“Dizem que ele tem sorte. Tem, tem. Não é sorte, é trabalho. Eu fui dono de uma fábrica, durante 33 anos. Também tinha sorte: às seis da manhã já estava na empresa.” À vista, Armindo Dias, 82 anos, baixo, franzino e calvo, não podia ser mais diferente do alto e atlético Cristiano Ronaldo. Mas, no que os olhos não desvendam, os dois homens têm muito em comum: ambos nasceram em lares modestos, na província, despediram-se cedo da família, partiram sozinhos para Lisboa, emigraram e, com iguais doses de talento, perseverança e ambição, chegaram mais longe do que alguém se atreveria a sonhar. No dia 11 de junho, os dois portugueses deverão conhecer-se. Um será hóspede do outro, na cidade brasileira de Campinas, escolhida pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) para ser a sede da seleção, durante o Campeonato do Mundo do Brasil.
Campinas é uma metrópole com um milhão de habitantes – mais de 2 milhões, se levarmos em conta toda a área urbana envolvente – a pouco menos de cem quilómetros de São Paulo. Uma incaracterística cidade, desordenada, aparentemente impessoal, mas que concilia o espírito vibrante e acelerado das grandes urbes com a descontração e a familiaridade de uma pequena vila. Não se espera que a maioria dos habitantes pause as suas rotinas para receber os futebolistas portugueses. Afinal, o hotel onde a seleção ficará alojada situa-se longe do centro e a expectável apertadíssima segurança manterá os jogadores abrigados de olhares alheios. Há, no entanto, uma franja considerável da população que encara a presença dos pupilos de Paulo Bento com entusiasmo: a comunidade de cerca de 12 mil portugueses que vive na região. Gente que migrou para o Brasil sobretudo nas décadas de 50, 60 e 70 para montarem restaurantes, minimercados, padarias. Pessoas que a custo abandonaram Portugal – agora Portugal vai ter com elas.
Degrau a degrau até ao topo
De todos os portugueses, Armindo Dias é provavelmente o mais bem-sucedido. Nascido numa aldeia perto de Ansião (“Foi o meu sogro, na altura presidente da Câmara, que trocou o C pelo S, porque Ancião queria dizer velho, e ele não gostava”, garante), cedo aprendeu a arte do negócio. “Em 1945, quando terminou a guerra, o meu pai tinha uma mercearia, daquelas que vendia de tudo: sapatos, camisas, pão, manteiga. Mas era uma época difícil, essa. Portugal, aliás, sempre foi difícil. Somos pobres por natureza”, sentencia o empresário, num sotaque que ainda tem tanto de português como de brasileiro, apesar dos 58 anos que já leva em terras de Vera Cruz.
Aos 19 anos, Armindo, um de seis irmãos, foi para Lisboa fazer a recruta. “Com família grande, alguém tinha de pegar na maleta e ir embora.” Saído do exército, Portugal começou a parecer-lhe demasiado pequeno. “Queria partir para o mundo. Lá, não tinha espaço. Qualquer dia, morria.” Embarcou com 24 anos para o Brasil. “Havia muita gente da minha região e falava-se a língua. Muitos iam para o Canadá, mas aí teria de falar inglês ou francês.” Nos primeiros cinco anos, viveu em Salvador da Baía, onde se tornou representante e vendedor de uma marca de chocolates.
Em 1963, soube que alguém estava a vender uma fábrica de biscoitos em Campinas. “Chamava-se Doces Campineira. Eu comprei e troquei o nome para Biscoitos Triunfo. A fábrica cresceu. Passou de dez mil quilos por dia para 300 toneladas. Em 1992, já éramos líderes a nível nacional.” Em 1997, Armindo decidiu vender o negócio e, como não queria largar a cidade em que nasceram os seus quatro filhos, comprou o único negócio à venda na zona: um hotel. “Pertencia a uns americanos, mas eles não tinham capital. Naquela altura, eram nove mil metros quadrados. Ampliei para os 60 mil que tem hoje, e ainda estamos construindo mais 55 mil aqui ao lado.”
As condições e a localização do Royal Palms (a 15 minutos do aeroporto de Viracopos) convenceram a FPF. A coincidência de o resort ser propriedade de um português é apenas uma curiosidade com algum significado simbólico. Aliás, o coração de Armindo Dias está compreensivelmente dividido. “Sou naturalizado brasileiro. Gosto dos dois países. Se vier a ter um jogo entre os dois, vou torcer pelo que jogar melhor.”
Um pequeno Portugal
Sábado, 24 de maio, primeiro dia das Festas Juninas na Casa de Portugal de Campinas. Num espaçoso salão enfeitado com papéis coloridos pendurados no teto e repleto de mesas brancas e cadeiras de plástico, largas dezenas de pessoas mastigam postas de bacalhau assado, sorvem caldo verde e bebericam vinho do Douro. Ao fundo, no palco, atua um rancho folclórico. Num canto, numa banquinha vendem-se galos de Barcelos e rendas. A festa não seria mais portuguesa nem que toda a gente tivesse bigode.
Todos os fins de semana, até 12 de julho, serão assim, explica João Serra, 82 anos, cônsul honorário em Campinas. “A Casa de Portugal foi fundada em 1958. Havia aí uns portugueses, compraram um terreno e construíram o edifício de raiz. Esta era uma área de café, rica, e havia muitos negócios de portugueses aqui. Cafés, padarias… Tem graça: em Portugal, a tendência dos portugueses não é serem padeiros, mas aqui são. Em África, lembro-me, eram os gregos.”
Foi de África que João Serra, engenheiro de carreira, seguiu para o Brasil, em 1975. Empregou-se numa fábrica de asfaltos em Campinas e nunca mais daqui saiu, apesar das ofertas de empresas petrolíferas para mudar de ares. Entretanto, trabalhou para Armindo Dias e, há 30 anos, tornou-se cônsul. “Sou velho, mas não fui o primeiro: o consulado de Campinas já tem quase 200 anos.”
Hoje, a comunidade lusa encontra-se perfeitamente diluída na população, com as Festas Juninas na Casa de Portugal a constituírem um dos poucos momentos de plena portugalidade – mas igualmente apreciada por brasileiros, que ocupam uma boa parte do salão, atraídos por sardinhas e alheiras. “Só há uma coisa de que os portugueses não abdicam e que defendem com toda a força: o seu clube de futebol”, diz o cônsul. Por uma vez que seja, a chegada iminente da seleção unirá todos à volta da mesma equipa.
‘Quando cheguei, tinha piada de português’
Adelino da Ponte, 74 anos, deambula pelo salão, cumprimentando homens e mulheres com sotaques mistos. O empresário é presidente da Casa de Portugal e um absoluto estereótipo para brasileiros, que pensam que todo o português é padeiro: Adelino tem, efetivamente, duas padarias. Natural da zona de Pombal e imigrado no Brasil desde 1955, montou o seu primeiro ponto de venda de pão aos 23 anos, em Campinas. Atualmente, é proprietário de duas, incluindo a mais famosa da cidade, a Nico Paneteria. “Das 400 padarias da região, umas 50 são de portugueses”, calcula.
Adelino faz questão de dar a conhecer pessoalmente a sua padaria, no dia seguinte. Apesar de ter vivido apenas os seus primeiros 15 anos em Portugal – contra 59 no Brasil – a pátria original está por todo o lado, a começar pelos painéis publicitários nas janelas, com as bandeiras dos dois países e a frase “Portugal e Brasil, unidos num só coração”. O empresário vai apontando à esquerda e à direita. “Esta máquina veio de Guimarães. Aquelas são de Leiria. Este equipamento também vem de Portugal.” Por que razão importa tanta coisa do outro lado do Atlântico? “O material é melhor”, assegura, sem hesitar, como se fosse realmente a cabeça e não o coração a tomar estas decisões por ele. “Os portugueses daqui subiram na vida”, conta. “Quando cheguei, tinha muita piada de português. Não tem mais.”
Saudades é que ele e os seus compatriotas de Campinas não sentem, diz, porque saudades só surgem quando a pátria está tão longe que se torna inalcançável. “Antigamente sim, porque era difícil ir lá. Hoje é fácil. Ainda no verão passado, estive mês e meio no Algarve e na minha terra. Até os meus netos estão ligados a Portugal. E toda a gente fala muito da seleção portuguesa.”
Ao lado dos imigrantes, também os funcionários do hotel da seleção admitem estar entusiasmados com a presença dos jogadores portugueses. Ou melhor, de um. “O pessoal está feliz, é muito bom ter aqui o melhor do mundo”, congratula-se Renata Pimenta, coordenadora de marketing do hotel. O patrão, Armindo Dias, concorda, em parte. “É um jovem que se esforça muito. Sou um admirador e será um prazer conhecê-lo. Mas gostava mais de conhecer a namorada dele…” Infelizmente para Armindo, Irina Shayk não deverá acompanhar a comitiva.