Pedimos aos acontecimentos a fineza de nos fazerem cócegas, ao menos uma vez por mês”, escreveu Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) num dos jornais que fundou. E isto, que é afinal o que todos os humoristas – do desenho ou da palavra – pedem, resume muito da personalidade e do génio do artista. Pedia aos “figurões” que derrapassem, aos governantes que dessem o flanco, aos portugueses que se deixassem ridicularizar – mas solicitava-o, e “com fineza”. Rafael era uma espécie de gato Pires, o seu adorado bichano de estimação, que comparecia (à imagem do mestre e dono, podia apresentar-se de cartola e monóculo) nos seus desenhos naturalistas e satíricos, por vezes grotescos, quase sempre mordazes, muitas vezes absurdos. O “alter-gato-ego”, chama-lhe o editor e escritor João Paulo Cotrim, ex-diretor da Bedeteca, autor da fotobiografia de Bordalo. Também João Botelho, diretor do Museu Bordalo Pinheiro, que faz uma visita guiada à VISÃO, através da obra exposta (o museu completa agora 100 anos de existência e tem uma exposição temporária que releva as afinidades entre Paula Rego e este artista,) assinala a presença de gatos nos seus desenhos, em especial nas autocaricaturas em que o gato Pires, instigador de unhadas, figura na sombra. E muito particular num duplo autorretrato (Bordalo era muito frequentemente personagem – ou a vítima – dele mesmo): ele em velho, barrigudo, decaído, pede lume a si mesmo, com menos 20 anos, em novo, vigoroso, em pose altaneira – nas sombras dos dois Bordalos lá estão dois gatos, um cansado, enrolado sobre si próprio, o outro travesso e zombeteiro. Talvez Bordalo se encarnasse neste animal, meiguinho mas indomável. Nas palavras de Osvaldo Macedo, historiador de arte, especializado em humor e caricatura, produtor de exposições internacionais de cartoon: “Ele cortou com essa forma cúmplice de viver ronronando no regaço da burguesia, cortou com a segurança de uma vida estável para fazer uma jornada toda em luta pelo seu quinhão de carapau do gato, pelo seu quinhão de sol nos telhados…”
Rafael tinha, como tantos outros artistas plásticos, uma paixão pelos gatos, não só pelas ergonomias felinas – o “design” de um gato é irresistível para quem desenha – mas também pela sua personalidade: rapinante, esquivo, emboscado para apanhar a vítima, predador, tal como o caricaturista, comenta Osvaldo, “caçador de falhas, de deslizes, de momentos, de atitudes, de atos”. E sobretudo livre: “Tanto podia ir à Ribeira comer uma sardinha, como ir a um salão aristocrático deliciar-se com um manjar faustoso.” O artista tinha este sonho louco: transformar o Rossio numa atração turística cheia de gatos, como os pombos da Praça de São Marcos, em Veneza, e distribuir-se-iam carapaus à hora certa para reunir toda a gataria de Lisboa… Talvez por amar tanto os gatos não se servia deles enquanto alegoria, nos seus célebres zoomorfismos – até na cerâmica era raro. Nunca aparecerá um gato em forma de político ou essa gente de má fama. A política era a grande porca, as finanças um cão esfaimado, a economia a galinha choca, a retórica parlamentar o papagaio. Rafael e suas “garras satíricas”, à solta pela cidade, “adorava a noite para descobrir os segredos do dia, gostava do dia para desvendar as curiosidades da noite”. E, continua o historiador, “o humor para ser respeitado necessita de um pouco de unha afiada, uma dor que nos obrigue a pensar, já que uma arranhadela no amor próprio não mata, apenas desperta”.
Viver com garra
Raphael Augusto Prostes Bordallo Pinheiro nasceu em Lisboa, terceiro de 12 irmãos (sobreviveram 9), numa família com tradições nas leis, mas também nas artes. Foi do pai que herdou os dotes artísticos – ele, o irmão pintor Columbano (um dos expoentes da pintura nacional) e uma irmã Maria Augusta (renovadora da indústria das rendas de Peniche)… O pai ainda lhe tentou arranjar um lugar de amanuense na câmara dos pares, onde também trabalhava, mas desde cedo o pequeno Rafael dava sinais de uma perspicácia irónica, o tal espírito de gato matreiro dos telhados. Mau aluno, fascinou-se pelo teatro, chegou a atuar no Teatro Garrett, não resistiu ao apelo plástico e inscreveu-se na Academia de Belas-Artes, mas poucas aulas terá frequentado. As primeiras “notícias” do sucesso dos seus desenhos vêm-lhe desses tempos, de caricaturas de professores espalhadas nas paredes da Academia. Observa Osvaldo Macedo: “As suas obras buscavam o naturalismo pitoresco, onde o grotesco e a ironia eram mais uma qualidade estética do que uma opção de género.” As primeiras “tropelias caricaturais” foram precursoras de desenhos de personalidades da cultura (dando origem ao primeiro álbum de caricaturas editado em Portugal) e, em 1870, fica marcado como “o ano da revolução satírica na carreira de Rafael”. Nem ele sonhava que havia de ser “o reformador do desenho satírico de imprensa em Portugal, projetando-a para o âmbito das artes maiores e da estética”. Na série de jornais satíricos que funda (A Berlinda, O Binóculo e mais tarde, em 1879, o famoso António Maria, “em honra” do mais importante político da época – o chefe do governo António Maria Fontes Pereira de Melo, figura assídua nas suas páginas), Rafael mostra a sua acutilante atenção à atualidade política e o seu papel de artista de intervenção política, jornalística e estética: “Quem tiver olhos que veja; quem não quiser ver, que durma.” O humor da sociedade portuguesa é colocado à prova.
E os portugueses estranham, mas rapidamente se rendem, apesar dos muitos dissabores que sobram para Rafael. É na Lanterna Mágica (de Guerra Junqueiro e Guilherme Azevedo) que aparece, pela primeira vez (a 12 de junho de 1875), a sua mais popular figura: o Zé-Povinho, ícone de um povo, adotado imediatamente por toda nação. Figura campónia, ar boçal, patilhas e “barba passa-piolhos”, maltrapilho, talvez embriagado, sempre carregando a albarda de burro… Teve cerca de 300 aparições na sua obra – também na cerâmica. Curiosamente, no papel nunca aparece a fazer o célebre manguito. “As outras nações criaram ícones do seu orgulho nacionalista, enquanto Portugal preferiu um símbolo degradante de um povo de brandos costumes, sempre recetivo às albardas que lhe adoçam no lombo, sempre submisso à miséria de políticos que ele deixa governar este país”. Num desenho coloca-o, estendido, a dormir, qual Gulliver, com as figurinhas das dinastias de reis em cima dele. Na legenda lê-se: “Levantar-se-á?”
Viajou, passou pelo Brasil, mas os caciques, capangas e jagunços não se riam das suas sátiras. Regressou, o Chiado continuaria a ser o umbigo do seu mundo. O caricaturista tornou-se famoso e de todos os poderosos – ministros, o rei Dom Carlos, clérigos, jesuítas – ninguém ficou a salvo do seu sarcasmo corrosivo. Entre bengaladas, farpas e processos judiciais, corre afiado o lápis observador de Rafael.
Julgado por ter desenhado uma Última Ceia com Zé-Povinho no lugar de Cristo,entre membros do Partido Reformador e os do Progressista, não se atemoriza pelo contratempo da prisão. Reincide na paródia da Última Ceia, e enquanto apóstolos estão polícias, juízes e carcereiros, desta vez ao centro está ele próprio: Rafael. No lugar central da mesa. No lugar central da sátira. Ria-se de si próprio. Reconhecia os seus ridículos, o seu envelhecimento, a sua bronquite crónica, fazia da sua tragédia clínica uma piada.
Delírios de barro
Desiludido com a política e sobretudo com a falta de solidariedade e inveja dos colegas jornalistas, Rafael dedica-se à cerâmica. “Eu não pertenço ao ajuntamento dos jornalistas por isso que estou sozinho e não há ajuntamentos de uma só pessoa; eu não pertenço ao grupo monárquico porque este me chama revolucionário; eu não pertenço ao partido republicano porque este me alcunha de vendido”. Faz-se então, afirma, “operário”. E mete literalmente a mão na massa. Investe todas as suas energias, toda o seu entusiasmo e criatividade na cerâmica – e também as suas economias numa fábrica, nas Caldas da Rainha. Não tinha qualquer relação com a terra, mas, com a ajuda do irmão Feliciano, foi aí que encontrou o melhor material, o melhor barro e os melhores barristas, e funda, em 1883, a Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha. Instala o seu atelier – uma cabana de cortiça bastante exótica e excêntrica, como não poderia deixar de ser – em pleno bosque, no meio da natureza, dos animais que adora, do macaco Basílio. “Onde estivesse Rafael Bordalo acontecia fantasia”, diz João Paulo Cotrim. Rodeia-se de operários e aprendizes, de maquinaria moderna, e do seu barro começa a sair uma torrente de peças delirantes, reassumindo o gosto, já demonstrado na caricatura, pelo antropomorfismo e animalismo. Exuberantemente carregado de pormenores, de uma minúcia miniaturista, de dimensões às vezes drásticas, com um especial apego pelos répteis e pela botânica – em especial a da horta que poderia ser a do Zé-Povinho: legumes, couves, abóboras, pimentos, nabos, alhos, uvas, cereais, flores, frutos e algas. Os animais são representados vivos: andorinhas em voo, aves de capoeira, insetos, peixes, batráquios, lagartos… Mas também mortos e manifestando o apreço gastronómico de Rafael: bacalhau seco, enguias, mexilhão, sardinhas ou animais de caça.
Para além das peças de uso doméstico, Rafael envereda também pelas suas figuras, como a do Zé-Povinho ou da Maria da Paciência (talvez a mulher do Zé-Povinho), velha de lenço preto e capote – agora a três dimensões e até com movimentos pendulares –, e traz a intervenção política para a cerâmica. É famoso o penico ou escarrador com as feições de John Bull, figura icónica de Inglaterra, uma provocação demolidora àquele país, depois da humilhação do Ultimato.
As peças decorativas são delicadas e, ao mesmo tempo, delirantes, barrocas, megalómanas. A mais representativa desta desmesura é a Jarra Beethoven (um dos compositores preferidos de Bordalo), que a conseguiu compor e esculpir contra todas as expectativas técnicas de modelá-la e cozê-la integralmente. Delírio barroco, a jarra não cabe sequer no salão a que se destinava. A sua fama chega novamente ao outro lado do oceano. Rafael transporta a sua obra para o Brasil, em 1899, com intenções de a vender, mas apesar de tão admirado e apreciado, o ambicioso e monumental jarrão acaba por não lhe render nada. Oferece-a ao Presidente do Brasil, Campos Sales, e ainda hoje está no museu do Rio de Janeiro.
Como bom artista, Rafael não percebe nada de finanças, esbanja, são proverbiais, comenta João Paulo Cotrim, os seus “repastos pantagruélicos”. E a sua aventura na tridimensionalidade prossegue, de crise em crise, até à falência final.
A fábrica de cerâmica nas Caldas acabou por descambar em falência, mas havia de receber a visita da rainha, D. Maria Pia, dando provas do seu fair-play, menos impressionada com os seus ataques à monarquia do que com a orgia de répteis, sapos, flores, lagartos, lagostas que ele sacava do barro.
Uma obra oceânica
Na sua vasta obra, contam-se, para além das caricaturas e cerâmicas, também ilustrações e capas de livros, figurinos de revista, rótulos e menus, a decoração do Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris (em 1889), a ornamentação do carro funerário de Eça de Queirós, escritor que muito admirava e assim o quis homenagear. São dele os magníficos azulejos, sapos em delírios dançantes, que forram a Tabacaria Mónaco, no Rossio, vilipendiados pelos seus proprietários, sem que ninguém faça nada para os proteger ou resgatar. João Paulo Cotrim chama-lhe “escritor de imagens”: texto e desenho juntam-se numa caligrafia única; nas composições narrativas revelam-se uma imensidão de pequenos pormenores, inesperados, recantos inovadores e muito além da sua época. Se certas páginas parecem banda desenhada, noutras ele explora o movimento do desenho animado. Rafael não mostra apenas, ele conta.
Também ele, ainda em vida, foi alvo de uma homenagem grandiosa, um banquete onde toda a gente, até os próprios caricaturados, compareceu. Caricaturar, dizia, “é o mesmo que pregar um prego no estuque novo de uma casa, com o protesto do senhorio”. Com o seu riso, comenta Cotrim, Bordalo “fazia buracos nas paredes”. Boémio, provocador, incorrigível. Tumultuoso, brilhante, indisciplinado, estouvado até, subversivo, prezava acima de tudo a liberdade. Na sua não muito longa vida – morreu em 1905, aos 58 anos –, não cultivou rancores, não colecionou ódios, não se alimentou de insolências e grosserias. Era fina a sua sátira, e ser caricaturado por ele já era uma grande honra – porque não se fazem caricaturas dos insignificantes. Lembra João Botelho, ele não caricaturava o homem, mas sim o político. Depois da realização do tal banquete, em 1903, e por iniciativa da Associação de Jornalistas, no Teatro Dona Maria, a que ninguém faltou à chamada (mais de 200 comensais), aplaudido dos camarotes, lamentou-se, com a ironia de sempre, a Raul Brandão: “Veja a minha desgraça! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguém!”
Zé-Povinho
É daquelas figuras que precisava tanto de ser inventada que permaneceu para sempre, identificada por todos, ícone de um povo submisso e explorado, e que, até nos dias de hoje, aparece em cartazes de campanha política. Ao contrário dos outros países que usam figuras heroicas para representar um povo, Rafael escolheu este ser campónio, de ar boçal, esfarrapado, sempre agarrado à albarda do burro. Ao longo da sua obra, a figura, criada a 12 de junho de 1875, teve mais de 300 aparições, mas só na cerâmica aparece a fazer o célebre manguito.
Paula Rego e Bordalo: diálogo improvável?
Paula Rego sempre mencionou Rafael Bordalo Pinheiro como uma referência. Conhecia bem os seus desenhos de ver os jornais em casa dos avós. E a caricatura, o grotesco, os bichos transfigurados de humanos (ou vice-versa), os temas de atualidade, a crítica social, subversiva e provocatória, impregnadas de um humor sarcástico, sempre tão presentes na sua obra, sugerem afinidades. Ou mesmo confluências óbvias, como no quadro em que convoca o magnífico peru preto de cerâmica, quase como uma sentinela (que zela ou ameaça) a mulher que descansa na cama (Primeira Missa no Brasil, 1993). Mas é na hibridez das figuras (meio humanos, meio animais), e dos ambientes (meio realidade, meio sonho), na presença dos animais domésticos – em especial o gato, claro –, na leitura narrativa que se faz das suas obras, que se descobrem estas ressonâncias e este diálogo improvável.
Ambos denunciam o amor pelas artes de palco – no caso de Paula Rego, mais o bailado, e, no de Bordalo, mais o teatro. O historiador de arte Pedro Bebiano Braga salienta “a escala das personagens e dos objetos, que obedece a uma lógica emotiva ou reativa, por um lado, de brincadeira geradora de riso, por outro”. E acrescenta: “Se existe a sugestão de humor irónico nestas obras [de Paula Rego], não tenhamos ilusões, por detrás de uma primeira abordagem está um mundo de enigmática violência, tal como por detrás do humor de Rafael Bordalo está, muitas vezes, uma profunda tristeza.” A exposição Diálogos Imaginados pode ser vista até 29 de setembro no Museu Bordalo Pinheiro.
Vénia
Depois de uma homenagem que reuniu mais de 200 pessoas num banquete, entre elas muitos políticos, alvos de estimação da ironia de um lápis sempre corrosivo, mas que nunca lhe ganharam rancor, Rafael agradece, junto com os seus animais
A perfeição do traço
Vários exemplos de como Bordalo, de forma mais trágica ou mais risonha, narrava o quotidiano. Ou as alegorias com animais, ou o baile macabro dos sapos (nos azulejos da Tabacaria Mónaco, o célebre duplo autorretrato, em novo e em velho e aquela que é considerada uma das suas mais belas pinturas: “A indiferença mascara a miséria”
Etapas da vida
Nem nas fotos domésticas Rafael esconde o seu apurado sentido performativo e de autoironia. A pintura em pose foi feita pelo irmão Columbano. Escapou à tentação de uma pacata vida burguesa. Preferiu sempre o bulício, a polémica e aventuras arriscadas (como a sua fase de artesão falido na Fábrica das Caldas). À direita, com a mulher Elvira, a filha Helena e o filho, Manuel Gustavo, o seu melhor discípulo, e que haveria de o substituir no traço e nas caricaturas, mas não com o mesmo sucesso
Fascinações
Gatos – Rafael era fascinado por estes bichos. Nas suas autocaricaturas, aparece rodeado pelo seu “alter-ego-gato”, o seu felino de estimação, o gato Pires
Outros animais – Podiam ser mamíferos, como este elefante, ou meros insetos ou mesmo batráquios, Rafael usava-os não só na cerâmica, mas como alegorias políticas nos seus desenhos satíricos
Botânica – Foi quando, fungindo às mundanidades do Chiado, Rafael se instalou num chalet, junto à Fábrica das Caldas, rodeado de plátanos e ulmeiros, que a flora entra com toda a pujança na suas faianças, e nem os pormenores dos veios das plantas são descurados
Multifacetado
Caricatura – Ser caricaturado por Rafael era uma honra. No Álbum das Glórias, o artista retratou 42 rostos das artes, entre eles Camilo e Eça de Queirós, um seus escritores preferidos
Cerâmica – Rafael transportou as suas obsessões, a sua loucura boa, para a cerâmica, celebrada pela minúcia dos pormenores e também pelo absurdo ou sobredimensão das peças
Autorretrato – Se caricaturava os outros, não se deixava a si de fora. Pelo contrário, Rafael comparecia nos desenhos, enquanto observador e personagem, com todas as suas imperfeições exageradas (acompanhado pelo gato Pires)