O mundo está a conhecê-lo como Boxer, chefe de segurança de uma família que tem muitas discotecas em Ibizia, habituado a resolver problemas difíceis. White Lines – que se estreou a 15 de maio, na Netflix – é a primeira criação original de Álex Pina, autor da muito celebrada La Casa de Papel, para a gigante do streaming. Nuno Lopes surpreendeu-se com alguns métodos de trabalho e com o potencial cómico da série.
Viu La Casa de Papel antes de ir para a rodagem de White Lines?
Vi não só La Casa de Papel como as outras séries que o Álex Pina fez, como El Embarcadero e Vis a Vis.
E o que une os vários trabalhos do autor espanhol?
Esta série é muito original. É uma tragédia e um drama policial, mas depois tem um lado negro de crítica e, acima de tudo, cómico que não é muito usual ver. Há quase um caleidoscópio de personagens, como normalmente existe nas criações do Álex Pina, o que torna a sua escrita muito interessante. Não há uma única personagem principal, que aqui seria a Zoe (Laura Haddock). São quatro ou cinco protagonistas, dos quais um deles sou eu, e conta-se a história dessas figuras quase com a mesma importância com que se conta a da personagem principal. Em quase todas as suas criações, a narrativa é um discurso que, na verdade, é uma montagem, um diálogo entre duas épocas diferentes. Nos guiões, muitas vezes, era confuso perceber em que altura estávamos… As séries do Álex Pina são como máquinas do tempo, estão constantemente a andar para trás e para a frente, não só entre as duas épocas como dentro dum mesmo tempo. Para mim – que costumo fazer cinema de autor e muito do trabalho que faço tem a ver com coisas não ditas, subentendidas – ainda havia outro desafio, pois as suas personagens têm algo quase shakespeariano, dizem tudo o que sentem.
Quem é o Boxer e como se preparou para esta personagem?
O Boxer é o chefe de segurança de uma família que tem vários clubes em Ibiza. E o corpo do DJ britânico Axel Collins, desaparecido há 20 anos, aparece nas terras do patriarca dos Calafat. A minha personagem trabalha para ele há muitos anos e é uma espécie de resolve-tudo, sobretudo os problemas que envolvem esconder, mentir e mais violência. A preparação para a personagem incluiu muitas conversas com o realizador, o próprio casting foi uma preparação. Fiz quatro castings para chegar à fase final da série e ia tendo feedback do próprio Álex Pina, do que era pretendido para o Boxer. Quando fiz as primeiras self tapes não percebi que a série tinha um potencial cómico; que a personagem tinha um lado negro mas, de certa maneira, satírico.
Como funcionou o facto de Álex Pina confiar muito na química entre os atores?
O meu último casting em Londres foi, precisamente, um “teste de química” com a atriz Laura Haddock. Acho muito importante fazer-se isso porque quando vamos ter duas personagens que vão contracenar muito juntas, não só interessa o talento dos atores e se são perfeitos para o papel mas também se a dupla funciona e se há química entre eles. Pelos vistos, funcionou.
Participar no Passaporte, da Academia Portuguesa de Cinema, foi determinante para conseguir este papel?
Sim. No Passaporte não só conhecemos diretores de casting como temos oportunidade de apresentar uma cena de três ou quatro minutos a todas as pessoas que a Patrícia Vasconcelos e a academia convidam. Foi aí que o Richard Cook me viu e me convidou para ser seu agenciado. Depois, em Inglaterra, onde ele organiza o Subtitle Film Festival, uma espécie de Passaporte mas muito maior, na edição do ano passado éramos cerca de 40 atores, cuja língua-mãe não é o inglês, a conhecer 100 diretores de casting de todo o mundo. Qualquer filme que se imagine, o responsável pelo casting estava lá. Foi graças a esse festival que conheci a diretora de casting de White Lines.
A maior diferença entre filmar em Portugal ou numa produção internacional continua a ser o dinheiro?
Sim, porque o dinheiro não serve para comprar só mais material e mais pessoas, essencialmente compra mais tempo. Quando faço uma série destas, de dez episódios, em Portugal demoramos cerca de dois meses e meio a filmar. White Lines prolongou-se por seis meses e isso é fundamental. Quando fiz as séries Sul ou Sara, por questões financeiras e porque temos pouco tempo para filmar, o realizador tem de fazer cinco ou seis cenas por dia, pelo menos. Há cenas em White Lines que demoraram três dias a rodar… Sem querer fazer spoiler há uma perseguição de automóveis na série que demorou três ou quatro dias a fazer. Em Portugal seria impossível. Esse é o tempo que se tem para fechar um episódio inteiro. Muito raramente se consegue regravar uma cena em Portugal e eu regravei algumas nesta série. Há dinheiro, há investimento e isso compra pessoas e tempo.
Em 2019, passou seis meses entre Maiorca e Ibiza a trabalhar com uma equipa multicultural. Qual foi a grande mais-valia?
Sou sempre a favor do choque cultural. Traz sempre benefícios, porque as pessoas têm outras formas de trabalhar e outras visões das coisas. Para mim foi fundamental estar a trabalhar, não só com os colegas espanhóis mas com os ingleses, porque a maior parte tinha muita experiência neste tipo de séries, em que a produção tem uma preponderância enorme na rodagem. Nunca trabalhei em Portugal – e não estou a fazer uma crítica – nem numa série, nem num filme em que o produtor estivesse presente todos os dias no décor e que tivesse uma opinião sobre tudo o que se passava. Nunca me tinha acontecido e não sabia bem lidar com isso, por isso ajudou-me muito trabalhar com os atores ingleses que estão habituados a esse contexto. Também costumo ver o material que filmo e, nesta produção, isso não nos era permitido. Era superestranho e os ingleses diziam-me para confiar, que isso era normal. É a mais-valia de crescer, de aprender e de haver entreajuda entre as várias culturas. No final, o resultado é muito mais interessante. A Netflix tem apostado muito em trabalhar a multiculturalidade na representação e nas equipas. O facto de comprar e produzir séries em vários países, transportando-as depois para todo o mundo, faz com que, de repente, estejamos a ver séries dinamarquesas ou alemãs… Há dez anos, o Boxer seria feito por um inglês que falasse, minimamente, espanhol; há cinco, seria feito por um espanhol que falasse muito bem inglês; agora, foi feito por um português que tem de falar inglês e espanhol na mesma cena. É sinal de que o mercado se está a abrir e isso deve-se à Netflix.
Há 18 anos, a ida para o Brasil gravar uma telenovela da Globo marcava o início da sua internacionalização. Ou não contou porque falava a mesma língua?
Sim, marcou totalmente. É outra cultura. Apesar de falarmos a mesma língua, somos muito, muito diferentes. Não temos nada a ver nem com a produção, nem com a maneira de fazer as coisas no Brasil. Morei um ano no Rio de Janeiro, depois quando voltei não dei continuidade à internacionalização. Era muito novo [tinha 24 anos] e a fama no Brasil, quando se faz uma novela das oito da noite, é muito forte; e foi algo para que não estava preparado, nem interessado. Aliás, quando saí do Brasil, vim com vontade de desistir de ser ator. A fama é um lado que não me interessa nada na minha profissão; interessa-me ser bem-sucedido, como é óbvio, mas isso não tem nada a ver com ser famoso. Foi graças a ter voltado ao palco do Teatro da Cornucópia e a ter começado a trabalhar em Alice [primeira realização de Marco Martins] que percebi que havia uma maneira de continuar a ser ator sem sentir o que senti no Brasil. Depois, estive seis ou sete anos sem fazer televisão e essa foi a minha maneira de lidar com o assunto. Mas nunca tive o desejo de me tornar um ator internacional e continuo a não ter. Quero fazer projetos que gostaria de ver como espectador e se forem na língua portuguesa, melhor. Interessa-me mais contar histórias da minha gente, só que devido ao momento que vivemos na Cultura em Portugal é muito difícil filmar cá. Fazem-se dez filmes por ano e é preciso ter a sorte de ter um papel num desses filmes e de ser escolhido entre os vários atores maravilhosos da minha geração. Sinto-me obrigado a tentar, também, fora do meu País.
Sente-se um precário sortudo?
Totalmente. Tenho a completa noção do meu privilégio neste momento e da sorte que tenho em ter feito esta série antes da pandemia acontecer e de estar bem financeiramente graças a esta série. Sei de muitas situações de colegas que estão à beira da fome, já não é só à beira de uma situação precária.
Nem em tempo de pandemia se tornou essencial ajudar o setor cultural?
Adorava dizer que estou surpreendido, mas não estou. O setor cultural é desprezado em Portugal desde sempre. A política cultural portuguesa é perto de nula, basta olhar para o valor que temos atribuído no Orçamento Geral do Estado [0,55% do total; cerca de €500 milhões]. Arredondando é… zero, é isso que vale a cultura em Portugal para o Estado. Na verdade, este Governo está só a cumprir uma tradição antiga de desprezo pelos agentes culturais. Em momentos como este, numa crise enorme, as pessoas da minha classe que são precárias estão numa situação miserável. Fui convidado para ir a um jantar de apoio a António Costa e não fui porque não ligo muito a política, acho que a arte deve ser antipoder, mas sei de muitos artistas que o apoiaram porque dizia ter uma estratégia cultural no seu programa de governo e, agora, isso não se vê de todo. Mas os governos são, também, o que as pessoas desejam. Se houvesse um desejo mais profundo da população por uma vida cultural mais rica, provavelmente, no futuro, teríamos um governo mais preocupado com isso.
O DJ Nuno Lopes está em layoff?
Está desempregado mesmo. O grande problema dos precários em Portugal é que somos tão precários que não temos coisas básicas como o regime de seguro de desemprego. Nos países mais civilizados existe e o que se faz em situações como esta é prolongar-se a condição de intermitente, como se fôssemos pessoas normais…
A sua quarentena vai ficar marcada pelo momento em que cantou e tocou E Depois do Adeus, no 25 de Abril, no direto do Instagram do Bruno Nogueira? Porque dedicou o momento aos seus pais?
É um momento marcante, sim. Foi a primeira vez que passei o 25 de Abril em casa e é a data mais importante da nossa História; para mim, é dos dias mais felizes do ano, sempre. É um orgulho ir para a rua, não só por mim mas pela memória que tenho e pelo que sei sobre a luta que os meus pais tiveram contra a ditadura. Eu já nasci depois da Revolução [1978], mas mesmo depois, os meus pais sempre tiveram um lado político muito forte, lembro-me de ter refugiados políticos em casa. Sei o esforço que fizeram para que eu hoje tenha a alegria e o privilégio de viver numa sociedade livre e de poder dizer mal do Governo como fiz nesta entrevista.
Em que pé está o próximo filme de Marco Martins, Great Yarmouth Provisional Figures, que estava a rodar, em março, quando teve de regressar a Portugal?
Filmámos um terço e tivemos de parar quando o vírus chegou a Inglaterra e, de repente, já se falava em fechar as fronteiras. Não podíamos correr o risco de lá ficarmos… Há uma ideia de voltar a filmar em outubro, mas não sabemos em que condições, pois perdemos cenários que já estavam construídos, viagens que já estavam pagas…
De que fala o filme?
Great Yarmouth, em Norfolk, tem uma comunidade gigante de emigrantes portugueses que trabalham, sobretudo, em fábricas de desossar perus, transformando-os em panados. É uma vida duríssima numa das cidades que mais votaram a favor do Brexit, onde há um conflito entre os ingleses e os portugueses que se sente na rua. Interessa-me falar sobre o Brexit, sobre emigração e o que é estar fora. Sobre os portugueses que fugiram da crise e, de repente, se encontram num país que decide fechar as fronteiras à Europa.
E, em breve, vai voltar a França para filmar Azurro…
Assim que abrirem as fronteiras e me seja permitido filmar em França… É um filme de verão, de praia, terá de ser rodado até setembro, no máximo. É difícil arranjar motivação para trabalhar, quando não se tem um objetivo claro, uma data definida para estarmos prontos. Às vezes, o trabalho de ator é só pensar. Tenho–me obrigado a isso, mas sem grande motivação.
Cinco personagens marcantes na televisão e no cinema
Esperança
2002
Aos 24 anos, Nuno Lopes protagonizou esta telenovela brasileira do horário nobre, em que interpretava o papel do português José Manoel. Morou um ano no Rio de Janeiro e, quando regressou a Portugal, pensou em desistir da carreira de ator.
Alice
2005
Na primeira longa-metragem realizada por Marco Martins, Nuno Lopes é Mário, um pai desesperado na busca obsessiva da sua filha desaparecida. Filme dedicado a Filomena Teixeira, mãe de Rui Pedro, desaparecido desde 1998, quando tinha 11 anos.
Os Contemporâneos
2008
No programa de humor de Bruno Nogueira, na RTP1, Nuno Lopes encarnou O Chato, personagem criada por Nuno Markl. Na altura, a frase “vai mas é trabalhar!” tornou-se viral.
São Jorge
2016
Outro filme de Marco Martins, sobre Jorge, um boxeur desempregado que aceita trabalhar numa empresa de cobranças difíceis. Valeu a Nuno Lopes o prémio de Melhor Ator na secção “Orizzonti” do Festival de Veneza.
Sara
2018
Na série escrita por Bruno Nogueira e realizada por Marco Martins, emitida na RTP2, Nuno Lopes deu vida a João Nunes, um ator canastrão de novelas que queria ser um influencer (e que chegou a ter uma conta no Instagram, paralela à série).