João Tordo
Da normalidade épica
Entramos neste Ensina-me a Voar sobre os Telhados avisados pela epígrafe de Camões: “É fraqueza desistir-se da cousa começada.” Mas é nos corredores do histórico Liceu Camões, em Lisboa, que encontramos um dos protagonistas do 11º romance (em apenas 14 anos) de João Tordo, nascido no Verão Quente de 1975: um português, funcionário no “caminho íngreme da burocracia”, afogado no alcoolismo e na melancolia de ter falhado o crescimento do filho surdo, João. Um resignado: “Abdicamos da vida para podermos vivê-la, abdicamos dela a toda a hora, a todos os minutos, em cada gesto, é esta a crueldade contra a qual injustamente nos revoltamos, uma luta desde sempre perdida, capitulada.” Numa das sessões semanais da escola, criadas para lidar com o suicídio de um dos professores (outro tipo de fuga), ele cruzar-se-á com o japonês Tsukuda, atormentado por culpas e traumas diferidos: o exílio do pai nuns ilhéus, em 1917, acusado da morte do irmão adotivo Ichiro, rapazinho que se refugiava da rejeição no desenho de seres fantásticos. “É uma história de família em que os pais castigam os filhos que castigam os filhos que castigam os filhos…”, descreve o autor que, aqui, queria dedicar-se a um “romance de maior fôlego.”
Ensina-me a Voar sobre os Telhados (Companhia das Letras, 488 págs., €18,80) é um épico com raízes na normalidade, com personagens traçadas agilmente em poucas linhas, que demonstra o desembaraço narrativo deste Prémio Saramago (em 2009). Outra epígrafe oficiosa mapeia as coordenadas do romance dividido entre Portugal e Japão, entre passado e presente, entre realidade e onirismo (também induzido por um Japão efabulado, que Tordo confessa nunca ter visitado): “Por vezes, para se contar uma história extraordinária, é preciso, primeiro, contar uma história banal.” As duas histórias paralelas, uma “compassiva”, a outra “escrita de forma mais austera e oriental”, são contadas num vaivém temporal estendido ao longo de um século e desafiarão arrumações prévias: o alcoólico em busca de sentido aprenderá a convivência com a “doença do medo” existencial; o japonês tiranizar-se-á pelos fantasmas. No fim, aparecerá um dócil cão chamado Prometeu, nome do semideus grego que escolheu defender a Humanidade. Esta tapeçaria narrativa pede imaginação a quem lê. “O leitor tem de ser participativo neste processo da literatura”, defende Tordo. Uma abertura que condiz com a postura de autores crescidos em democracia: “Há escritores que continuam a escrever como se não tivesse acontecido o século XX. A minha geração, literariamente muito forte, abraçou o seu tempo. Mas somos todos diferentes na nossa maneira de abordar a literatura.”
Isabel Rio Novo
As histórias esquecidas à espera de serem contadas
“A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas nas mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. (…) Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.” Este é o tema esquecido a que Isabel Rio Novo desconstrói a “patine romântica” no seu terceiro romance, A Febre das Almas Sensíveis (D. Quixote, 200 págs., €14,90): a praga pulmonar que, nos anos 1930 e 40, era combatida nas trincheiras de sanatórios isolados nas altitudes. Como o Grande Sanatório do Caramulo, lugar que emocionou a autora, e alvo da ironia dos doentes que diziam aí haver 18 enfermarias -‑ uma delas era o cemitério. É aqui que aterra, desenganado por tisiologistas, o jovem Armando, a pele do rosto como “um pano branco e transpirado”, amado pela mulher Natália e pelo irmão Eduardo.
A história cruza o registo histórico e a liberdade ficcional com sensibilidade, bom senso e sobrenatural. E desassossegaria ditadores sentados na sua cadeira. “Antes do 25 de Abril, não seria possível eu colocar-me num avião e ir a Paris fazer investigação para o meu próximo romance. Coisas que hoje damos por garantidas condicionavam então o que uma mulher escritora poderia fazer. Também não poderia introduzir, como acontece no romance, críticas explícitas à política de Salazar ou à questão das aparições de Fátima”, recorda Isabel. Portuense nascida em 1972, professora de literatura e de escrita criativa, por duas vezes finalista do Prémio Leya (com A Febre das Almas Sensíveis e Rio do Esquecimento, de 2016), a escritora defende que, hoje, há militâncias, mas diferentes das vividas por gerações anteriores: “A literatura que nos emociona e nos faz pensar dá-nos dimensão humana, torna-nos pessoas melhores, obriga a uma introspeção. E isso contribui para o nosso crescimento enquanto seres humanos. É um pensamento otimista mas…” O que une esta sua geração, diz, é escrever “de forma mais solta, liberta, aberta”. “O resto é uma dispersão, rica, por registos, gostos, géneros. Antes, para ler um policial, ia-se à prateleira estrangeira. Hoje, temos autores portugueses a escrever para todos os gostos e públicos”, defende. A memória, o esquecimento, o sentimento dos seres do passado − “os meus amigos à distância” − são o eixo da sua escrita. Junta-lhe uma predileção pelo fantástico, quase um realismo mágico. Mas quantas adolescentes de 12 anos leram Edgar Allan Poe? Sorte a desta filha única que, conta, sempre viveu rodeada de livros: o pai, empregado bancário, andava constantemente com um livro na mão, o avô, universitário erudito, era “uma espécie de wikipedia”, o marido é o escritor Paulo M. Morais. Os afetos atravessam a narrativa não cronológica de A Febre das Almas Sensíveis: ao triângulo amoroso que envolve dois irmãos e uma paternidade ambígua entretecem-se curtas biografias dos poetas tuberculosos Cesário Verde, Sebastião da Gama, José Duro… Diz Isabel: “Sou uma contista que aprendeu a usar os pontos fortes para escrever romances.”
Valério Romão
Viagem ao fundo da noite familiar
Em 1974, Valério Romão estava em Clermont-Ferrand, França, ocupado a nascer. Filho de emigrantes portugueses, o escritor escancarou, seguríssimo e implacável, temas ausentes (ou camuflados entre paredes e entrelinhas) na literatura pré-25 de Abril. Disso é exemplo a trilogia Paternidades Falhadas, iniciada com Autismo (2012), romance rente à sua biografia de pai de uma criança autista, que lhe valeu ser finalista do Prix Femina. Seguiu-se-lhe o vertiginoso O da Joana (2013) sobre uma desejadíssima gravidez abortada na desilusão de um nado-morto. Cinco anos depois, chega Cair para Dentro (Abysmo, 212 págs., €18), mergulho em profundidade na relação entre Eugénia e Virgínia, uma filha e uma mãe com Alzheimer. “Não tenho ninguém na família com Alzheimer. A minha experiência vem de outras vidas a quem roubei, pedi emprestado, e devolvi nesta forma. A minha ideia foi utilizar a demência como um mecanismo de inversão de poder”, esclarece Valério. Uma mãe claustrofóbica, primeiro enlouquecida pelo abandono marital, depois soçobrada na “terra queimada” da perda de identidade; uma filha consciente das tiranias sofridas ‑ toda uma “procissão de escombros”.
Cair para Dentro tem as suas marcas literárias: um drama humano, escrito numa tensão de corda esticada ao limite, uma geração de gente comum emboscada pela traição dos sonhos ‑ antes e depois da Revolução dos Cravos, diga-se. O leitor confronta-se, aqui, com uma narrativa em fragmentos e uma cronologia cata-vento, uma “tentativa de veicular a própria estrutura pulverizada do Alzheimer”. E há versos de poetas portugueses (identificados no fim do livro), espalhados pela narrativa, a ampliar os desamparos. Este assumido “gosto pelo risco”, sente-o em falta na literatura contemporânea: “Estamos menos experimentais do que há 30, 40, 50 anos. De facto, os escritores portugueses veem mais mundo do que antes, mas quando pego num ou noutro livro e folheio umas páginas ao acaso, tenho a sensação de que a grande maioria é muito clássica na forma, na frase. A novidade passou para o conteúdo.”
A liberdade trazida pelo 25 de Abril deu outras marcas à sua geração: “Somos anglófilos, ao contrário das gerações anteriores, e integrados numa cultura mundial. Somos uma geração de internet, do milagre das redes sociais.” E a militância política? “Ainda que esta seja uma liberdade meio ácida, porque não sabemos qual o sentido exato disto e tudo se transforma em ruína aos nossos olhos, a figura do inimigo é difusa, o sistema é global, não sabemos bem como o enfrentar…”, aponta. Ao peito, usa um crachá: “Que se foda.” “É um lema. As pessoas levam-se demasiado a sério, tudo é extremado, isso vê-se no Facebook: quer-se ter uma opinião vincada sobre tudo. Nesta época, o exercício mais radical de pensamento parece-me ser o bom senso.” E vê-se como um revolucionário? “Gosto sobretudo de pensar que aquilo que eu escrevo poderia sobreviver, ser lido daqui a 30 anos. Isso, para mim, é a revolução.”
Filipa Martins
Um narrador dentro do narrador, eis o desafio
“Eu não acho que sofremos de esquecimento, sofremos de excesso de informação. Neste momento, somos todos Funes, captamos um fluxo contínuo de tantos dados que não conseguimos ter capacidade de abstração para criar sobre.” A alusão literária é à icónica personagem que nada esquece, criado pelo argentino Jorge Luis Borges, no conto Funes ou a Memória. Não será o único name dropping da conversa. Filipa Martins, lisboeta nascida em 1983, escritora, argumentista e jornalista freelancer, revela uma combustão literária pronta a crepitar: Sebald, Gogol, Joyce, Pessoa ou Vargas Llosa vão sendo convocados. À semelhança do Nobel peruano, em pequena também ela completava livros já escritos. “Tentava coser romances: Kafka e Camus, Vargas Llosa e García Márquez por exemplo… Divertia-me a preencher aquele vazio, a criar ligações com discurso meu. Às vezes, testava os conhecidos a ver se identificavam as ‘costuras’, e uma vez enganei uma professora de português com uma mistura de poetas…” Um escritor também constrói a sua mitologia. Hoje, assume os “momentos lúdicos da escrita que não passam para o leitor” e que a fizeram incluir a matemática neste livro – por exemplo, no uso de códigos que funcionam quase como mnemónicas a fecharem os capítulos curtos, nas alusões a Escher, nas idiossincrasias do matemático galego Rousinol, protagonista nascido numa família que batizava os netos com números. Ele era o Sete. Uma aproximação ao realismo mágico sul-americano, oferece a autora.
Um quarto romance ágil, erudito e desempoeirado, Na Memória dos Rouxinóis (Quetzal, 216 págs., €16,60) ‑ após Elogio do Passeio Público (2004), Quanta Terra (2009), Mustang Branco (2014) ‑ começa com a encomenda de uma biografia por parte de Rousinol, que nunca o desejara antes. “Tenho uma opinião relativamente conservadora sobre biografias autorizadas. Petrónio escreveu que um médico nada mais é do que um consolador de espíritos. Penso o mesmo dos biógrafos pagos. Masturbação assistida – não tarda e acaba em prostituição”, dispara o contratado Nino, narrador-personagem (um desafio literário para Filipa) que será a ignição dos dois temas fortes do livro: o envelhecimento do amor entre Nino e Camilo, desvendado após leitura algo avançada, e, sobretudo, essa ideia de que “o esquecimento é tão importante como a memória”.
Também na prática dos nascidos pós–25 de Abril. “Os autores atuais passaram dos grandes temas e ideologias para os micro, para as revoluções interpessoais, para os sentimentos pós-modernistas. E, mais do que trabalharem ideias, trabalham instrumentos e relações.” O pós-modernismo no seu romance fá-la desafiar linearidades temáticas e temporais. E a não fugir a uma profanidade abundante: “Isto faz parte da minha persona literária, no sentido em que, ao procurar a verosimilhança da personagem, tens de largar um ‘foda-se’. Isso é também uma marca da pós-modernidade: usar, simultaneamente, o vernáculo e uma linguagem depurada.”
João Reis
No teatro do absurdo da guerra
Foi uma coincidência alheia à sua vontade, este alinhamento entre a edição de A Devastação do Silêncio (Elsinore, 142 págs., €16,59) e a efeméride dos cem anos redondos que assinalaram a Batalha de La Lys, na qual o despreparado Corpo Expedicionário Português foi humilhado e dizimado. É que João Reis, nascido em Vila Nova de Gaia em 1985, formado em Filosofia (“sempre presente na escrita”, diz), autor de A Noiva do Tradutor (2015) e A Avó e a Neve Russa (2017), já tinha escrito este romance singular, para o qual visitou a zona da batalha e recordou a história do tio-avô António, soldado prisioneiro na Primeira Guerra Mundial. Um capitão vê-se num campo de prisioneiros alemão, os documentos ausentes em parte incerta, obrigado à convivência com os simples soldados, até que seja pedida a verificação do seu estatuto. “O comando alemão entrara em contacto com o comando português, porém, com as linhas cortadas, o pão derrubado pelas estradas, os cereais por colher… o comando português não respondia aos domingos e, por economia, recusava-se também a empregar os serviços postais… nem um único selo… nem um carimbo… tinham comido todos os pombos…”.
A geração que cresceu no pós-25 de Abril lembrar-se-á do sketch histórico A História da Minha Ida à Guerra de 1908, protagonizado por Raul Solnado? Aqui, estamos com o teatro do absurdo de Beckett. O discurso é de Herr Schiller, comandante do campo com quem o capitão joga ao gamão − e ao jogo de submissão. O capitão cala e não come. A comida é referência constante em A Devastação do Silêncio. Sopas de cascas de batata “com umas unhas à mistura”, e o sonho extravagante: “Um nabo inteiro!”
Este romance é alinhavado com eficiência cristalina: o desenho claro dos personagens, os cenários esparsos, a atmosfera concentracionária, os diálogos elípticos. Esta é uma voz literária contracorrente. “A utilização do sarcasmo, do humor negro, é característica minha. E é algo que falta na literatura portuguesa, a meu ver”, defende o autor, voz tranquila a partir de Vilnius, Lituânia, onde participava num festival literário e onde terá contado que se tornou escritor porque foi “um grande leitor”. Tradutor de autores nórdicos como Knut Hamsun, Strindberg ou Laxness, João Reis já trabalhou como chefe e estafeta, já fundou uma editora (Eucleia), já esteve emigrado na Noruega, Suécia e Inglaterra − culturas em que se revê e cuja secura, defende, “muda a mentalidade e a forma de ver o mundo”. Aos autores da sua geração, encontra mais diferenças do que uniões. “Antes da Revolução, proliferava aquele realismo, Fernando Namora, Alves Redol… Isso desapareceu da literatura portuguesa. Hoje em dia, não há grupos bem estabelecidos: há autores que seguem, ou tentam seguir, Lobo Antunes, alguns tentam Agustina Bessa-Luís… Eu sou mais Saramago”, declara. “O essencial é ter qualidade. Mas noto que a literatura portuguesa se afastou da ideologia, numa tentativa de parecer neutra e agradar a todos, algo impossível, correndo o risco de se tornar asséptica.”