É crua a frase que dá título a esta entrevista. E, ainda por cima, é para ser entendida em sentido literal: João Tordo não entende a vida sem o que a escrita lhe dá. A propósito do seu mais recente livro, Manual de Sobrevivência de Um Escritor – Ou o Pouco que Sei sobre Aquilo que Faço (Companhia das Letras, 224 págs., €15,90), que estará nas livrarias na próxima semana, o autor – com 44 anos e mais de uma dezena de romances publicados – revela os meandros do ofício que escolheu, incluindo as angústias, as desilusões e as frustrações. A vida tal como ela é, portanto.
Sobre esta obra, podem dizer-se duas coisas contraditórias: por um lado, que se trata de um livro arrogante, de alguém que pressupõe ter algo para ensinar; por outro, que se trata de um livro humilde, escrito por quem se dispõe a assumir as suas fragilidades. Qual será a avaliação mais justa?
Julgo que este livro nasce mais da humildade, no sentido em que eu podia tê-lo escrito antes e não o fiz, porque achei que não estava preparado, que ia dizer coisas que não eram verdadeiras. Acho que não se trata de um livro arrogante mas provocador. Muitas vezes, vou dizendo: “Tu que queres escrever” ou “Tu que desejas ser escritor”. Quero apenas desafiar a pessoa que está do outro lado.
Em que circunstâncias começou a escrever este livro?
De todos os meus livros, este foi aquele que esteve mais tempo em preparação. Comecei a pensar nele em 2014, fiz alguns capítulos, mas depois percebi que, nessa altura, ainda não tinha maturidade para o escrever. Não o conseguia dizer em voz alta, mas se calhar não tinha experiência suficiente. Por isso, fui adiando, adiando… Já tinha muitos capítulos no computador, ideias um bocado desgarradas e, há dois anos, também fiz um texto para as Correntes d’Escritas que acabei por expandir. Fui unindo tudo isso ao longo de 2019.
Escreveu o livro que gostaria de ter lido quando começou a escrever?
Como digo no livro, entendo a escrita como um ofício. A escrita tem um lado que se deixa ensinar, um lado de transmissão de experiência, como faço com os meus alunos, por exemplo. Talvez por isso tenha escrito uma obra para o meu jovem “eu”. Quando tinha 22 ou 23 anos, ter-me-ia feito bem ler um livro assim. Seria alguém com mais experiência a dizer-me: “Olha, há estas dificuldades todas e eu também passo por elas.”
Um livro que lhe tivesse poupado algumas angústias?
Sim, alguém que me tivesse dito que não é possível ser-se escritor sem se passar por determinadas coisas. No mundo anglo-saxónico, onde vou buscar algumas coisas, existe a tradição das memoirs. Há livros desse género que acho muito interessantes, como On Writing, de Stephen King, ou Bird by Bird, de Anne Lamott. Percebi que, em Portugal, não há muitas obras como estas, que os escritores não costumam partilhar a sua experiência íntima de escrita. Há uma de Mário de Carvalho de que gosto bastante [Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão], mas é bastante técnica. Queria fazer um livro que fosse sobre técnica, sobre narrativa e que, ao mesmo tempo, tivesse um lado mais íntimo. Porque faço isto? Porque é que isto é difícil? Como é que se sobrevive? Quais são as emoções e os sentimentos que isto traz? Até me permitiu organizar as minhas próprias ideias.
O título – Manual de Sobrevivência de Um Escritor – não tem algo de enganador? Além de dirigir-se a aspirantes, também é para quem gosta de literatura…
Acho que sim, sem dúvida. Durante estes 16 anos que levo a escrever livros, uma das partes mais importantes foi a de estar com os leitores. E, nesses momentos, fui descobrindo que as pessoas se interessam imenso pelo processo de escrita. A pergunta que mais vezes me fazem é: “Porque é que escreve?” É uma pergunta simpática e, ao mesmo tempo, estranha, porque nós não perguntamos à maior parte dos profissionais porque eles fazem o que fazem. Não perguntamos a um advogado por que razão defende pessoas no tribunal, não é? Por isso, Manual de Sobrevivência de Um Escritor também é uma resposta a essa pergunta que me fizeram milhares de vezes.
Também fala muito de insucesso, de dinheiro, de sacrifícios. Um escritor é um resistente?
Isso tem que ver com outra pergunta que também costumam fazer-me: “Como se ganha a vida a fazer isto?” Como uma pessoa se predispõe a cumprir uma tarefa tão exigente, que tem poucas recompensas financeiras, que não traz estabilidade…? E que, no entanto, ao fim de tantos anos, ainda cá está. Todas estas questões fascinam-me.
Generosamente, mais do que exemplificar com os próprios livros, cita os autores de que gosta.
Julgo que isso tem que ver com aquela ideia de que só retemos as coisas se tivermos de as passar a alguém. Por isso é que, raramente, falo dos meus romances, mas falo muito dos romances alheios, dos romances dos outros, dos romances que me formaram. São aqueles que levo comigo para fazer aquilo que faço. E acho que, se não for passada, a mensagem acaba por definhar. Isto é um ofício e, como tal, tem uma parte técnica, uma parte artística. Mas tem, sobretudo, uma parte de humildade, de dedicação, de tempo, de fracasso. Um escritor também é uma pessoa que fracassa – e constantemente. Ainda no ano passado pus no lixo dois livros, porque não estavam a funcionar. Portanto, apesar destes anos, continuo a não saber fazer isto. Ainda hoje de manhã, quando me sentei para escrever, eram sete e meia, tive dez minutos de pânico. Não sei o que estou aqui a fazer, estou perdido no meio da narrativa, não sei para que lado vou.
Continua a sentir esse pânico, todos os dias?
Agora já consigo acalmar-me. Percebi que, ao fim de algum tempo, isto vai ao sítio. Mas, no princípio, não tinha essa experiência, entrava em pânico muito facilmente, desistia. Há uma frase de Joyce Carol Oates de que gosto imenso e em que o autor diz que o romance é uma doença para a qual a doença também é a cura. Se eu fosse, sei lá, um construtor de móveis, imagino que, se aprendesse a fazer o molde, aquilo saía quase sempre bem. Agora, a escrita literária tem um certo lado patológico, mexe com material humano, com emoções.
Que tipo de recompensas encontra, então, na escrita?
Há muita gente que sabe escrever e que escreve muito bem, mas são muito poucos aqueles que conseguem fazer vida disto, durante 30 ou 40 anos. Para mim, isso é muito claro. É preciso uma personalidade muito particular para aguentar este ofício durante décadas ou durante uma vida. Por isso, em primeiro lugar, a recompensa é ter este tipo de personalidade, é ter a mente ocupada com uma coisa que é fascinante e que, ao mesmo tempo, é enigmática. Essa resistência é o que me faz continuar. Se fosse fácil, eu não tinha qualquer interesse nisto.
Os leitores não são uma recompensa?
Os leitores são uma manifestação de uma enorme gratidão, mas, antes de ter leitores, eu já escrevia. Antes dessa recompensa, já cá estava a recompensa da literatura. Outro aspeto tem que ver com o facto de eu passar mais tempo com as minhas personagens do que com as pessoas verdadeiras. Pode parecer muito estranho, mas é através da ficção e das personagens (das que crio e das que leio) que vou percebendo o que isto de andar aqui, o que é o ser humano, o que é sentir determinadas emoções, observar determinado tipo de comportamentos.
É esse o poder da ficção: dar-nos uma verdade maior do que a vida?
Parece-me que isso é uma das coisas extraordinárias da ficção: dar-nos a verdade através de situações que não são reais. Ainda nesta semana, tive um exemplo disso ao ler Pessoas Normais, de uma escritora irlandesa chamada Sally Rooney. Ela conta-nos a história de dois adolescentes que se conhecem no final do Secundário e que, depois, pela faculdade adentro, têm uma relação. A verdade daquela história é tão poderosa, é tão pungente e tão verdadeira que me pôs a pensar naqueles tempos, na pessoa que eu era então. A literatura tem esse condão: pôr-nos em causa, ser um espelho, um diálogo.
Perante tantas dificuldades, ainda há dias em que pensa desistir, em ser cortador de madeira, como diz no livro?
Há dias em que penso que podia passar um tempo longe da escrita, que me fazia bem tirar um ano sabático, ir fazer outra coisa qualquer. E talvez ainda o faça… A questão é que a escrita é uma forma de autossatisfação, de autoconhecimento, de poder viver muitas coisas sem ter de vivê-las pessoalmente. Acho que teria muito menos apetência por estar vivo se não pudesse escrever. A minha vida seria bastante menos interessante. E eu próprio seria uma pessoa bastante menos interessante. Portanto, não quero contemplar a vida de outra maneira.
Os cursos de escrita continuam a ser um ganha-pão?
No princípio, foram um ganha-pão. Comecei a dar cursos relativamente cedo, não tinha grande motivação nem apetência. Com o tempo, comecei a gostar, a aprender com os erros dos meus formandos e também com os meus próprios erros (nem sempre os caminhos para onde eu os levava eram os melhores para eles…). Mas atenção: não gosto da expressão “escrita criativa”, não dou esse tipo de formações. Nos meus cursos, o que faço é pegar nos autores todos, muitos dos quais estão aqui neste Manual de Sobrevivência de Um Escritor, e lê-los.
Há bons escritores que não sejam grandes leitores?
Não, e nesta altura isso ainda faz mais sentido. Parece-me que, em Portugal, há muita a gente a ler, existem muitas pessoas que criam clubes literários, páginas na internet… Tenho a sensação de que o público leitor tem crescido bastante. Por outro lado, também há uma série de formas de expressão narrativa que são mais fáceis, Netflix, HBO, plataformas de streaming e tudo isso. Defendo que os livros não devem estar contra nada, mas um dos aspetos que eu considero fundamentais para quem escreve (ou para quem quer escrever) é perceber que nada disso substitui a leitura. Ver dez horas de uma série de televisão não substitui 100 páginas de um livro. Nem dez, sequer… É importante não confundir estes dois tipos de narrativas.
Um escritor que o queira ser tem de saber desligar?
Tem de desligar, não há outra hipótese, de outro modo não se consegue fazer. Se ler é uma grande chatice, uma enorme maçada e uma grande seca, então é melhor reconsiderar a vontade de querer escrever. Não dá, o autor não terá os instrumentos, a gramática, o vocabulário, os pontos de vista.
Tem de saber, inclusive, entediar-se, deixar-se aborrecer?
Sim, o tédio é importantíssimo.
Os livros não têm de estar sistematicamente a agarrar o leitor…
Isso é o vício que vem da televisão. As séries de televisão, salvo algumas exceções que são de facto extraordinárias, estão cheias de ganchos. Estão sempre a dar-nos rebuçados para não adormecermos.
Como tem vivido o confinamento?
Como estive nas Correntes d’Escritas, e por causa do Luis Sepúlveda que infelizmente faleceu, já estou em confinamento desde o dia 1 de março. Confesso que há um lado de mim que, no princípio, até gostou de estar confinado. No meu caso, este período do ano costuma ser o mais ativo, com viagens em Portugal e fora de Portugal, com idas a bibliotecas, a escolas, a festivais literários.
Então, tem sido um momento fértil? Já houve escritores que admitiram que a pandemia estava a ser bloqueadora…
Há escritores que são muito requisitados nesta altura, com viagens, conversas e encontros. Percebo que, para eles, a pandemia signifique uma alteração muito grande do seu modo de estar e que, de repente, seja complicado sair desse modo e entrar na escrita. Eu não tive esse problema; já estava em modo de escrita quando tudo isto aconteceu.
A pandemia terá implicações nesse lado, digamos, mais mundano da vida de um escritor?
Julgo que esta pandemia irá reestruturar a vida que se criou em torno do escritor. Gosto muito de ir a festivais literários, por exemplo, mas a verdade é que, em excesso, tudo isso pode ser prejudicial para os escritores. Já vi, no meu caso e no caso de outras pessoas também, como essas iniciativas podem transformar um escritor numa criatura nómada, ambulante.
Roubando tempo à escrita…
São os próprios escritores que roubam tempo de si próprios! Conheço autores que faziam 20 festivais por ano. Ora, não é possível uma pessoa estar 40 semanas em viagem e ter a ilusão de que vai escrever um grande livro. Penso que haverá um reequacionamento dessas coisas, uma redução substancial dessas atividades, um regresso àquilo que as coisas eram há 15, 20 anos. Os escritores vão poder ter mais tempo para escrever – e isso é bom.
Acredita que existirão também efeitos no modo como as pessoas olham para os livros, para o papel?
Neste momento, a pandemia está a ter implicações, porque o setor do livro esteve (está) parado e, de facto, a ausência de vendas traz enormes rombos para as editoras. Mas julgo que tudo é uma questão de tempo. Assim que as livrarias abrirem, os leitores estarão de regresso. A realidade portuguesa é muito diferente da norte-americana, onde a circulação de e-books já chegou a atingir os 50 por cento.
Sete regras para ser escritor
Alguns dos conselhos de João Tordo no seu novo livro
Ler
“Se queres escrever, não te limites a ver séries ou filmes. Lê. Lê. E lê.”
Amor
“Não escrevas sobre o amor. Ou: tenta não partir para a escrita com o amor em mente. Sobretudo, não escrevas sobre as tuas aventuras românticas. Ninguém quer saber quantas vezes te partiram o coração.”
Técnica
“Os bons romances aliam a arte à técnica. Vão abaixo da superfície das coisas, mergulham mais fundo do que os princípios, conceitos ou estruturas em que estão assentes. Porém, tal como na música jazz, convém saber os acordes antes de improvisar.”
Arriscar
“Não existe escrita literária sem vulnerabilidade, e esta tem os seus preceitos. Colocamo–nos numa posição de vulnerabilidade quando arriscamos, apesar de nos sentirmos inseguros e emocionalmente expostos, e ainda assim temos coragem para continuar a arriscar.”
Edição
“Um escritor sem um bom editor por trás é uma comédia que acabará em tragédia.”
Posteridade
“Não precisas de te preocupar com a posteridade, porque não chegarás lá com vida.”
Álcool e drogas
“Seja o que for que aconteça na tua vida de escritor, não bebas em excesso. O mesmo para as drogas. Se o fizeres, fá-lo-ás por tua conta e risco, sem ilusão de que isso te aumentará a criatividade ou a patine de mistério. E digo-te, por experiência própria, que o teu trabalho piorará. Onde eras apenas refém de uma coisa – a obsessão pela escrita –, ficarás refém de duas: a escrita e a bebida.”