É seguramente uma das pinturas mais reconhecidas na história da arte mundial, e não poucos terão sentido, nestes tempos estranhos da Covid-19, uma forte identificação com a figura angustiada que grita na doca de Oslofjord, em Oslo, tendo como pano de fundo um pôr-do-sol flamejante e duas figuras longínquas, alheias ao profundo desespero existencial representado em primeiro plano. Mas, ao longo das últimas décadas, o fulgor pictórico de O Grito parece ter desmaiado. É que os pigmentos de cádmio amarelo que Edvard Munch (1863-1944) usou para pintar esta obra icónica, nomeadamente na versão datada de 1910, descamaram e descoloriram: os tons amarelos e cor de laranja no sol, no céu e no pescoço da atormentada figura central estão agora esbranquiçados, e as secções pintadas junto à superfície da água mostram-se alteradas. Estragos que se agravaram aquando do roubo de O Grito, em 2004, perpetrado por três homens que o retiraram do museu e enfiaram num Audi preto, juntamente com uma Madonna do pintor norueguês, assim fugindo em plena luz do dia. A valiosíssima pintura foi recuperada passados dois anos, em 2006, e, desde então, tem sido exibida raramente.
Uma equipa internacional de cientistas pôs-se em campo e, através de novas técnicas de investigação não invasiva, e recurso a exames de fluorescência de raios X 2D, identificou finalmente o culpado da degradação desta obra maior do início do século XX: humidade. O estudo divulgado na revista Science Advances refere que Munch terá inadvertidamente usado um pigmento de cádmio amarelo de má qualidade, com capacidade de oxidar e de lascar até em condições de humidade baixa – como, por exemplo, os níveis de humidade gerados pelos visitantes dos museus e a sua respiração na proximidade com as obras expostas.

A longa exposição à humidade causa reações como a dissolução e migração das tintas, e a formação de cristais microscópicos, associados à formação de compostos químicos brancos – sulfato de cádmio e carbonato de cádmio – resultantes da oxidação do sulfeto de cádmio (amarelo). Uma degradação provada pela investigação e vista como potencialmente ameaçadora para a emblemática obra de Edvard Munch.
Liderada pelo Conselho de Investigação Nacional italiano, a equipa internacional de investigadores, a trabalhar em estreita colaboração com o Museu Munch, usou um laboratório móvel europeu designado como MOLAB (ou Mobile LABoratory) para proceder à análise de O Grito. A investigação às causas da deterioração da pintura foi posteriormente continuada no Laboratório Europeu de Radiação de Sincrotrão, onde se encontra o maior aparelho mundial de raio X, com o objetivo específico de observar detalhadamente os micropigmentos da pintura com cádmio amarelo.
Cientistas da Bélgica, Itália, EUA e Brasil usaram tanto amostras de cádmio amarelo artificialmente envelhecidas como porções dos tubos de tinta usados por Edvard Munch. Um método que permitiu determinar as razões da degradação de O Grito: quando os pigmentos de sulfeto de cádmio (amarelos) eram expostos a compostos químicos de cloreto em condições de elevada humidade, correspondentes a 95% de humidade relativa, estes transformavam-se em sulfato de cádmio (esbranquiçados). Os investigadores do estudo concluíram que esta alteração de cores acontecia independentemente da presença de luz, o que significava que a iluminação era um fator de menor importância no processo de degradação em comparação com a humidade.

O ambiente laboratorial não impediu o maravilhamento provocado pela proximidade com uma obra-prima como O Grito. Letizia Monico (investigadora no Conselho de Investigação Nacional) e Costanza Miliano (chefe da plataforma móvel MOLAB e investigadora sénior no Conselho de Investigação Nacional de Ciência Molecular e Tecnologias), autoras do estudo, falaram à CNN sobre a gratificação sentida com esta “experiência única”: “Quando contemplamos uma pintura exposta numa galeria, apreciamos o tema, o enquadramento, o contexto museológico, durante um período de tempo relativamente curto. Mas quando nos encontramos “face a face” com a pintura, começamos a ficar obcecados com todos os mínimos detalhes, como a consistência de cada pincelada, as diferentes tonalidades das cores usadas pelo artista, a presença das pequenas partículas de poeira. Podemos sentir a intenção do pintor através da materialidade da sua obra.”
As análises efetuadas à pintura de Edvard Munch conduziram a recomendações específicas: O Grito pode ser preservado e exposto ao público, defendem os cientistas do estudo, se os níveis de humidade do ambiente museológico forem mantidos em valores de 45% de humidade relativa e se a obra estiver sob iluminação reduzida. Comparando com as atuais regras de manutenção desta pintura, esta tem sido armazenada e exposta com valores de 50% de humidade relativa e à temperatura de 20 graus Celsius.
Na época em que Edvard Munch viveu, um período de efervescência artística em que correntes como o impressionismo e o expressionismo devolviam o mundo em cores vibrantes, a ciência estava dustante dos estúdios dos artistas. Mas os materiais com que estes produziam as suas obras eram semelhantes: pintores contemporâneos de Munch, igualmente sensíveis ao esplendor cromático e à prestidigitação da luz como Henri Matisse ou Vincent Van Gogh, também eram entusiastas utilizadores destes pigmentos trazidos pela produção industrial. O que levanta questões sobre o estado presente e os riscos de degradação futuros de outras obras marcantes da história da pintura.

Ponto assente: as investigadoras envolvidas nesta ‘caça à vilâ humidade’ desejam ter a possibilidade de prosseguir com o estudo tanto de outras obras de Edvard Munch conservadas no museu batizado com o seu nome, como a de pinturas de outros mestres, localizadas em vários museus mundiais. é que as descobertas recentes poidem ajudar a estudar mais aprofundamente e a conservar para as gerações futuras outras criações igualmente pintadas com tintas de cádmio amarelo, defendem, nomeadamente assim reduzindo a sua exposição aos níveis elevados de humidade e mantendo uma iluminação adequada. E, provavelmente, criando uma consciência da necessidade de regulamentar melhor a proximidade com o público.
No currículo científico, Letizia Monico e Costanza Miliani têm outras experiências semelhantes à vivida com O Grito. As investigadoras já aplicaram vários métodos espectroscópicos e não invasivos a outras obras reconhecíveis pelo grande público apreciador de pintura, como Os Girassóis (1888), quadro icónico assinado por Vincent Van Gogh (integrado na coleção do Museu Van Gogh, em Amsterdão), e Alchemy (1947), exemplar da formidável técnica de dropping de Jackson Pollock (conservado na Coleção Peggy Guggenheim, em Veneza). “Este tipoi de investigação demonstra como a arte e a ciência estão intrínsecamente ligadas, e como a ciência pode ajudar a preservar as obras de arte de maneira a que o mundo possa continuar a admirá-las durante muitos mais anos”, defendeu Miliani.
As conclusões do estudo publicado na Science Advances foram escutadas no Museu Munch, tendo os seus responsáveis admitido que, sendo O Grito uma das pinturas mais famosas e mais frágeis da sua coleção, o ter “uma estratégia para a sua preservação, baseada na ciência, é fundamental”. Num e-mail também enviado à CNN, as conservadoras Eva Storevick Tveit e Irina Sandu declaravam: “O museu está a considerar colocar em prática as recomendações apresentadas por este estudo nas situações futuras de conservação e exposição de O Grito. E o novo Museu Munch, erigido junto ao edifício da Ópera de Oslo, cuja inauguração está agendada para 2020, já irá incorporar regras de exposição de acordo com estas descobertas recentes.

A pintura investigada é uma versão de O Grito que, pensa-se, terá sido finalizada em 1910. O tema foi explorado por Edvard Munch numa série de trabalhos realizados entre 1893 e 1916, que incluem quatro versões diferentes de O Grito em tinta e pastel, além de litografias, desenhos e esboços. O pintor descreveu assim a inspiração para a obra: “Caminhava por uma estrada numa certa noite. Sentia-me cansado e doente. Parei para observar o fiorde, o sol estava a pôr-se no horizonte, as nuvens pintadas de vermelho, como sangue. Senti como se um grito atravessasse a natureza, pensei ter ouvido um grito. Pintei este quadro, pintei as nuvens como sangue verdadeiro. As cores gritavam.” Um efeito conseguido pela utilização de texturas e pigmentos brilhantes, que transfiguraram esta representação numa obra intemporal, impregnada com sentimentos de angústia, medo e inquietude que, atualmente, ganham nova ressonância junto do público contemporâneo. “Nestes tempos incertos que vivemos, todos podem reconhecer-se nesta figura que grita. Podemos ver os nossos medos, o nosso desejo de escapar a uma situação incontrolável e avassaladora”, sublinham Letizia Monico e Costanza Miliani. E defendem: “A figura pintada assemelha-se a um esqueleto. No entanto, esta personagem grita, tem uma voz. Não se cala. E esse grito libertador, cheio de angústia e melancolia, se não for ignorado, pode regressar a um sentimento de esperança e serenidade.”