Bastaram os primeiros acordes do concerto para fazer estremecer as 20 mil pessoas que se encontravam no pavilhão Meo Arena, em Lisboa, na noite de sábado. Apesar de, por vezes, parecer adormecido, o público nacional continua a ser capaz de demonstrar entusiasmo e devoção ao ponto de deixar os artistas de cara à banda. Sobretudo quanto tem à sua frente o artista do momento. Afinal, toda a gente esperava ansiosamente ver subir ao palco Kendrick Lamar, o principal responsável por esgotar o terceiro e último dia da 22ª edição do Super Bock Super Rock.
O músico pedia para lhe mostrarem amor (“show me some love”), o público não se coibiu e desfez-se em manifestações de adulação que passavam por vozes afinadas do princípio ao fim das canções (mesmo as menos conhecidas), muitos saltos e, claro, as inevitáveis palmas e braços no ar.
Apesar da sua ligação óbvia ao hip-hop, também foi rock que Kendrick Lamar deu ao público do festival, que já estava preparado para se render ao autor de To Pimp a Butterfly (2015), aclamado pela crítica e considerado o melhor álbum do ano por publicações como a revista Rolling Stone ou o jornal The Guardian. Já era previsível que a consagração chegasse, a avaliar pelo caminho seguido nos seus dois primeiros álbuns de estúdio, Section.80 (2011) e Good Kid, m.A.A.d City (2012) – o músico confessaria a sua surpresa ao constatar que o público sabia de cor as letras dos seus discos anteriores.
O seu estilo discreto (vestia uma camisa aos quadrados azul e castanha) contrasta com o hip-hop norte-americano mais histriónico.
“Look both ways before you cross my mind”. A frase projetada no palco ao longo do concerto é da autoria de George Clinton, mítico músico norte-americano fundador do P-Funk (uma variante do funk). É também na mistura de estilos que reside a mestria do rapaz de Compton (Califórnia), que viaja sem preconceitos entre o rap, hip-hop, funk, soul, jazz e rock.
Em palco, K-Dot (como também é conhecido) fez-se acompanhar por músicos irrepreensíveis na guitarra, baixo, teclados e bateria. E, desde o primeiro minuto, passando por temas como Untitled 07, Backseat Freestyle ou Swimming Pools, a sua entrega foi evidente. Apesar da passagem feliz pelo Nos Primavera Sound, no Porto, há dois anos (na época pré-To Pimp a Butterfly), desta vez o público foi premiado com um espetáculo bastante mais frenético e emotivo.
Sem surpresas, Bitch Don’t Kill My Vibe seria um dos momentos altos da noite com o pavilhão transformado numa pista de dança, aconchegada por um sonoro coro em uníssono.
Kendrick Lamar ia agradecendo a celebração do público e a tentativa de contrariar, assim, os trágicos acontecimentos das últimas semanas. Uma celebração em jeito de catarse. Dificilmente poderia faltar uma referência à atualidade, já que os seus discos estão repletos de reflexões sobre o estado o mundo.

“Noite fantástica com Kendrick Lamar”, escreveu Renato Sanches na sua página no Instagram
Instagram Renato Sanches
Momentos épicos
Antes de arrancar para o tema i, deu-se um dos momentos épicos do concerto, com o público a deixar King Kendrick sem palavras ao juntar-se nos gritos, assobios e palmas ensurdecedores que durante vários minutos carimbaram a rendição da assistência ao rapper norte-americano. “That’s love”, diria emocionado. E era mesmo.
O entusiasmo do público desembocaria nas palavras de ordem mais ouvidas durante todo o festival: “E foi o Éder que os…”, uma manifestação de afeto de tipo novo. Kendrick Lamar pode não saber bem quem é Éder, mas privou com Renato Sanches nos bastidores. “Noite fantástica com Kendrick Lamar”, escreveu o jogador de futebol na sua página no Instagram, depois de assistir ao concerto no balcão do Meo Arena.
Os minutos de i seriam delirantes: “And I love myself / The world is a ghetto with guns and picket signs / I love myself / But it can do what it want whenever it wants and I don’t mind”, cantava-se. A luta contra o racismo e a importância da autoconfiança fazem parte do cardápio de temas abordados pelo artista.
A empatia do rapper com o público português provou-se, mais uma vez, quando Kendrick decidiu, ao contrário do que é habitual, aceder ao pedido de uma fã na primeira fila que pedia para lhe dedicar uma música. “Esta miúda aqui à frente não pára de me pedir… Por isso, esta é para ti!”, anunciou, antes de avançar para o tema For Free.
Claro que o encore era inevitável e não foi preciso esperar muito para se ouvirem os acordes de Alright. “Alls my life I has to fight, nigga / Alls my life I… / Hard times like yah”, e o público acompanhava-o na esperança sincera que tudo (seja lá o que isso for) vai correr bem.
Kendrick Lamar está no epicentro da música de hoje, numa febre de contemporaneidade contagiante, capaz de conquistar o público que já não se deixa levar por preconceitos ou barreiras entre estilos musicais. A heterogeneidade do público no Meo Arena comprovava isso mesmo.
A música de Kendrick Lamar mostra muitos caminhos e nenhum merece ser desprezado. K-Dot mostrou-se tal como é: um dos artistas mais criativos e carismáticos da atualidade.
E haverá também um caminho que o irá trazer de volta: “I’ll be back!”, prometeu no final do concerto. Cá o esperamos. Ansiosamente.
O festival Super Bock Super Rock regressa no próximo ano nos dias 13,14 e 15 de julho.