A melhor coisa que Rui Vitória fez para ser campeão pelo Benfica foi ter saído… do Benfica. Parece confuso, mas é completamente verdade. Para o perceber, é preciso recuar uma década, ao tempo em que o padre António Pereira acabara de ser eleito presidente do Centro Desportivo de Fátima, decidido a dar um novo impulso ao clube que militava, então, na terceira divisão. Para liderar a equipa de futebol, pensou num jovem treinador que conhecera, anos antes, quando à frente do modesto Vilafranquense tinha eliminado o Fátima, da Taça de Portugal. O plano era bom, mas existia um problema: o treinador desejado estava a treinar os juniores do Benfica. Embora improvável, o negócio fez-se e ainda hoje o sacerdote não tem dúvidas: “Uma das melhores decisões que tomei na minha vida foi ter contratado o Rui Vitória.”
E o inverso também é verdade para o então jovem treinador que apenas tinha pedido como contrapartida a garantia de lhe darem uma “equipa competitiva”. Agora, à luz do que já sabemos, bem pode dizer-se que foi um chamamento quase divino a levar Rui Vitória para Fátima, pois a partir daí nada mais seria igual na sua vida.
Acompanhado de Arnaldo Teixeira, o seu adjunto de sempre, fazia todos os dias a viagem até Fátima de carro. Passado algum tempo, o clube cedeu-lhes uma carrinha, na qual Rui Vitória dava boleia a alguns jogadores, numa época em que tinha duplo emprego: era professor de Educação Física, de manhã, na Escola Secundária Gago Coutinho, em Alverca, e à tarde ia comandar os treinos do Fátima. “Nunca deixou de dar aulas enquanto cá esteve, porque o que nós pagávamos não dava para sustentar uma família”, graceja o padre António.
A generosidade da carrinha foi inteiramente justificada: logo na primeira época, subiu o clube à II Liga, feito que voltaria a repetir dois anos depois, na temporada de 2008/2009, quando, sob o seu comando, o Fátima conquistou o título de campeão nacional da então denominada II Divisão B, numa final frente ao Chaves, na altura orientado por outro treinador agora bem conhecido: Leonardo Jardim. Mas é na Taça da Liga que ganha visibilidade nacional. Primeiro, consegue eliminar o então bicampeão nacional FC Porto. E, na ronda seguinte, fica à beira de nova proeza quando vence o Sporting, em Lisboa. Embora tenha acabado por ser eliminado no jogo da segunda mão, essa sucessão de resultados fez despertar a curiosidade do mundo do futebol sobre Rui Vitória.
“Costumo dizer que o Rui fez o Fátima e o Fátima ajudou a fazer o Rui Vitória”, atira António Pereira, que recorda como, passadas algumas semanas, recebeu um telefonema de um amigo de Paços de Ferreira a fazer-lhe perguntas sobre o treinador que ele tinha ido buscar aos juniores do Benfica.
“Queriam saber se ele estava preparado para treinar um clube da Primeira Liga. Respondi-lhes que não tivessem dúvidas sobre isso. E que, se o contratassem, levavam não só um grande treinador como um grande homem”, diz o sacerdote, que ficou, desde então, amigo do homem a quem batizou as filhas mais novas e que, no último aniversário do clube, lhe ofereceu uma camisola do Benfica autografada por ele e pelo jogador Nélson Semedo, também ele antigo atleta do Fátima.
A carreira de Rui Vitória desde que chegou à Primeira Liga é a prova de que o padre António Pereira não se enganou quando o foi buscar aos juniores do Benfica e, depois, o recomendou ao Paços de Ferreira – de onde “saltou” para o Vitória de Guimarães e, há um ano, para o Benfica.
Em nome dos pais
Naquele domingo, 15 de maio, mal o árbitro apitou o final do jogo com o Nacional, enquanto o Estádio da Luz explodia de alegria, a primeira coisa que o treinador do Benfica fez foi olhar para o céu – um gesto que repetiu, mais tarde, quando pegou na taça. Na conferência de imprensa que se seguiu à festa no relvado, os jornalistas puxaram o assunto e Rui Vitória, como habitualmente, não lhe fugiu. “Os meus pais estão orgulhosos”, respondeu – assim mesmo no presente.
Para ele, o tempo verbal continua a fazer todo o sentido hoje como há 14 anos, quando, aos 32 anos, na véspera de entrar em campo como jogador do Alcochetense, recebeu a notícia de que os pais tinham morrido num acidente de viação. O que sentiu nesse momento, descreveu-o mais tarde logo no primeiro capítulo do livro A Arte da Guerra para Treinadores: “Tudo ruía à minha volta. Mas, como se costuma dizer, quando Deus fecha uma porta, abre uma janela, e embora um luto seja sempre um luto, que nunca se termina de fazer, não tive outra opção senão erguer a cabeça e continuar.”
Nos dias seguintes, foi tentando renascer das cinzas, conforme também escreveu: “Calcei as chuteiras e fui treinar. Correr. Suar. Sentir-me de novo parte de um todo maior que eu próprio.” Mas depressa percebeu que já não conseguia continuar a ser futebolista. Foi, nesse momento, uma semana depois da morte dos pais, que recebeu o telefonema que lhe abriu uma nova janela na vida: o presidente do rival Vilafranquense, Machado Lourenço, convidou-o a regressar ao clube onde havia jogado durante nove anos, desta vez como treinador.
Apesar do complicado momento pessoal e familiar que atravessava, nunca ninguém no clube lhe ouviu qualquer lamento sobre o sucedido. “É alguém que sabe separar muito bem a vida pessoal da profissional”, afirmou o antigo dirigente no verão passado, aquando da ida de Rui Vitória para o Benfica. “Já via nele um líder. Não é um treinador de gritos ou de palavrões, mas sabe impor o respeito pelas suas ideias.”
À mesma época que Rui Vitória dava os primeiros passos como treinador, também Pedro Castelo, 34 anos, se estreava como jornalista numa rádio local de Vila Franca, onde tinha a missão de acompanhar o clube da terra. “Notava-se no discurso que percebia muito de futebol e já tinha toda a paciência do mundo para falar com jornalistas”, recorda o atual diretor de comunicação do Vilafranquense, que no final dos treinos gostava de ficar à conversa com o treinador. Viriam a reencontrar-se já em pleno Estádio da Luz, durante a apresentação de Rui Vitória como treinador do Benfica, onde Pedro também estava, como repórter da Benfica TV. “Mal me viu, veio dar-me um abraço.”
Rui Vitória tinha 33 anos quando assumiu o comando do Vilafranquense, preparado para dirigir muitos jogadores com quem, ainda há pouco, partilhava os balneários como colegas. E não demorou muito a ganhar o respeito de todos, nem que para isso tivesse de deixar as relações pessoais de lado, como aconteceu num célebre jogo para a Taça de Portugal, frente ao FC Porto de José Mourinho, no Dragão, quando deixou no banco o amigo de infância Paulo Xavier.
Nada que surpreendesse quem o conhecia há mais tempo: a sua capacidade de liderança era reconhecida desde o tempo em que, ainda com idade de iniciado, foi nomeado capitão da equipa de juvenis do Alverca. Enquanto jogador, Rui Vitória nunca passou das divisões inferiores, em clubes como Fanhões, Vilafranquense, Seixal, Casa Pia e Alcochetense, nos quais era conhecido pela alcunha de “pés de chumbo”, não pela falta de talento mas antes devido à potência do remate.
A primeira liga, finalmente
Rui Vitória chegou ao principal escalão do futebol português em 2010. Para poder ir treinar o Paços de Ferreira, pediu uma licença sem vencimento na escola onde dava aulas, que se mantém até hoje. No ano de estreia pela equipa nortenha, terminou a época em sétimo lugar e chegou à final da Taça da Liga, perdida para o Benfica. Ainda iniciou a temporada seguinte no clube, mas foi desviado para Guimarães, pelo Vitória local, antes do campeonato começar. Em quatro anos à frente do clube, conseguiu por duas vezes o apuramento para as competições europeias e conquistou uma Taça de Portugal, frente ao Benfica de… Jorge Jesus. Mas o que realmente o destacou foi a forma como lançava novos jogadores, como os hoje internacionais Paulo Oliveira e André André.
Uma característica que mantém desde o início da carreira de treinador, como recorda Tiago Caeiro. A exemplo do que aconteceu esta época com Renato Sanches, também o atual avançado do Belenenses, hoje com 32 anos, era ainda júnior quando foi lançado por Rui Vitória na equipa principal do Vilafranquense. “Como era o melhor marcador, comecei a treinar com os seniores e passado algum tempo passei a ser convocado. Quando finalmente entrei, marquei logo um golo. Foi uma estreia perfeita”, sublinha o jogador, que lembra ainda outra característica de Rui Vitória, reconhecida por todos quantos trabalharam com ele: o “trato excecional”.
“Tinha ideias muito bem formadas e conhecia muito bem o jogo, mas o que mais me marcou foi a forma como tratava todos os jogadores por igual, sem fazer qualquer tipo de distinção”, reconhece Tiago, que nunca mais foi treinado por Rui Vitória, apesar de já se ter cruzado com ele por diversas ocasiões, sempre como jogador da equipa adversária.
Os ecos do trabalho em Guimarães depressa chegam lá fora. Em Itália, o jornal La Gazzetta dello Sport escreveu que ele era um “treinador mágico”, pelo modo como conseguia construir grandes equipas, com o pouco que tinha. E em Espanha até o compararam a Vicente Del Bosque, treinador campeão do mundo com a seleção espanhola, por não ter medo de apostar nos jovens. A ida para um clube de topo parecia assim cada vez mais próxima.
Sem nunca perder a cabeça
A odisseia benfiquista de Rui Vitória não começou bem. A uma pré-época aparentemente mal planeada, juntou-se a derrota na Supertaça, frente ao Sporting de Jorge Jesus e uma arrancada em falso na Liga.
“O Rui tem os pés bem assentes no chão e sabe fazer jogadores. Só precisava que lhe dessem tempo para fazer valer as suas ideias. Se calhar, se não fosse ele, jogadores como o Nélson Semedo ou o Renato Sanches ainda não tinham aparecido”, analisa o padre António Pereira, confessando que ele próprio chegou a ter dúvidas.
“Sempre achei que seria muito difícil ser campeão logo na primeira época, mas ele conseguiu-o. Espantou-me a velocidade, mas não o facto”, esclarece. Bastante mais, portanto, do que ficou com a resposta de Rui Vitória (ou neste caso a ausência dela) às constantes provocações de Jorge Jesus. “Foi uma das últimas vezes que falámos, disse-lhe apenas para não responder. O Rui não recebe lições de ninguém. Sabe estar na vida e isso viu-se na hora da vitória”, defende o padre.
Casado com a professora de Educação Física Susana Barata, Rui Vitória é pai de três raparigas, Joana, de 9 anos, Matilde, de 8, e Mariana, de 17, esta última fruto de um relacionamento anterior. E em breve será também de um quarto, desta vez um rapaz. Foi o próprio quem o anunciou, numa das poucas respostas que deu a respeito da polémica com Jorge Jesus. “Só sou pai de uma criança, que é a minha equipa. Ou melhor, de quatro, as minhas filhas e o bebé que vai nascer.” É caso para dizer que, pelo menos durante grande parte da época, Rui Vitória seguiu à letra alguns dos conselhos do general e filósofo chinês Sun Tzu que inspirou o seu livro: “Se o líder perde a cabeça como é que os soldados não se sentirão também eles perdidos?”
Talento- O fabricante de jogadores
Os benfiquistas Renato Sanches, Nélson Semedo ou Lindelöf foram só os últimos nomes de uma extensa lista de jovens jogadores que, pela sua mão, saltaram para a alta-roda do futebol. A aposta nos mais novos é uma das imagens de marca de Rui Vitória por todos os clubes onde passou. Foi assim no Vilafranquense, quando apostou no então júnior Tiago Caeiro, hoje avançado do Belenenses e foi assim no Fátima, onde construiu uma equipa feita de jovens jogadores vindos da formação dos três grandes, como o médio André Santos, que mais tarde chegou a jogar no Sporting e a representar a seleção nacional. Foi, no entanto, em Guimarães, devido às dificuldades económicas do clube, que melhor explorou o seu talento de fabricar jogadores, lançando nomes como Paulo Oliveira, André André, Ricardo Pereira ou Hernâni.