Nasceu em Lisboa no verão de 1948 e hoje diz que se sente “desorientado” na sua cidade. Encontramo-lo fora da sua zona de conforto, no Chiado, no Teatro Municipal São Luiz onde estreou a peça A Noite da Iguana, a sua quarta encenação de um texto de Tennessee Williams nos Artistas Unidos, a companhia que fundou em 1995 a pensar nos atores mais jovens.
No seu filme autobiográfico Ainda Não Acabámos (2016) encontram–se dois traços seus que podem parecer contraditórios: um lado nostálgico muito forte e uma grande preocupação com o futuro, os mais jovens, a contemporaneidade… Revê-se nesta dualidade?
Sim… Sempre me interessei por passar o testemunho, tentar que aquilo que tive a oportunidade e o privilégio de viver servisse para os outros. Trabalhei regularmente em Paris em 1993/94 e pensei sempre que o que aprendi aí, mas também em Berlim e Milão, com os grandes mestres, o [Giorgio] Strehler, o Peter Stein e o Jean Jourdheuil, podia ser útil a pessoas mais novas, como a Joana Bárcia e o Manuel Wiborg que descobri, cheios de talento e generosidade, quando ela tinha 19 anos e ele 23… Se calhar estes meus últimos 20 anos serviram para isso: arrumar as minhas ideias e passá-las a outros. O mais novo agora a trabalhar comigo é o João Pedro Mamede, a quem, de certa maneira, dedico esse filme, que é, na verdade, uma conversa com ele… Honra-me muito poder organizar os impulsos infinitos destes rapazes e raparigas novos.
Além dessa relação com pessoas também a sua ligação a cidades, e Lisboa em primeiro lugar, parece ser muito marcante. Como tem visto a cidade nestes últimos tempos, com os seus tuk-tuks e turistas de tróleis na mão? Acha que há uma perda de identidade nessa moda ou saúda esse movimento?
Eu sinto-me perdido em Lisboa. Cada vez mais, vivo fechado num bairro que vai do Largo do Rato ao Jardim da Estrela, os lugares onde vivo e trabalho mais. Na cidade, sinto-me desgovernado, não sei onde comprar coisas, que lojas frequentar, aqui no Chiado nem sei onde comer uma refeição ligeira sem ser nas multinacionais ou nas nacionais imperialistas como a Padaria Portuguesa… Estou muito desorientado. Mas esta autêntica revolução vai acabar, claro, não se pode continuar sempre numa mudança permanente. Espero ainda saber utilizar uma Lisboa que me está a fugir… Há uns meses fui a um bairro que não costumo frequentar, Alcântara, e lembro-me de pensar “olha que agradável isto está”, havia tasquinhas, pessoas na rua a conversar e a comer caracóis… Se calhar, é nas margens daquilo que foi o centro que Lisboa está hoje a renascer. Aqui, eu já não me encontro. E tenho pena que os locais de convívio se tenham alterado, pena do desaparecimento de cinemas e teatros, coisa que não vejo a acontecer em Paris ou Londres. A minha cidade já não existe, e se calhar, quase com 70 anos, já não tenho direito a tê-la. Tenho pena, mas não me oponho a que as pessoas vivam, hoje, de outras maneiras.
Foi no São Luiz que viu o filme A Noite da Iguana (1964), de John Houston, a partir do mesmo texto de Tennessee Williams que agora está a encenar no mesmo lugar… Lembra-se bem desse dia?
Lembro, claro. Foi um filme que me impressionou bastante. Era complexo e enigmático, não teve um grande êxito na época… Não sei se teria idade para o ver, mas conseguia passar pelo fiscal. Vinha muito ao cinema aqui. Era o cinema do dia 1 de janeiro. No primeiro dia do ano era tradicional vir aqui com os meus pais. Almoçávamos cedo e vínhamos à matiné. E estava cheio, sempre. O Hatari! (1962) do [Howard] Hawks, um dos meus filmes de amor, vi-o aqui.
No Ainda Não Acabámos, quando anda por Roma diz esta frase: “Gostava de ter vivido numa cidade onde não me sentisse responsável”. Acha que tem alguma culpa em relação a Lisboa?
Acho. Também pode ser orgulho… É a sensação de que podia ter feito mais, ou impulsionado isto de uma outra maneira. Mas acho que ter pátria é sempre ter culpa. Como dizia o O’Neill: “Portugal, meu remorso de todos nós”. Quando um empregado de café, aqui, é malcriado para mim, eu sinto-me culpado. Quando um empregado de café, em Paris, é malcriado, e são quase todos, eu penso “ah, que engraçado, cá estão os franceses malcriados!”.
Será, também, uma questão geracional, essa culpa? A geração que fez o 25 de Abril não terá falhado numa passagem de testemunho às gerações seguintes? Nestes dias, depois da morte de Mário Soares, vê-se muita gente da sua geração a comentar e muito poucos jovens entusiasmados e com voz pública…
Isso, de certa maneira, até pode ser uma vitória do dr. Mário Soares. Não querer estátuas em vida e permitir, acima de tudo, a democracia, a liberdade e a Europa, temas principais da sua vida. Não serão os meus. Nem sempre estive ao lado do dr. Soares, mas sempre tive uma grande admiração pessoal por ele. Não se ter eternizado, se calhar, é uma vitória sua. E, por isso, as pessoas de 30/35 anos olham para nós agora como eu olhava para os republicanos do 5 de Outubro… Lá estão aqueles velhotes simpáticos, mas a minha vida é outra.
Há pouco falou da perda de lugares de convívio. O Jorge Silva Melo tem uma página do Facebook, que usa para conversas, desabafos, críticas… É importante, para si?
Comecei muito novinho a escrever em jornais, aos 14 anos, e a ter correspondência através dos jornais. Um dos primeiros amigos, e inimigo, que tive foi o [atual ministro da Cultura] Luís Filipe Castro Mendes. Escrevi uma crítica muito má a um filme (Zorba, o Grego) e ele, que vivia em Chaves e tinha 13 anos, respondeu-me a defender o romance. Seguiu-se uma polémica que durou quase um ano, sobre os limites do cinema e da literatura, nas páginas do Diário de Lisboa Juvenil…
Se fosse hoje, esgotava-se em poucos dias na caixa de comentários do Facebook…
Exatamente. Depois, ele mandou-me uma carta a dizer “apesar de sermos inimigos publicamente, quero ser teu amigo em privado” e até fui visitá-lo, nesse verão, a Chaves… Para mim, o Facebook é mesmo a continuação de algum jornalismo que fiz, algumas coisas que fui escrevendo n’A Capital, n’O Tempo e o Modo, em vários jornais que já não existem e finalmente no Público. Gosto disso. Curiosamente, no Facebook tenho muitas respostas de gente que não é de Lisboa, muita gente da minha idade… Não tenho nenhum desprezo pelas redes sociais e participo nelas com prazer.
Sente que é um instrumento que aproxima as pessoas? Há, também, o cliché de que as novas tecnologias de comunicação afastam mais do que aproximam…
Aproximam, claro. Conheci o Pacheco Pereira, que odeia o Facebook, também no Diário de Lisboa Juvenil, onde fomos correspondentes e polémicos! Era o nosso Facebook, sim, semanal [risos]…
Nos últimos tempos tem ido muito ao teatro?
Ainda gosto de ir e tenho ido bastante, mas agora menos, por razões familiares… Sou um habitual frequentador, sobretudo, do circuito off off off… Ou seja, daquilo que está a nascer, a começar. Há muita coisa a ser feita, sobretudo por rapazes e raparigas que estão a sair das muitas escolas que há neste momento. Criam espetáculos com condições mais do que pobres mas com uma grande determinação, vontade e, às vezes, um talento apreciável. Tenho uma grande admiração por esses grupos, que estão aí a surgir como cogumelos. Isso tem a ver com a quantidade de escolas que existem hoje e com a pouquíssima saída profissional para esses jovens, a não ser a televisão, e com a restrição de apoios que tem sido uma constante nestes últimos sete anos. Mas vejo seriedade em muitos desses novos projetos.
Sempre que há um governo mais à esquerda espera-se uma viragem em relação ao setor da cultura… Em relação ao teatro já sentiu uma prática, ou discurso, diferente?
Gosto muito do Luís Filipe Castro Mendes, sou amigo dele, como interlocutor não podia ter acontecido melhor…
Mas amizades à parte…
No setor em que trabalho, o teatro, não se nota muito. Ainda estamos, infelizmente, com a continuação da política do dr. Barreto Xavier. Há quatro anos tivemos, nos Artistas Unidos, um corte de 50% de apoio e este ano que aí vem vai haver um prolongamento dessa miséria… Espero que esta demora corresponda a cautela, ponderação e determinação naquilo que me dizem que vai existir: um novo regulamento de apoio às artes de iniciativa não estatal. Mas também espero que seja em breve, que eu já tenho uma certa idade…
Como é que olha, hoje, para o Teatro Nacional D. Maria II, com o trabalho feito por um diretor mais jovem do que o habitual, Tiago Rodrigues?
Acompanhei pouco o Tiago – que começou connosco, nos Artistas Unidos – no D. Maria porque, lá está, tenho visto espetáculos mais off do que os que ele lá tem apresentado… Por isso, não posso falar muito. Acho interessante a aposta forte na criação mas, por outro lado, acho estranho a curtíssima duração da apresentação dos espetáculos. Fazer espetáculos durante três ou quatro ou cinco dias é, para mim, o oposto da vida normal de um teatro, que tem que impor uma certa regularidade. A aproximação dos espetáculos de teatro à lógica de um concerto ou à dança é algo que ainda me inquieta. Mas ele terá as suas razões…
Reconhece, mesmo no seu público, uma grande renovação? Há uns bons anos repetia-se muito a ladainha “os jovens não vão ao teatro”. Isso não mudou mesmo?
Sabes quem não vai ao teatro agora? As pessoas entre os 35 e os 50 anos. Explico: tiveram filhos, compraram casa, vivem fora de Lisboa, é-lhes difícil sair à noite… Portanto, quem vai mais, agora, são os jovens dos 18 aos 30 e os mais velhos, a partir dos 56, por aí… Fora de Lisboa, acontece o contrário. Basta irmos ao Setúbal e aparecem as pessoas entre os 35 e os 50, porque têm melhores condições de vida, em termos de proximidade para deixarem os filhos, não têm estacionamento ou portagens para pagar… É um estudo que deveria ser feito. Em Lisboa temos a população dos descontos, os mais jovens e os mais velhos… E no cinema acho que se passa a mesma coisa.
Esta sua sucessão de peças do Tennessee Williams é um statement? Que significa o quê?
Gosto muito de seguir as curvas e vitórias dos autores, que não se esgotam nas peças mais famosas que escreveram. O Tennessee Williams é um escritor muito irregular, que tanto escreve uma cena brilhante como a seguir faz versões que acaba por rejeitar. Às vezes parecia muito inseguro. Gosto de não me intimidar na intimidade dos autores. E gosto do trabalho das Companhias, ver os mesmos atores, e de vez em quando um ou outro convidado – como o Nuno Lopes, agora, com quem só trabalhei uma vez, no filme António, um Rapaz de Lisboa –, a mudarem de personagens… E se é uma afirmação também tem a ver com o gosto de trabalhar textos originais, bons textos.
Ainda sonha com um novo espaço para os Artistas Unidos?
Gostaria muito de ter um teatro como deve ser, sem infiltrações de água, limitações logísticas. Mas não o vou ter, não terei nunca. Fui ao mar e perdi o lugar… Quando em 1979/80 resolvi sair do País perdi o meu espaço aqui. Todos os homens de teatro da minha geração ficaram com os seus espaços: o Joaquim Benite, o Luís Miguel [Cintra], o João Lourenço, o João Mota… Fui inventando, depois, em vários sítios. Adorava que o projeto A Capital tivesse prosseguido, é uma coisa que me dói ainda, nunca mais passei naquela rua… Acho que era uma coisa nova, radical e pertinente. Seria o ponto de partida certo para muitas coisas que estão, agora, a acontecer. Podia ter sido muito útil ali.
Que projetos grandes tem na gaveta, daqueles que quer mesmo concretizar?
Já não tenho… Estou de tal modo condicionado pela urgência de trabalhar nisto e naquilo que deixei de ter projetos. É a velhice, isso… Agora estou concentrado neste ano que aí vem, particularmente difícil, o tal prolongamento. A seguir… espero ganhar nos penáltis.
(Entrevista publicada na VISÃO 1245, de 12 de janeiro)