Chamam-se tetrápodes, mas a língua teima em enrolar-se quando se pronuncia a palavra. Por isso, tratemos por pés de galo estas enormes pedras de cimento que abrandam a subida do mar nos dias de temporal, aqui em Ponta Delgada, na ilha açoriana de São Miguel. Pelo volume e pela forma, é difícil passarem despercebidas quando se entra na avenida marginal que dá acesso à cidade. E é exatamente ali em cima que estão três inesperadas figuras de cimento, revestidas de fita-cola, como se conduzissem uma nave espacial tetrápode em direção ao mar. Mais uma vez, Mark Jenkins e Sandra Fernandez, artistas que já espalharam instalações insólitas nas ruas de todo o mundo, vão certamente conseguir fazer parar o trânsito também por aqui.
Ninguém diria que estas estranhas criaturas escolhessem a pacata cidade açoriana para aterrarem – mas, à partida, poucos apostariam em Ponta Delgada para ser a anfitriã de um festival de arte urbana. E, no entanto, foi ali que, entre 27 de julho e 12 de agosto, se encontraram artistas de todo o mundo, de Portugal aos Estados Unidos, de Espanha ao Canadá, de França à Polónia, da Venezuela à Bélgica. O Walk & Talk (que, este ano, chegou à segunda edição) nasceu da teimosia de Jesse James (assim, tal como o mais simpático dos fora-da-lei americanos), filho de açorianos emigrados e retornados do Canadá, e de Diana Sousa, ambos com 25 anos e de São Miguel. Depois de um curso de Turismo e Lazer em Ceia e depois de algumas voltas profissionais por Lisboa e no estrangeiro, quiseram fazer alguma coisa no lugar – e pelo lugar – onde cresceram. “A nossa geração foi a primeira que teve a sorte de ir estudar para o continente em massa. Havia dias em que enchíamos os aviões. E sempre me chateou o facto das pessoas dizerem que em São Miguel não se passa nada, mas não fazerem nada contra isso”, conta Jesse. No final de 2010 e em tempo recorde, formaram uma equipa e puseram a primeira edição de pé. Este ano correm de um lado para o outro, com escadotes e latas de tinta, para acudir aos mais de 20 artistas que participam no festival. “As pessoas aqui têm que ver outras coisas, os Açores não podem ser só natureza. Era bom levar este festival para todas as ilhas, gostava de chegar ao Corvo, nem que fosse com um mural só”, diz Diana.
Na equipa do Walk & Talk nunca se pensa em pequenino: trouxeram Mark Jenkins, um dos nomes maiores da intervenção urbana, os canadianos Phil Allard (que fez rolar pelas ruas de Ponta Delgada uma enorme bola feita de embalagens usadas) e Roadsworth (autor de uma pintura no Porto), os espanhóis Okuda (nunca mais ninguém passará pelos silos da Fábrica Moaçor sem dar por eles) e Liqen (que deixou um homem-máquina pintado no centro da cidade), os portugueses Mário Belém (um dos poucos a sair de Ponta Delgada e a pintar em São Vicente de Ferreira, na costa norte), Color Blind (uma dupla recente que pintou no Clube Naval), Eime (o senhor das pinturas de stencil, que também deu workshops por cá para “espalhar” a técnica) e Vhils (Alexandre Farto esculpiu o rosto de Diana numa casa em ruínas, na Canada de Mata Mulheres), entre muitos outros.
Sonho surreal
Nas traseiras da galeria e quartel-general do Walk & Talk, ouve-se o som da fita-cola a ser puxada do rolo, de manhã à noite. Mark Jenkins e Sandra Fernandez passaram os dias a reforçar os moldes das suas figuras, nascidos depois de Sandra ter enrolado Mark em celofane e fita-cola. É assim a sua técnica, demorada, repetitiva, a requerer uma paciência infinita… “O fim justifica os meios. É um bocadinho masoquista, mas, no final, sabe melhor o trabalho se tiver sido assim”, diz Mark, 41 anos, que começou por intervir no espaço público olhando para a rua como um teatro urbano em que as suas figuras contracenam com quem por elas passa. “Agora interessa-me sobretudo a ideia de surrealismo, das pessoas andarem na rua e acharem que estão num sonho surreal, de pararem para tentar perceber o que está realmente a acontecer, o que é ou não é verdadeiro”, explica.
Na discreta Rua do Calhau, não há quem não pare, se ali passa. Empoleirado num escadote, Hazul, um artista do Porto de 31 anos, vai preenchendo com uma lata de spray preto a enorme baleia azul e branca que ali desenhou na véspera. Habituado a pintar sem ser visto e a fugir da polícia pelas ruas que Rui Rio não quer ver sujas de graffiti, não dá a cara nem o nome verdadeiro, e vai sorrindo, quase encabulado, com os comentários dos açorianos e dos turistas. Sem formação artística, começou por deixar tags nas paredes, mas acabou por evoluir para este seu estilo de pormenor, com linhas e círculos que criam formas e padrões. No Porto, pinta os tapumes que cobrem os prédios abandonados (“costumo dizer que trabalho em parceria com a Câmara…”, brinca) e faz por criar imagens que não sejam agressivas, “harmoniosas, enquadradas no lugar e sem serem intrusivas ou sem incomodarem”. E explica: “Criei um universo que me possibilita juntar formas geométricas, orgânicas e femininas num equilíbrio”, descreve este rapaz que agora trabalha num call-center e vai desenhando enquanto atende as reclamações. Por cá, Hazul só tem recebido elogios. Quem diria que, assim de repente, Ponta Delgada conseguisse ser muito mais urbana do que o Porto ou Lisboa?