Mal põe o pé fora do carro, junto à Igreja Matriz de São Francisco da Serra, António Chainho junta-se de imediato a um grupo de homens que ali está nesse final de manhã. É recebido com efusivos abraços, apertos de mãos e palmadas nas costas. Ali, não é só o filho mais ilustre da terra, o músico que levou o som da guitarra portuguesa aos mais prestigiados palcos mundiais, é um deles, seu contemporâneo e amigo. Era naquele terreiro que passavam horas em futeboladas, com uma bola feita de trapos – “e o António jogava muito bem”, recorda o amigo Fernando, companheiro de equipa e das desgarradas noite fora. “Quando eu pegava na guitarra, o Fernando ficava a cantar até às tantas…”, atira António Chainho, em jeito de provocação ao amigo. “Foram tempos muito bons, que nos marcaram muito, íamos juntos a todos os bailaricos da região, muitas vezes a pé, e só voltávamos de manhã”, concorda Fernando.
O antigo Campo da Telha já não existe; o terreiro foi alcatroado e ajardinado e funciona como parque de estacionamento. Mais abaixo, foi entretanto construído um novo recinto para jogar futebol na aldeia, com as receitas de um concerto organizado por António Chainho, que também, de outra vez, trouxe Frei Hermano da Câmara à aldeia para um espetáculo que ajudou a financiar as obras de restauro da igreja. Apesar de ter saído cedo para Lisboa, a ligação a São Francisco da Serra, pequena aldeia do concelho de Santiago do Cacém, nunca esmoreceu, muito pelo contrário. É para lá que António Chainho, hoje com 77 anos, regressa sempre; para um monte com vista para o montado e para o mar, lá longe, que tanto o inspiram na hora de compor.
“Foi aqui que tudo começou, a ouvir fados na telefonia do meu pai”, recorda o mestre, enquanto nos guia pelas ruas da sua aldeia, distribuindo cumprimentos e acenos a quem passa. O destino é a taberna da irmã Bia, que manteve o negócio do pai, Jorge Chainho, onde almoçamos uma galinha caseira, assada no forno, acompanhada de vinho tinto alentejano. “É um dos pratos favoritos do meu irmão”, desvenda a mana, que, segundo António, “também cantava muito bem”. Enquanto prepara a refeição, Bia vai desfiando as memórias, perante o sorriso do irmão. “Depois de fechar a taberna, o meu pai deixava a guitarra no nosso quarto e era então que o António tocava. Ouvia na telefonia os programas de fado e aprendia logo. A dada altura até foi ele que começou a ensinar ao meu pai.” Passava tanto tempo nisso, que chegou a ser proibido de se aproximar da guitarra durante os exames da 4.ª classe. “Tinha seis anos quando agarrei pela primeira vez na guitarra do meu pai, que se zangou comigo, com medo que eu a partisse”, recorda António Chainho, que depressa convenceu o progenitor da seriedade da sua vocação. “Ele percebeu que eu tinha alguma intuição para a música e começou a ensinar-me. Por volta dos oito anos já só pensava na guitarra e os estudos estavam a ficar para trás…”, diz, com um riso matreiro. Mas a maior parte da aprendizagem foi feita de ouvido, a escutar os mestres na rádio. “Treinava muito e ficava todo contente quando conseguia descobrir como se fazia.” Com o tempo começou também a tocar na taberna do pai, famosa em toda a região pelos fados e frequentada por muitos guitarristas profissionais, que não acreditavam que o pequeno António tivesse aprendido tudo aquilo sozinho. “Passaram a vir pessoas dos arredores só para cantar comigo.” Na casa onde funcionava a taberna da família, mora hoje Graciete, a outra irmã de António Chainho, que conserva na sala o velho rádio onde o mano aprendeu a tocar – “Ainda funciona e tudo, querem ouvir?”
Memória feita música
O tempo livre era todo dedicado à guitarra e nem mesmo quando ia ajudar o avô no moinho de vento a largava. Chegava a dormir lá, numa cama feita com dois sacos de trigo, enquanto aprendia, primeiro com o avô e depois com o pai, a profissão de moleiro. “Adorava todo aquele ambiente. O som das mós e das velas tem algo de muito musical”, afirma António Chainho junto do velho moinho, hoje recuperado e transformado numa casa de férias por uma família oriunda da terra. “Aqui ficava a joeira, a bandeja que separa a palha e a pedra do trigo. O mais difícil era pilar a mó, era necessária uma grande arte. Lembro-me da mó a moer o trigo e eu aqui, a tocar para o meu pai” – como volta a fazer neste dia, emocionando a irmã Graciete, que não consegue conter as lágrimas. São memórias como esta que inspiraram o novo disco, onde não falta um tema precisamente intitulado Moinho, cantado pelo Coral de Serpa e pelo fadista Hélder Moutinho. Cumplicidades, assim se chama o álbum, editado em março, é um assumido tributo pessoal à viagem de uma vida e de uma carreira de 50 anos, marcada por uma visão muito própria sobre o lugar da guitarra portuguesa na música nacional. Levou-a muito para além do fado. Como se pode constatar agora, no grupo de convidados chamados a participar em Cumplicidades, que inclui nomes como Rui Veloso, Pedro Abrunhosa, Paulo de Carvalho, Ana Bacalhau (Deolinda), Sara Tavares, Fernando Ribeiro (Moonspel), Hélder Moutinho, o angolano Paulo Flores, o basco Kepa Junkera e a brasileira Vanessa da Mata. É esse trabalho que serve de base ao concerto de comemoração dos 50 anos de carreira esta sexta-feira, 10, no Centro Cultual de Belém, em Lisboa, e no sábado, 11, no Coliseu do Porto, palcos por onde passarão muitos destes convidados.
Fatal como o destino
Mal imaginava chegar tão longe, quando saiu pela primeira vez da aldeia, para ir cumprir a recruta em Lisboa, onde, era fatal como destino, se deslumbrou com o ambiente das casas de fado. Da capital seguiu para Moçambique, tornando-se numa espécie de guitarrista oficioso do exército português. “Iam buscar-me de avioneta ao quartel, para tocar nos mais variados espetáculos.” Terminado o serviço militar, voltou à aldeia natal, mas por pouco tempo. “Arranjei uma desculpa para voltar a Lisboa, disse que tinha que ir tirar a carta de condução profissional, e por lá fiquei.” Pouco tempo depois, começou a tocar n’A Severa, onde acompanhou Teresa Tarouca, Natércia da Conceição, Tristão da Silva ou Ada de Castro. Durante anos, tocou com os maiores nomes do fado, naquela que considera “a primeira fase” da carreira, à qual se seguiu a fase de “acompanhador exclusivo” de Carlos do Carmo, Frei Hermano da Câmara e, mais tarde, Rão Kyao. Ao mesmo tempo começava a lançar as sementes daquele que considera um dos projetos mais importantes da sua vida, a criação de uma escola de guitarra portuguesa, que iniciou no Museu do Fado, em Lisboa. “Era algo que fazia muita falta. Não me esqueço que quando cheguei a Lisboa ninguém me ensinou nada, com medo que lhes roubasse o lugar”, salienta. Em 2005 abriu outra escola em Santiago do Cacém, a que se seguiram mais duas, na Madeira e em Odemira. “Com as escolas, a guitarra evoluiu mais numa década do que em dois séculos. Sempre ensinei tudo o que sei, porque entendo que a guitarra tem de evoluir e deixa-me muito orgulhoso saber que fui pioneiro nesse campo.”
Hoje, diz estar a viver a “terceira fase” da carreira, aquela em que se afastou da sua zona de conforto inicial, o fado. “Começou já há uns 20 anos, quando passei a dedicar-me mais à composição e a convidar outras vozes para cantar as minhas músicas”, explica António Chainho, que conta já com sete álbuns editados em nome próprio. Em discos como Lisboa-Rio (2000) ou LisGoa (2010) casa a guitarra portuguesa com sonoridades de outras latitudes. Músico, compositor e produtor, António Chainho assume-se como “um homem do mundo”, mas cujo coração continua em São Francisco da Serra, o lugar onde tudo começou. “Se não fosse a guitarra, com certeza ainda aqui estaria e seria talvez comerciante, como o meu pai…”