O que tem feito nos últimos tempos?
Tenho estado muito ocupado com a escrita do próximo disco. Tenho trabalhado bastante, porque tenho resultados lentos. Há pessoas que escrevem muito bem e rápido. Eu escrevo lento, rasgo muito papel.
Quando leio o que escrevi no dia anterior, há sempre o perigo da auto censura — que, às vezes, até é desejável. No fundo, a escrita é uma grande exposição, fala-se do que se sente e do que se pensa e, de repente, parece-nos que estamos a explicar coisas a mais, que não devemos expor-nos dessa maneira.
Divido também o meu tempo, como sempre, a ler muita poesia, para aprender a escrever com os meus caríssimos poetas.
Quais são os que tem agora na mesa de cabeceira, ou de trabalho?
Tenho o Firmino Mendes, o Alfredo Vieira, e acabei de ler há uns tempos o Malaquias Marques. São poetas da minha geração, pouco conhecidos mas notáveis. Isto, sem esquecer outros clássicos: li há pouco tempo a obra completa de Ruy Belo. E leio prosa também, sobretudo textos ligados ao tema do meu disco novo.
Que é…
Não vou dizer… [Nota: Fausto estava a referir-se a A Ópera Mágica do Cantor Maldito, que sairia em 2003]. Uma vez, conseguiram, com habilidade, saber o que eu iria fazer. Estava a falar da minha trilogia sobre a
diáspora, que está decidida desde 1985 e que terminará lá para 2004 ou 2006, e acabei por dizer que tinha como projeto fazer uma ópera sobre o 25 de Abril. E quando a gente revela cedo de mais as coisas, o que
acontece é que, às vezes, elas não acontecem… Esta, por exemplo, não aconteceu porque algum tempo depois vi anunciada uma ópera sobre o mesmo tema. Parecia que estava a agarrar uma coisa já feita, que
me estava a aproveitar. Desmotivei-me. E ainda não ganhei distância suficiente em relação ao 25 de Abril, muitas das personagens que marcaram a revolução são minhas amigas…
Mas o que pode dizer sobre esse disco novo?
O disco que estou a escrever, e que espero que seja editado no ano 2000, saiu um pouco do tal projeto da ópera. Não fala sobre o 25 de Abril diretamente, não é ideológico, que eu a isso não volto, ficou com a canção de intervenção… Recupero é uma linguagem política, de análise, os discursos políticos como eram feitos antes do 25 de Abril – metafóricos, de certo modo. Mas que não deixam de ser uma linguagem
política. Nos últimos tempos tenho feito discos que são mais de reflexão cultural, ainda que o lado político também lá esteja, naturalmente, por exemplo em Soldados de Baco, no Crónicas da Terra Ardente. Mas este novo disco é mais de reflexão política do que cultural, é isso que posso dizer.
E como se tem encontrado a si próprio, 25 anos depois do 25 de Abril? Concorda com a frase de Saramago quando diz que sem o 25 de Abril estaríamos mais ou menos na mesma?
A única coisa que o 25 de Abril trouxe foi a liberdade, ainda que condicionada, como é natural. Estamos num regime democrático, e o outro não o era. Há essas diferenças, que são grandes. Mas, do ponto de vista da resolução dos problemas das pessoas, acho que é uma desilusão para todos nós. Atirámos com juventude nossa para becos repletos de seringas, para parques de estacionamento de automóveis… Do ponto de
vista económico, foi uma desilusão. Recuperaram-se realidades que pertenciam ao antes do 25 de Abril. Há um forte desencanto da minha parte, claro que há. Não só não resolvemos os problemas das pessoas com até os agravámos, de certo modo.
Fala em “nós”. Sente que a sua geração é responsável?
Em certa medida, tem de ser responsabilizada por isso, até porque está agora a chegar ao poder. Mas ainda há tempo de fazer alguma coisa. Eu noto uma diferença enorme entre este Governo e o anterior [António Guterres era, então, primeiro-ministro e tinha sucedido aos governos de Cavaco Silva]. São completamente distintos, há uma maior humanização dos seus atos, outra preocupação – como aconteceu, por exemplo, com a questão do rendimento mínimo garantido, que determinadas forças de direita não pretendiam e que, sabe-se hoje, resolve muitas situações desesperadas de famílias. Há uma diferença muito grande. Esta geração que chega agora ao poder, representada pela esquerda, acho que pode fazer muito mais para solucionar problemas graves.
Afinal, está optimista…
Começo a verificar que há diferenças, o que já é bom. Mas é preciso fazer mais: reformas que tenham em conta uma juventude que está completamente desorientada e desamparada, em termos de ensino e da
aplicação prática dos seus conhecimentos numa sociedade muito modificada.
A integração europeia entusiasma-o?
No meu álbum Para Além das Cordilheiras, digo um pouco o que penso desse reencontro de Portugal com a Europa. Não adopto a posição crítica, de uma certa esquerda, à União Europeia. Como grande espaço, ela é, em si mesma, positiva. Mais vale que os países se juntem e se aproximem do que estejam separados, com rivalidades que já foram extremamente perigosas na Europa. O que eu ponho em causa são as políticas que essa União pode adoptar. As políticas neoliberais deram os resultados nefastos que deram… São de tal maneira devastadores que até são constatados pela Igreja Católica, que levanta a voz para dizer
“cuidado com os exageros”. O neoliberalismo é um eufemismo que significa apenas capitalismo selvagem, puro e duro. É urgente uma política mais humana, que não tenha apenas em conta os lucros enormes.
E África? É uma questão resolvida para si? Como olha hoje para a sua Angola natal?
A África é um panorama desolador. Fui há dois anos a Angola e confesso que foi uma autêntica descida aos infernos. O que eu vi foi uma população completamente abandonada a si própria, porque provavelmente os governantes não têm tempo para governar, têm de se dedicar ao esbulho e à tomadia durante as 24 horas do
dia… É arrasador para quem conheceu Angola noutras situações. África, em geral, está assim devido à guerra entre os grandes grupos económicos. Os interesses que ali estão instalados conseguem com mais eficácia explorar as riquezas que África tem com aquela população toda em guerra. Dividir para reinar. Depois da independência, inevitável, nunca contei que aquilo pudesse atingir este drama. A população sofre horrores e há elites instaladas num clima de guerra a quem não interessa a paz.
Há dois anos, visitou os seus sítios, o Huambo?
Não saí de Luanda, não tive oportunidade.
“Foi no Huambo que me comecei a aperceber do mundo, das coisas, foi onde estudei e fiz o liceu… E o que vi na televisão é horroroso. Ver a Avenida 5 de Outubro naquele estado é terrível. Destruíram aquilo completamente”
Mas tem vontade de ir ao Huambo?
Não. Não. Consegui ver imagens há pouco tempo na televisão e aquilo é uma cidade que praticamente já não existe. A mim dói-me muito ver aquilo naquele estado. Foi lá que a minha mãe ficou, vivi lá até aos meus 18 anos, é a cidade da minha infância e da minha adolescência. Foi no Huambo que me comecei a aperceber do mundo, das coisas, foi onde estudei e fiz o liceu… E o que vi na televisão é horroroso. Ver a Avenida 5 de Outubro naquele estado é terrível. Destruíram aquilo completamente. Nada a fazer… Mas as responsabilidades, agora, são dos novos governantes. Angola já não pode continuar a dizer que
estas guerras têm raízes no colonialismo. Não há que desculpar estes novos governantes, apesar de eles serem, de certo modo, paus-mandados.
Participou na Guerra Colonial?
Fui refratário. Quando estava no 5.° ano, ganhei as eleições para a associação académica. Mas não fui homologado, individualmente. A Pide informava o Ministério da Educação e havia uma seleção nome a
nome dentro das listas. E apesar de ter bom aproveitamento escolar, fui compulsivamente chamado para a tropa. E era logo colocado no pior sítio! Aquilo era para matar mesmo. Não me apresentei. Andei durante um ano e meio, em 1971/72, semiclandestino aqui em Portugal. Depois, um amigo conseguiu meter um pauzinho
na engrenagem, e oficialmente a situação ficou resolvida. Entretanto, aconteceu o 25 de Abril e chamaram-me novamente para a tropa, para soldado r aso! Faltei outra vez e fui considerado desertor. Mas nessa altura
as coisas já eram mais fáceis. Tudo acabou bem, e posso dizer que tenho a situação militar resolvida. Pertenço ao exército de reserva territorial. Não tive nunca coragem de ir para o estrangeiro, como muitos colegas fizeram. Sabia que não ia aguentar o exílio.
Começou a dedicar-se à música e a gravar antes do 25 de Abril…
Comecei a compor quando tinha 13 ou 14 anos, coisas sem valor… Gravei um disco em 1970, e só queria era que o meu pai não soubesse. Ele dizia que eu tinha vindo para aqui estudar, não era para tocar. Até hoje,
nunca falei com ele sobre o facto de ter abraçado a música como profissional. Nem ele me perguntou coisa nenhuma… Claro que acabou por saber tudo, mas deve ter optado por não falar do assunto. Nunca falámos.
Ser músico em Portugal ainda é uma profissão de alto risco. Pessoalmente, não me posso queixar, sempre fui vendendo discos. Mas há muitos músicos, e muitos deles bons, que vivem com dificuldade – como gostam muito de música fazem sacrifícios. Como eu, não há muitos cantores que vivam desafogadamente. Como também não há muitos escritores que vivam dos seus livros.
A sua geração, a nível musical, teve sempre uma renovação de público…
Quando toco para as pessoas, não lhes peço o bilhete de identidade, não sei a idade delas. Mas, pelo que me dizem e vejo no fim, há de 8 a 80, tudo misturado. No último concerto, na Torre de Belém, vi muita gente
nova e, ao mesmo tempo, gente de mais idade. Eu penso sempre, quando vou fazer um concerto, que ninguém vai aparecer. No Terreiro do Paço, tive a sensação: isto vai ser terrível! Parto sempre do princípio de que não vem ninguém. Ainda há pouco visitei a sala do Centro Cultural de Belém e pus-me a pensar nisso, no que vai acontecer ali. Depois, com a música a decorrer e a concentração, isso passa. O pânico passa De facto, a minha geração musical já tem alguma longevidade. Mas também, e excluindo-me, é uma geração de excelentes compositores.
Como foi a viagem?
Houve uma altura de grande cepticismo. Os anos 80, do ponto de vista cultural, foram dos mais pobres que houve em Portugal. O valor essencial era a novidade, o ser-se jovem, e isso era extremamente ridículo. A geração dos anos 90, nesse aspecto, é notável: muito mais livre, criativa, muito mais aberta em termos estéticos. Os anos 80 foram anos de recuperação de gestos de censura. O que fazia a rádio? E os jornais? Houve exclusão de pessoas, nomes a desaparecerem. Foram anos de ditadores de modas. Mas, quando algo como isso acontece, há sempre resistentes, e por isso muitas coisas foram transportadas para os anos 90 com êxito. Nos anos 80 foi raro aparecerem novos valores na música popular portuguesa. Agora, aparecem mais, e com projetos interessantes. O que significa que esta área vai continuar, e ainda bem. A nível cultural, em geral, aprecio muito mais o que está a acontecer neste momento do que nesses anos paupérrimos. Ainda que, por exemplo, o disco que contra minha vontade ficou como uma espécie de referência histórica, o Por
Este Rio Acima, tenha saído em 1982…
Contra a sua vontade?!
Sim. O Crónicas da Terra Ardente vendeu muito bem e a antologia Atrás dos Tempos também, são ambos disco de ouro. Mas o Por Este Rio Acima ficou como figura tutelar de tudo aquilo, e isso aborrece-me um bocado. Como se os outros discos não tivessem uma vida independente…
Uma pergunta obrigatória: não sentiu alguma responsabilidade por não tocar na Expo’98?
A feira já fechou! Acabou, o assunto está encerrado.
A sua ausência foi notada, e para algumas pessoas esse concerto ficou atravessado. Fazia todo o sentido…
Sabe uma coisa? Quando me dão um bom motivo para não fazer um concerto, eu agarro-o com as duas mãos. Estou sempre à procura de um bom motivo. Tanto, que esta ideia do concerto no CCB já vem de 1997…
“Quando me dão um bom motivo para não fazer um concerto, eu agarro-o com as duas mãos”
Mas em nenhuma noite sentiu vontade de subir a um palco da Expo?
Não, de modo nenhum. Não posso esconder que houve alguma insistência da parte de algumas pessoas que trabalhavam na produção de uma coisa chamada “Cantautores”. Mas eu já tinha o meu motivo para não ir lá: não podia fazer a produção desejada. Ou se fazia um espetáculo com um valor acrescentado em relação ao que normalmente apresento, ou então não valia a pena. Eu acho que a feira gastou dinheiro a mais nas obras, na pedra, e poupou nas ideias. O que eu posso dizer é que não atribuí nenhuma importância ao facto de não
ter tocado lá. Em minha casa sabem que até fiquei satisfeito e aliviado por ter encontrado um argumento forte para não fazer o concerto. Mas, já agora, as pessoas podem ficar a saber que estes concertos no CCB, em termos do alinhamento das canções, representam o concerto que eu teria apresentado na Expo. A produção, claro que não é a mesma, nem a sala o permitiria – lembro-me de que o projeto incluía cerca de 30 figurantes, era uma coisa grandiosa. Mas este vai ter as mesmas canções e com a mesma qualidade técnica, nas luzes e no som. Não fiz na altura, faço agora no CCB.
Não antipatiza com este edifício, obra do cavaquismo?
A antipatia gerou-se pelos dinheiros gastos a mais. Mas gosto do espaço. Não tenho antipatia nenhuma por ele.