Do alto dos seus 87 anos, Teresa Xavier é cliente habitual do Rei do Bacalhau. Vem todos os anos comprar bacalhau para a consoada na loja que tem portas abertas há mais de 60 anos.
“Já foram outros patrões”, contou à Lusa, mas agora, “que já partiram” é o senhor Fernando Dias quem comanda “a casa séria e boa”.
E é ele quem conhece os seus pedidos, já que se assume como “esquisita se o bacalhau não for bom”.
“Ele sabe do que eu gosto. Uma vez até me trouxe um com um lacinho no rabo”, disse Teresa Xavier revelando a cumplicidade existente.
A moradora na Rua da Prata reconhece que a Baixa Lisboeta “está agora diferente” e que tem desaparecido muita coisa também na Rua do Arsenal, lembrando um supermercado que existia um pouco mais à frente, “hoje em dia um hostel ou assim”.
José Ferreira, um outro cliente da casa, explicou à Lusa que mora perto e que já faz parte da tradição ir até ao Rei do Bacalhau, mesmo que não seja para levar o peixe seco salgado. Desta vez leva consigo uma garrafa de aguardente das muitas expostas que compõem a garrafeira da casa.
“Não sou fã de bacalhau, sou mais de carne, mas gosto de comprar as bebidas aqui, gosto de vir cá, gosto do atender deles, mas não sou cliente do bacalhau. Faz falta mais lojas destas tradicionais aqui na rua do Arsenal, desapareceram algumas”, disse.
José Ferreira vai ainda mais longe, considerando que fazem falta lojas tradicionais “a Lisboa inteira” e desabafa, argumentando que a cidade está a tornar-se “uma pequena Disney sem sentido, com os estrangeiros a virem ver estrangeiros”.
Anabela Piçarra segue as pisadas do pai, que já era habitual frequentador da loja, e voltou propositadamente para comprar “caras de bacalhau e figos”, outros produtos que se podem ver nas bancadas.
Há mais de 20 anos que Artur Coito vem dos Olivais à Baixa para comprar bacalhau. Na semana passada passou no Rei do Bacalhau para levar o repasto da noite de Consoada, agora voltou para levar para o filho que lhe “encomendou o serviço”.
“Venho aqui sempre que posso comprar bacalhau, três, quatro vezes por ano venho aqui. Se vale a pena? Sim, é caro, mas é bom, aqui sei que estou a comer bacalhau”, afiança.
Ali, o bacalhau é embrulhado no papel pardo pelas mãos de Fernando Dias e atado com cordel, para assim absorver a humidade e deixar o bacalhau respirar ao mesmo tempo.
“Há bastante gente a procurar-nos. Em princípio [as vendas], deve ser quase igual ao ano passado, mas nota-se que as pessoas queixam-se um bocadinho com o preço do bacalhau e a falta de dinheiro nas carteiras”, disse Fernando Dias, reconhecendo que, ao abrigo da isenção de IVA, o bacalhau até custa “menos que no ano passado”.
Fernando Dias diz não haver grande segredo para um bom bacalhau, mas vai revelando que é preciso “cortar as postas direitinhas, sem ficarem umas grandes e umas pequenas, tem de estar mais ou menos tudo homogéneo”, através da guilhotina que trabalha com mestria apesar de já lhe ter trilhado a cabeça de um dedo nestes dias.
Para uma família de 10 pessoas, para se fazer um prato de bacalhau à posta, há que ter um bacalhau de três quilos no mínimo, diz Fernando Dias, produto que andará à volta de 60/65 euros, mas para uma família de poucas pessoas “arranja-se um peixe mais pequeno ou só metade do bacalhau”.
Fernando Dias reconhece que a rua já não é o que era, primeiro com a lei dos arrendamentos que “virou isto para o turismo e hotéis” e depois, as acessibilidades, “pois agora só passam transportes públicos e, a determinada hora, veículos para cargas e descargas”.
“Eu acho que o turismo é uma mais-valia no nosso país, mas temos que ser condescendentes e vivermos todos juntos, os portugueses e os turistas. Nós até nos vamos aguentando, mas é complicado. Um café e um bolo levam-se na barriga, mas uma caixa de bacalhau com cinco ou seis quilos para algumas pessoas já é um bocadinho. Se houvesse acessibilidades melhores acho que trabalhávamos mais e tínhamos mais clientes”, revela.
Mais à frente, na mercearia Pérola do Arsenal, é Regina Rodrigues, que trabalha na firma há perto de 20 anos, mas na loja há cerca de 10, quem vai atendendo a clientela que entra.
Reconhece que “muitos já são antigos, outros novos que vêm com os pais, com a família e começaram a ganhar raízes”.
À semelhança de Fernando, Regina Rodrigues também não sabe quantificar a quantidade de bacalhau já vendida, ambos reconhecem que já foram “muitos, muitos quilos” e Regina avança mesmo que ainda se vão vender mais porque “até quinta-feira [hoje] ainda dá para demolhar para o Natal.
Para Regina Rodrigues, o segredo de um bom bacalhau é a cura: “tem de ser uma boa cura e estar amarelinho, muita gente diz que o bacalhau tem de ser branco, mas sendo amarelinho sabemos que tem cura de sal”.
A funcionária da Pérola do Arsenal reconhece também que o facto de a rua do Arsenal ser só para transportes públicos “afasta bastante” a clientela e lembra que, muitas vezes, os carros ficavam em segunda fila para as pessoas levarem o pesado pacote de bacalhau.
Regina Rodrigues chegou à rua do Arsenal quando só funcionavam quatro lojas de venda de bacalhau, agora estão reduzidas a duas e “o resto é tudo de ‘souvenirs'”, atirou, para os turistas que chegam cada vez em maior número e que levaram à mudança da vivência da rua.
Américo é fiel cliente da Pérola do Arsenal, trabalhava na zona e deixou de comprar em Coimbra para comprar na mercearia que existe desde 1952.
“Venho de propósito, moro em Santa Apolónia e venho de propósito”, disse, lembrando que há 10 anos, quando ainda trabalhava como condutor de uma camioneta, as coisas eram bem diferentes.
Revela a história que o bacalhau terá chegado a Portugal durante a Idade Média e, apesar da importância que tem na gastronomia portuguesa e dizer-se que há 1.001 formas de o cozinhar, o que por cá se come vem sobretudo da Islândia e da Noruega.
É este que é vendido nas duas casas que ainda resistem na Baixa de Lisboa. Quando questionada sobre o porquê da sua origem Regina é perentória em afirmar: “porque são os melhores e a gente só trabalha com o que é melhor”.
Para uma demolha perfeita, Fernando Dias aconselha que seja feita durante dois, três dias “consoante a espessura do peixe” e que as águas “bem frias” sejam trocadas diversas vezes para o bacalhau “não ganhar cheiros depois na cozedura”.
*** Rosa Cotter Paiva (texto), André Kosters (foto) e Hugo Fragata (vídeo), da agência Lusa ***
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