muito sério, disse que ali não, trabalhava com transparência, e lá fomos seguindo, gostámos, negociámos. Não nos tinha sido facultado o n.º de quadro (porque sempre que falámos nisso o assunto, estranhamente, era desviado), mas achávamos que não haveria nada de mal e que era muita coincidência também aquela viatura trazer-nos surpresas, porque os valores não eram nada abaixo da média do mercado. Num momento de distração do vendedor (dono do stand), o marido conseguiu tirar foto do n.º de quadro, mas lá assinámos tudo, prontos para fechar negócio e ir buscar a viatura dois dias depois…
Mas ao chegar a casa, lá fomos investigar, novamente por descargo de consciência, e não é que o raio da carrinha também tinha sido vendida acidentada?
Passámos a pedir de imediato o n.° dos quadros e de mais duas que vimos, uma (a que mais gostámos), marcava 84000 quilómetros. Antes de qualquer perda de tempo com negociações ou entrega de documentação, com o n.° de quadro, descobrimos que a mesma já teve há uns meses atrás 190 000 quilómetros. Uma diferença absurda de mais do dobro dos quilómetros. Foi um desgosto. Ficámos atónitos, pensando que à terceira seria de vez, mas não foi. À quarta, enfim, já tudo bate certo e vamos agora fechar negócio.
Agradecemos mesmo por esta reportagem, pois sem a informação de que tivemos conhecimento através da mesma não teríamos descoberto os “podres” escondidos nestas vendas.
Muito obrigada à SIC e ao Pedro Andersson.»
O mito dos 200 000 quilómetros
Vários vendedores prejudicados pela concorrência desleal agradeceram a reportagem. Não é fácil convencer os clientes de que comprar um carro com 200 000 quilómetros pode ser um bom negócio. Parece que há uma espécie de contrato nacional segundo o qual os carros com mais de 200 000 quilómetros já não prestam. E não é assim.
Claro que a Certidão do IMT ou os relatórios dos sites internacionais não garantem totalmente a verdade dos conta-quilómetros. É que a primeira inspeção é só aos quatro anos. Um carro pode ter feito 150 000 quilómetros nos primeiros quatro anos e no mês antes dessa inspeção inicial tirarem-lhe 80 000 ou 90 000 quilómetros. Aí só consegue saber alguma coisa se contactar a marca e pedir a quilometragem em cada uma das revisões ou perguntar se teve avarias ou acidentes. Recebi relatos de pessoas que conseguiram descobrir assim que tinha havido falcatrua.
Outra coisa que pode falsear os resultados da certidão do IMT ou das inspeções no estrangeiro é que quem comete estes crimes pode retirar 10 000 quilómetros (é só um exemplo, podem ser outros valores) antes de cada inspeção todos os anos. Quem faz isto, fá-lo com toda a facilidade. Em 10 minutos adultera-se o conta-quilómetros. Basta ligar um pequeno computador ao carro e com um programa informático podem colocar os numeros que quiserem. Se quiser saber como é, tem dezenas de filmes no YouTube a explicar como é que fazem. É assustador.
Conselho de um vendedor honesto: «Se parece um negócio bom de mais para ser verdade é porque provavelmente não é verdade». Não se iluda. Tente confirmar sempre se os quilómetros são reais.
Há de facto bons negócios, mas são raros. Peça a Certidão de Inspeções Técnicas do IMT ou os relatórios dos sites europeus se for um carro importado. Contacte a marca e peça informações. Antes de comprar o carro, obviamente. Depois pode ser tarde de mais.
Não se esqueça de que pode também levar sempre o carro que lhe interessa a uma inspeção facultativa a um centro de inspeções. Pode levá-lo lí mesmo sem ser o dono da viatura. Paga a inspeção e fica a conhecer o estado geral do carro (e pode aproveitar para perguntar se há alguma quilometragem estranha nos registos deles. Se forem simpáticos dizem-lhe, mas não são obrigados a fazê-lo).
Com estes cuidados, pode poupar dinheiro e problemas.
Este texto é parte integrante da obra Contas Poupança – Poupe Ainda Mais, Invista Melhor.