FINAL CUT: O seu filme contraria muito o cliché de filme brasileiro que costuma chegar às salas portuguesas: não há violência explícita, nem calor, nem praias, nem favelas, nem coqueiros… Pelo contrário, as personagens vestem-se com camisolão e as festas não têm samba nem forró… É mais difícil captar o mercado internacional não dando às pessoas aquilo que elas preveêm?
ESMIR FILHO: Quando trabalho em uma obra, faço por algo e não para algo. Portanto, a concepção do filme surgiu de uma urgência, uma questão. Falar sobre a existência passageira do ser humano na terra e o papel da internet como registro do se vive, se contempla, se reiventa. A estória original escrita por Ismael Caneppele se passa na sua cidade natal, com raízes alemãs, distante dos aglomerados urbanos, no frio do sul do brasil. A essência da estória é o que me move. Portanto, o mercado é apenas conseqüência.
Além desta deslocalização geográfica (chamemos-lhe assim), existe em todo o filme uma espécie de deslocalização temporal. Passa no filme uma sensação de despertença… Parece que as personagens não pertencem ou já não pertencem àquele lugar e àquele tempo… Os adolescentes querem ouvir Bob Dylan, os mais velhos ainda têm tradições anacrônicas de colonos alemães…
Sim, abordamos a questão do terrritório, a cidade alemã no brasil e do desterritório, a internet que ultrapassa fronteiras de espaço e tempo. O filme é sobre a partida. E partir de algum lugar de onde se pertence é se desapegar das coisas para poder crescer. Esse lugar pode ser físico ou não. Bob Dylan atravessa o tempo. Ele é contemporâneo a todas as gerações. Suas palavras dizem tanto hoje como diziam outrora. Só acredito em artistas que abrem fendas e deslocam o tempo de uma linha cronológica.
No fundo esta história passa-se entre adolescentes com as suas reflexões, o seu mundo próprio e tantas vezes indecifrável, porque eles são seres de transição, com suas angústias, os seus tédios, as suas emoções intensas, a sua atração pelo abismo, e as suas nostalgias – até do tempo em que eram crianças e “as bocas sorrindo até ao fim”…
A adolescência é a ponte do filme. É a ponte entre a infância e a idade adulta. No início, o medo apavora e é difícil atravessá-la. Tudo é nebuloso e as perguntas estão no ar. Aos poucos, fareja-se o trajeto. Estuda-se os possíveis caminhos. Estar no meio da ponte é ainda não poder enxergar. Pode-se cair no perigo de acreditar que todos os caminhos são iguais. A queda. O abismo. A saída daquela cidade, daquele estado de adolescer. É necessário cruzar a ponte para que você possa olhar para trás e entender o que se passou. E só a vontade liberta, porque a liberdade é criadora.
Parece ter-se centrado bastante numa estética, com imensos espaços abertos, com flashs musicais e visuais que dão ao filme um ambiente muito impressionista e sugestivo. Qual a importância da música, original e em inglês, no seu filme?
A música e a cama sonora trabalham no campo da inconsciência, costurando os fragmentos da realidade palpável e virtual. É diante de um transe sonoro que se embarca em uma experiência, em um abandono do eu. Eu já ouvia Nelo Johann e Bob Dylan enquanto passeava pelos lugares da cidade, na época de escritura do roteiro. Nelo representa o folk jovem brasileiro e universal. Ele nasceu na mesma cidade onde se passa o filme e traduz as questões adolescentes em sua música. Inglês é a língua que ele compõe e não poderia ser diferente. Um jovem nascido em uma pequena cidade, que faz música no seu próprio computador, usando uma língua estrangeira, que nunca havia estudado. Esse é o jovem que habita a internet hoje.
“Estar perto não é físico” – como é que, a seu ver, a internet vem alterar estas vivências adolescentes?
O menino acredita tanto nessa frase, que a ausência física da garota não é impeditivo para que ele sinta sua presença. Ou mesmo a ausência do pai que é forte presença na própria casa. O filme começa em uma tela fria, letras sendo digitadas, uma conversa com o mundo virtual e os sentimentos que dele brotam. Mas o filme acaba no tato, no toque, no físico, diante do encontro dos três personagens na estação de luz e o abraço da mãe. Acho que eu, como autor, colocaria um ponto de interrogação na frase, mais uma pergunta lançada ao espectador: “Estar perto não é físico?”
Conheceu a atriz que figura no filme através do blogue e das fotos que postou na internet. De que forma é que a net também passará a ser campo de trabalho de um realizador, como se aí também pudesse fazer uma espécie de réperage?
De maneira geral, não. Para o conceito do filme especificamente, era essencial. Eu falo de adolescentes que vivem a vida virtual como uma verdade. Então queria encontrá-los dentro desse mundo através do qual eles se comunicam, escrevem, tiram suas fotos, fazem seus vídeos. Pesquisei na internet meninos e meninas da região do sul do brasil que explorassem um olhar interessante sobre seu estado no mundo. A partir daí, encontrei-os pessoalmente e pude entender melhor a complexidade de cada um. Tanto a menina quanto o menino foram escolhidos a partir desse conceito. Na verdade, eles se escolheram. Foi um lindo processo de entrega e conjunção de fluxos.
A internet, os blogs, os chats, são uma caverna de Platão? Ou é ao contrário aquilo é muito mais real e verdadeiro do que muitos pensam?
Acho a caverna de Platão um ótimo símbolo para a internet. Mas como todo símbolo, é também limitador. Internet para mim é processo de conhecimento do ser humano, nasceu da urgência de se comunicar, registrar a existência, imortalizar a humanidade. Estamos ainda no início da ponte e a névoa nos impede de vislumbrar o final dela. Continuemos a atravessá-la, pois haverão outras paisagens a contemplar.
Uma ponte está sempre carregada de conotações e simbologias, algumas sombrias outras mais benignas. Os adolescentes estão neste impasse, também são pontes, algo entre uma margem e outra.. E há os nunca conseguirão atravessar a ponte…
Acredito que aqueles que não conseguem atravessar as pontes são os fracos e cansados. Não conseguem superar obstáculos. Apegam-se em pedras duras para poderem viver, sem mesmo perceber o quanto as pedras os bloqueiam. É preciso se desterritorializar, transformar-se em fluxo. Do contrário, não se atravessa a ponte. Perde-se pelo caminho. No percurso da vida, há muitos desvios sinalizadores. Mas quem os segue é você próprio. Ao mesmo tempo que a liberdade é urgente para todos, a urgência de cada um é subjetiva. O tempo liberta.