O percurso da viagem ainda está por definir, mas Afonso Reis Cabral, 29 anos, já sabe que, do golfo Pérsico ao Extremo Oriente, algumas paragens serão obrigatórias. Numa iniciativa organizada pela histórica livraria Lello, o escritor-viajante propõe-se percorrer os lugares de Luís de Camões, incluindo Macau (onde se acredita que Os Lusíadas terão sido escritos, na célebre “gruta de Camões”) e Goa (onde Camões viveu durante 17 anos). Sem esquecer, no Vietname, a foz do rio Mekong, no qual, segundo reza a lenda, o poeta maior da literatura portuguesa terá naufragado e salvado a sua epopeia literária.
O projeto chama-se “Novo Canto para Os Lusíadas” e será apresentado no Porto, esta segunda-feira, 13, coincidindo com o 114º aniversário da Lello. Além do Instituto Camões, conta também com o apoio da VISÃO, que, entre outras iniciativas, publicará o diário de viagem de Afonso Reis Cabral. A ideia é que, ao longo do périplo, Reis Cabral se encontre com centenas de figuras que o ajudarão a produzir uma nova edição de Os Lusíadas. Cada uma dessas pessoas transcreverá, pelo seu próprio punho, uma das 1 102 estrofes dos dez cantos escritos por Camões. Explica Aurora Pedro Pinto, da Lello, que poderá tratar-se de governantes, de escritores, de artistas… “Atrevo-me a dizer que isto pode resultar em algo memorável, com um valor incalculável. Teremos uns Lusíadas da atualidade, dos nossos dias”, acrescenta a administradora da livraria, que promete vir a exibir o “novo” manuscrito na Lello e não só. “Não se trata de uma cruzada religiosa, mas de uma cruzada cultural. A nossa intenção é expor esta edição de Os Lusíadas pelo mundo, não a deixando circunscrita à nossa livraria”, continua Aurora Pedro Pinto, que é casada com Avelino Pedro Pinto, o investidor imobiliário que, desde 2015, se assumiu como sócio maioritário da sociedade que gere a Lello (o outro sócio, José Manuel Lello, é descendente dos fundadores). Entretanto, a par de todo este projeto, a administração da livraria mantém o objetivo de comprar uma primeira edição de Os Lusíadas, para a qual disponibilizou a verba de 250 mil euros.
Crónicas de viagem
A epopeia de Afonso Reis Cabral, o trineto de Eça de Queirós que se tornou conhecido do grande público em 2014 ao vencer o prémio Leya com O Meu Irmão, apenas começará em janeiro de 2021. Durante os próximos meses, o escritor – que, com Pão de Açúcar, um romance que partia do assassínio do travesti Gisberta, foi recentemente galardoado com o prémio José Saramago 2019 – conta terminar o seu novo livro, que está a ser escrito com uma bolsa de criação literária da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Por isso, Afonso vê este ano de 2020 como um tempo de preparação da viagem. “Quero planear, mas também pretendo deixar espaço para o improviso e para a descoberta. Não posso fechar-me numa ideia, não estar aberto aos outros”, diz.
“Quero deixar espaço para o improviso e para a descoberta. Não posso fechar-me numa ideia, não estar aberto aos outros”
Em seu entender, o projeto Novo Canto para Os Lusíadas funcionará como “uma espécie de janela, uma comunidade de leitores” para a obra-prima de Camões. Será também um “panorama da sociedade atual”, já que terá a colaboração de figuras conhecidas de várias áreas, das artes às ciências, passando pelo desporto. Mas também, nota Afonso, de anónimos cuja história de vida merece ser contada: “Por exemplo, ninguém melhor do que um pescador do Tejo poderá falar sobre as tágides, as ninfas do Tejo de Camões.” No final, a ideia do escritor é obter um conjunto equilibrado, entre “pessoas mais destacadas” e “pessoas que darão um carácter mais genuíno ao livro”.
Afonso Reis Cabral aproveitará ainda os próximos meses em Lisboa para fazer pesquisa sobre a própria biografia de Camões. Além de Macau e de Goa, sabe que irá a Ceuta, a primeira viagem realizada pelo poeta. Pretende também ir à Somália e ao estreito de Ormuz, onde se sabe que Camões também esteve. “Ele não fez propriamente uma viagem de ida e volta”, conta, sublinhando a escassez das fontes biográficas sobre Camões. Para já, Afonso tem-se baseado sobretudo nos escritos de Diogo do Couto, o historiador que encontrou o poeta quinhentista, já falido, na ilha de Moçambique, e que o ajudou a regressar a Lisboa. Também tem andado a ler as investigações camonianas publicadas por Vítor Aguiar e Silva, Óscar Lopes e Frank Pierce. Para lá de ser leitor de Camões, Afonso vê no projeto Novo Canto para Os Lusíadas uma oportunidade de regressar às crónicas e à escrita de viagens. À viagem dentro da viagem – que, como se sabe, também tem muito que se lhe diga.