Aconteceu-lhe o que nunca imaginou. Há uma dezena e meia de anos, o bispo de Madrid de então considerou a sua prática pastoral demasiado desajustada com a linha que pretendia para as suas paróquias. E, de um momento para o outro, Pablo d’Ors viu-se impossibilitado de praticar a sua vocação: ser sacerdote. Por sorte e certamente por bênção divina, o erro foi reconhecido e emendado um ano depois, mas durante esse período operou-se uma transformação radical, a que também não foi alheia a crise dos 40 que atravessou, como reconhece. “Encontrei-me num deserto laboral e social”, diz à VISÃO. “Mas nele encontrei-me mais profundamente.” Em vez de somar experiências para construir a sua personalidade, passou a subtrair, a reduzir, a diminuir, para assim descobrir quem era.
Assim também nasceu O Amigo do Deserto, romance que lançou em Espanha, em 2009, e que chegou às livrarias portuguesas pela mão da Quetzal (184 págs, €16,60). Onde uns veem vazio, Pablo D’Ors, 56 anos, vê um mundo de possibilidades. Onde uns apenas sentem o nada, o sacerdote e escritor espanhol, autor de vários volumes de ensaio, poesia e ficção, encontra o caminho mais fértil para o eu profundo.
O que há de tão sedutor no deserto?
Ser um espelho de nós próprios. Somos seres sociais, não há dúvida, mas também solitários. Estamos cheios de muita coisa, relações, contactos, ideias, projetos, mas ao mesmo tempo encontramo-nos muito vazios. Até determinado momento, pensei que a vida consistia fundamentalmente em somar: experiência, viagens, leituras. A minha personalidade seria construída assim, com mais. Mas, na crise típica dos 40, descobri que havia outro caminho, outra possibilidade: a subtração. Já não se tratava de acrescer, mas de tirar. Não para construir, mas para descobrir.
São caminhos opostos?
São diferentes. É verdade que há uma via de descoberta na adição, mas aquela que retira e diminui é mais espiritual. É a tradução da boa aventurança dos pobres de que fala o Evangelho. Quanto menos coisas temos, mais podemos ser. O que a personagem deste livro descobre é o que também eu estou a tentar viver na minha vida: não cair na tentação do ter.
Esse sentimento é mais radical no deserto?
O deserto é uma imagem, plástica e geográfica, desta aventura espiritual. É uma metáfora do vazio de que somos feitos. Um vazio fecundo.
Em que sentido?
Associamos o vazio a algo negativo, mas não poderíamos estar mais enganados. Em termos cristãos, não se trata de vazio, mas de plenitude, de virgindade e maternidade. A Virgem Maria esvaziou-se de si mesma para poder ser mãe, dar à luz. Temos medo do ruído, do caos, mas ainda mais do nada, do vazio total.
De onde vem esse medo?
Temos medo do ruído porque nos destrói. Do nada, porque é o que somos. Na conceção cristã, o nada é o material-base de que somos feitos. Também escrevemos sobre o branco, falamos a partir do silêncio. É o nosso ponto de partida. Regressar às origens é voltar ao branco, ao nada de onde tudo nasceu. Quando as pessoas estão comigo, não sabem muito bem se têm pela frente um sacerdote ou um escritor. Para mim, são duas caras da mesma moeda. Não consigo separar o místico do poeta, a experiência da expressão, o que faz da arte um exercício espiritual. Primeiro tens de entrar no teu nada, no teu vazio e no teu silêncio, para que o que expressas seja autêntico, esteja cheio do teu eu profundo.
Eis um grande desafio para a sociedade contemporânea, farta em solicitações, estímulos, apelos.
É um desafio, uma provocação. A certeza de que menos é mais. Não basta o silêncio externo, mas também um silenciamento interno. O nosso problema é que pensamos que viemos ao mundo para mudar.
E não viemos?
Viemos, em primeira instância, para receber. Não é mudar logo de início. Receber e mudar se necessário. Pensamos e fazemos demasiado. E é claro que muita mudança é necessária. Mas não podemos esquecer a contemplação, deixar que as coisas nos toquem primeiro. É o desafio da humanização do mundo.
Isso deixa-nos muito vulneráveis, diria um espírito mais racionalista.
E deixa. Não há vida sem vulnerabilidade. A principal característica da existência é a sua fragilidade, a possibilidade de acabar. Tudo o que não pode morrer não está vivo. O caminho espiritual é, por isso, uma homenagem à vida, a essa fragilidade. Só ao reconhecermos, aceitarmos e amarmos o que somos, seres frágeis, podemos ir mais além e descobrir a nossa enorme força de transformação. São Paulo dizia: “Quando sou débil, sou forte.” Quando não temos medo, somos capazes de grandes feitos.
Este livro é resultado de uma experiência sua no deserto?
Começou com uma experiência de esvaziamento. A certa altura da minha vida, vi-me num deserto. Não podia exercer o meu sacerdócio, a minha verdadeira vocação. Passei um mau bocado e, com ele, atravessei um deserto laboral e social. Percebi que tinha de me agarrar a algo interior ainda mais profundo. O meu caminho de silêncio e meditação tornou-se mais radical. Mas, apesar de ser mais duro e difícil, revelou-se também mais luminoso. Desta experiência nasceu este livro. Antes, ser escritor e sacerdote era muito importante para mim. Agora, é irrelevante.
Como se vê agora?
Ainda sou escritor e sacerdote, mas não é o mais importante. Podia fazer outra coisa qualquer e continuaria a ser eu. Tudo se joga no ser, não no fazer. Agarra-te ao que és, não ao que fazes, que isso pode mudar, cair, desaparecer.
Essa é uma mensagem ainda mais importante num mundo sem profissões para a vida?
Sim, claro. Temos de nos educar na fugacidade, para uma mudança veloz e contínua, de tal maneira que, hoje, permanecer é quase um ato heroico. Porém, precisamente porque tudo muda, é preciso encontrar uma pedra onde possamos sentar-nos, aprender a encontrar um lugar só nosso. Para os cristãos, essa pedra é Cristo. Para os não crentes, o eu profundo. Não são realidades diferentes, já que Cristo é o nosso eu profundo, o hóspede das nossas almas.
Encontramos essa mensagem também no mindfulness. Como sacerdote, como vê esse movimento cada vez mais crescente?
O mindfulness, que tem as suas virtudes, não é mais do que a tradução secular, laica, da sabedoria espiritual budista. Nasce quando europeus e americanos descobrem o budismo e a meditação. Ao regressarem aos seus países, elaboram-nos numa perspetiva mais psicológica. Sem a sua dimensão religiosa, assumiram-se como algo exclusivamente terapêutico. A meditação e a prática do silêncio têm obviamente essa dimensão, de reconciliação com a nossa realidade física, mental e psicológica. Mas também têm, desde as suas origens, outra vertente, a da transcendência, de vinculação ao mistério, ao espiritual. Está presente em todas as religiões.
Para um leigo, o caminho do mindfulness parece mais simples.
O da religião e da espiritualidade também o é. Se não fosse para o dia a dia, não servia para nada, porque as pessoas vivem no quotidiano. Mas simples não quer dizer fácil. Quando te aventuras na meditação e na espiritualidade, descobres que tens dentro de ti resistências. Porque ficas nervoso quando te dedicas ao silêncio? Porque te surgem tantas distrações? Porque regressam tantas recordações dolorosas? De onde vêm tantas palavras? É um processo longo.
A par de livros de teologia, tem publicado vários livros de ficção, como este O Amigo do Deserto. Com a ficção sente que chega a mais pessoas?
Acredito que sim. A literatura oferece imagens, enquanto o pensamento, ideias. Estas são para a cabeça, enquanto as outras para a alma. E nós somos habitados essencialmente por imagens. Não sonhamos ideias, mas imagens. A ficção quer sempre colar–se, meter-se dentro do imaginário do leitor para o ajudar a completar a sua própria identidade.
E tal como escreve livros para chegar a mais pessoas, a Igreja, enquanto instituição, deveria fazer o mesmo?
Dentro da Igreja, cada um deve fazer o que tem de fazer. O caminho da arte que sigo não é o único, nem escrevo romances para evangelizar. Até porque a arte, e estes livros têm essa ambição, não admite um propósito ulterior. Escrevo por necessidade, vontade de expressão, porque está no meu ser. Se és um homem espiritual, o que escreveres também o será. Não escreves para ser espiritual. Se dás um propósito à arte, ela converte-se em ideologia.
Falava também da necessidade de lançar pontes entre a Igreja e a sociedade.
Elas são fundamentais, é verdade, e vejo um sacerdote precisamente como uma ponte entre Deus e o mundo, a sociedade e a Igreja, uma e outra cultura. Procuramos lugares de trânsito para que as pessoas possam encontrar o imanente, perceber que nem tudo é material. E, sim, reconheço que essas pontes foram bastante cortadas nos últimos tempos. Há cada vez menos cristãos no Ocidente.
O que poderá ter justificado essa redução?
A mentalidade das sociedades modernas, que tem como valor supremo o individualismo. No cristianismo é mais forte a integração numa comunidade, a Igreja, embora isso não exclua o reforço e a valorização do indivíduo. Este é o primeiro conflito.
Há outros?
Tocando apenas nos mais profundos, vejo outros dois. Para a Igreja Católica, Cristo é a única encarnação da divindade, o que não acontece noutras religiões. No budismo, por exemplo, advoga-se que todos podem ser Buda. Para o cristianismo, todos temos um Cristo interior, mas nem todos podemos ser Cristo. Somos todos filhos de Deus, mas Cristo é “O” seu filho.
Por que razão isso é um problema?
Quer dizer que o caminho cristão se apresenta de uma forma exclusiva, o que choca com uma visão mais democrática, segundo a qual não há um, mas muitos caminhos. O terceiro conflito está na ideia de cristianismo assente na experiência de Deus pai. Desde Freud que se identificou a vontade de matar o pai, quebrar o princípio de autoridade. É o drama espiritual do Ocidente. Matámos o pai e a fé que havia nele. Mas se não tens pais, quem és? Um órfão. É o que vivemos hoje em dia: um sentimento de orfandade muito grande.
A autoridade do sacerdote também está posta em causa?
Muito. Sem pais, não há mestres. Sem mestres, não há discípulos. Sem discípulos, não há aprendizagem. Ninguém quer aprender com os outros, seguir a prática da humildade.
Como se resolve o problema?
A autoridade não se pode impor por decreto. Tem de ser moral, o reconhecimento de grandes valores na Igreja e na sua comunidade. E onde podemos adquirir esses valores? Na fonte, em Deus. A resposta está numa profunda renovação espiritual.
E tem sido perseguida?
Está a produzir-se a uma velocidade mais lenta do que muitos de nós desejávamos. Claro que importa mudar, mas também permanecer, como dizia há pouco. A fidelidade da Igreja é ao Evangelho, o depósito de sabedoria que recebemos do passado, mas também aos homens e às mulheres de hoje. Podemos ter um tesouro maravilhoso, mas de pouco vale se não conseguimos transmiti-lo. A tarefa é difícil, mas o Santo Padre, o Papa Francisco, está a lidar com ela muito bem. Expressou-o de uma forma muito clara: a Igreja é sobretudo um hospital de campanha. Todos estamos feridos. A tarefa fundamental é curar. Assim que cada um de nós se encontre melhor, a sua missão é ajudar o próximo.