Em extensão territorial, Idanha-a-Nova, na Beira Baixa, é o quarto maior concelho de Portugal. É também o terceiro mais envelhecido do País. Pouco menos de dez mil habitantes, em pouco mais de 1412 quilómetros quadrados, traduzem as dimensões do seu problema. Desertificação, despovoamento, baixa densidade, são as variantes semânticas dessa questão.
Agora, Idanha apresentou formalmente a sua candidatura à Rede de Cidades Criativas da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), na área da música. Atualmente, essa Rede de Cidades Criativas, criada em 2004, integra 69 cidades, nos cinco continentes, consideradas polos de criatividade em sete áreas específicas (artesanato e artes tradicionais, gastronomia, design, artes mediáticas, cinema, literatura e música). São nove as “cidades da música” da UNESCO, espalhadas por quatro continentes: Bolonha, Sevilha, Glasgow, Gent, Bogotá, Brazzaville e, desde o ano passado, Hamamatsu, Hanôver e Mannheim.
A candidatura idanhense não é uma coincidência. ?É uma consequência. “A música é uma herança cultural que nós valorizamos muito. Existe um longo trabalho junto das populações das freguesias, das localidades, para manter viva a autoestima e as tradições. Mas, nos últimos 12 anos, desenvolvemos intensamente vários projetos nas diversas áreas da música, foi um processo de crescimento”, diz Armindo Jacinto, presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. O autarca está consciente de que estas candidaturas nem sempre têm acolhimento imediato. Mas, “embora nos interesse muito integrar esta rede, o mais importante agora são as dinâmicas que a própria candidatura gera”, refere.
Paulo Longo, chefe de divisão de educação, ação social, cultura, turismo, desporto e tempos livres, elemento–chave no trabalho desenvolvido e neste processo de candidatura, salienta a importância da rede da UNESCO, que promove a cooperação internacional entre cidades que partilham a criatividade como fator estratégico de desenvolvimento. “Mas isto não seria possível sem antes Idanha ter criado a sua própria rede de trabalho para o futuro, que assenta em solidez de ensino, de valorização e transmissão do património musical, do cruzamento de vários projetos, nas vertentes mais distintas. A ‘nossa’ música tem um enorme potencial de cooperação e intercâmbio”, reforça.
A música está mesmo no ADN deste lugar raiano. ?Os projetos musicais que aqui encontram palco vão muito além da escala do concelho, muito para lá das suas fronteiras, da sua demografia. Dos ranchos etnográficos ao heavy metal, do barroco ao beatbox, do erudito à música do mundo, da música clássica à vanguardista, da filarmónica ao trance psicadélico… A música criou neste território um ecossistema criativo. E é por isso que Idanha-a-Nova, que nem sequer é uma cidade, quer ser a Cidade da Música.
José Relvas
A música de Idanha-a-?-Nova tem na sua matriz multissecular o adufe, omnipresente em todas as festas populares e nas celebrações religiosas, que na região são de vital importância. É um instrumento bimembrafone, normalmente quadrado ?- embora existam de todos os tamanhos e feitios, assim como de diversos materiais -, coberto de ambos os lados por pele de cabra ou de ovelha. No seu interior, tem partículas estriduladoras, como sementes, areia, soalhas ou guizos. Dizem os especialistas que é um descendente direto do bendir árabe, já que foi a civilização árabe que introduziu este instrumento na Península Ibérica, algures entre os séculos VIII e XII.
Em terras de Idanha, o adufe não é apenas um instrumento musical. É parte da sua identidade. E é impossível falar do adufe sem falar de José Relvas, o mais antigo e o mais conceituado construtor de adufes da região. “Guardo nas minhas mãos mais de dois mil anos de sabedoria”, diz. A construção de adufes é um saber hereditário, que a sua família foi passando ?de geração em geração. ?A fama dos seus adufes viaja longe, pois há muitos músicos internacionais que lhe fazem encomendas. José Relvas já produziu adufes para Zeca Afonso, para a Banda do Casaco, Vitorino ou Fausto, ?só para recordar alguns músicos que souberam reconhecer a sonoridade ímpar dos seus adufes. Não é coisa que se explique: “Tem a ver com alma.” Embora também os homens toquem, atrás de um adufe está quase sempre uma mulher. ?No concelho, há variadíssimos ranchos etnográficos, onde as adufeiras lhe conferem sonoridades próprias. ?E nunca iguais.
Noa Noa
O adufe, tal como a música de Idanha, aprendeu a viajar no tempo. E a cruzar-se com as mais distintas propostas. Como é o caso de Noa Noa, de Filipe Faria (fundador do grupo Sete Lágrimas, um dos mais inovadores, a nível europeu, a fazer a ligação entre música antiga e contemporânea) e Tiago Matias. O projeto colhe o seu nome no livro homónimo de Paul Gauguin, realizado a partir dos anos que viveu no Taiti. Nasceu, aliás, em 2012, por ocasião do 110.º aniversário da morte do pintor pós-impressionista. Esta formação, um duo, que integra algumas vezes artistas convidados, procura explorar na sua música exatamente a liberdade criativa da viragem do século XIX. Na música ocidental, essa liberdade criativa encontrava–se no século XVIII, quando os músicos cantavam, compunham, dirigiam e tocavam vários instrumentos. Os Noa Noa saltitam nas fronteiras da música tradicional e erudita, utilizando línguas e dialetos, reconfigurando a música antiga com práticas modernas. Para isso recorrem a grande panóplia de instrumentos, que acompanham a voz mágica de Filipe Faria.
Os Noa Noa e Filipe Faria têm uma ligação umbilical a Idanha-a-Nova, através de residências artísticas e vários projetos desenvolvidos no território raiano, entre os quais o Festival Fora do Lugar – Festival Internacional de Músicas Antigas -, que já vai na terceira edição. Consiste em transportar a música para os lugares mais improváveis, desde capelas inóspitas, a casas senhoriais, antigos lagares de azeite, locais abandonados… É, pois, um projeto de intervenção cultural, com efeitos diretos no património de Idanha-a-Nova.
André Oliveira
Desde pequeno que gosta de imitar sons. Na sua família tornaram-se lendárias as suas imitações de latas de spray. Fazia-o tão bem, que punha os familiares assustados à procura de tinta na roupa. André Oliveira, bicampeão nacional de beatbox, é o seu próprio instrumento. Agora estuda em Lisboa mas quando ainda vivia em Idanha-a-Nova descobriu o beatbox no ciberespaço, onde “somos todos do interior e todos da cidade global”. Foi na internet que descobriu a imensa comunidade beatbox. Depois de conquistar o segundo título de campeão nacional e de algumas passagens pela televisão, já chegaram convites para atuar fora de Portugal.
Concerto Ibérico Orquestra Barroca
Nascido em 2013, é um projeto único em Portugal, com estreita ligação a Idanha-a-Nova, onde já realizaram duas residências artísticas. Trata-se de um agrupamento de músicos profissionais sem fronteiras, que mudam de projeto para projeto mas sempre sob a direção do maestro e cravista João Paulo Janeiro. Na segunda residência artística em terras de Idanha, o CIOB desenvolveu trabalho sobre Handel, Vivaldi, Rameau e Bach, autores de referência no Barroco europeu. E ainda um trabalho para o aprofundamento da obra de Pereira da Costa, um importante autor do barroco português, ainda desconhecido do público menos especializado. Cada residência do CIOB termina exatamente como os projetos em torno da música devem terminar: em concerto.
Subliminal Legacy
Têm em comum as suas raízes em Idanha-a-Nova. E, mesmo que isso, aparentemente, não tenha tradução literal na sua música, já se sabe que as aparências iludem. São a primeira banda de heavy metal da região, e isso pressupõe um ato de coragem. “Mas é um ato controlado. A nossa música tem uma componente musical muito metódica e ao vivo apostamos numa forte componente visual”, diz Eduardo Lopes, mais conhecido por Fained. João Mateu (aliás, maTeo) é o vocalista, Rúben Ruivo (Sixxen) é o baterista, e Bruno Costa (NKCell) é o guitarrista desta banda formada em 2009.
Em 2012, após alguns concertos, algumas demos gravadas e a participação na compilação Underground n’Proud, lançaram o seu primeiro EP de originais, com o título ExPerience. Os Subliminal Legacy já pisaram os mais importantes palcos do circuito metaleiro português, como o Metalpoint, no Porto, o InLive, na Moita, ou o ADAC, em Pombal. A sua música não tem fronteiras, mas a base é em Idanha.