É uma das piadas que, volta e meia, salta do fecundo baú do anedotário de Woody Allen: “Frequentei o curso de leitura rápida. Li o Guerra e Paz numa noite: Passa-se na Rússia”. Também se pode ver o último ano de vida de Leon Tolstoi em duas horas do filme A Última Estação (estreia-se, quinta, dia 8), de Michael Hoffman: Passa-se na Alemanha. Forçada associação, forçada abertura de artigo. Só para dizer que o filme foi rodado na sua quase totalidade na Alemanha, por conveniências de produção e porque toda aquela envolvência de floresta, estepe e lagos correspondem exactamente ao estereótipo que formámos no nosso imaginário colectivo: aquilo passa-se inequivocamente na Rússia. Ainda a Rússia czarista, antes da revolução de Outubro, mas já depois de um primeiro abalo sísmico bolchevique abortado. Mais exactamente em 1910.
Além de forçada, parece despropositada. O grande Leo Tólstoi ficou mundialmente conhecido por ter escrito Guerra e Paz (1869), aquela colossal epopeia que envolve toda uma nação, e que encerra nela não só uma parábola da sociedade aristocrática russa nos tempos das campanhas napoleónicas, como também a intrincada, desmesurada, misteriosa, única e algo louca alma russa. O grande Leo Tósltoi ficou mundialmente conhecido por ter achado que “as famílias normais não tem nada de especial” e desvendado outra alma desmesurada, misteriosa e definitivamente louca: a da mulher adúltera apaixonada, em Anna Karenina (1878). Também ficou conhecido pelas suas afrontas ao regime czarista (ele era contra o czar por uma questão de princípio), por ter renunciado ao título de conde, por ter sido excomungado pela igreja ortodoxa, por proferir sentenças altamente audazes e provocadoras para a época e para o império russo (“Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas”).
Também por ser tão poderoso (reconhecido e idolatrado como um génio em vida) e intocável, ninguém se atrevia a desafiá-lo – e multidões emocionadas desfilaram no seu cortejo fúnebre a entoar o “Etern memóri”, no primeiro enterro civil celebrado na Rússia. Mas por uma coisa não ficou conhecido: por ter sentido de humor e daí o tal despropósito que, enfim, já lá vai muito atrás. Ele próprio se definia: “Sou feio, desajeitado, pouco asseado e sem verniz mundano. Sou irritadiço, desagradável para os outros, pretensioso…”. Mesmo na sua escrita, de frases densas, sem efeitos de estilo nem qualquer tipo de submissão aos sinónimos, não demonstrava um humor particular. Não era a forma que lhe interessava (“Se a vida falasse, falaria como Tosltói escreve”). E no entanto, este homem que passou metade da vida a vergastar colericamente mujiques e a outra metade a lamber-lhe as feridas, arrastou, já velho, rabugento e hesitante, quase como um profeta, um séquito de discípulos fanáticos que se converteram ao tolstismo, uma espécie de teologia algo débil e confusa, que ora se aproximava dos primitivos cristãos, ora do anarquismo místico, ora da resistência passiva que inspirou Ghandi- aliás, ambos trocaram correspondência. Uma série de apóstolos (entre os quais uma filha voluntariosa) acreditavam cegamente que “Deus falava de uma forma particularmente clara através de Leo Tosltói”.
Parecia o género de pessoas que amava tanto tanto a humanidade que quase se esquecia de amar o homem que estava ali ao lado. Pensa primeiro em mudar o mundo do que em mudar-se a si próprio. Queria doar em testamento os direitos da sua obra ao povo russo, desfazer-se das suas propriedades e deixava desaustinada a condessa Sophia, aquela que foi musa, mãe dos seus 13 filhos, que lhe decifrou e copiou 6 vezes as suas garatujas da Guerra e Paz e lhe dava conselhos do enredo: “A Natacha nunca diria tal coisa ao príncipe Andrei”.
E é nesta conturbada e já muito crepuscular relação conjugal (Tolstoi tinha 82 anos e Sophia menos 17) e nesta excêntrica seita que pregava o amor sem sexo, o vegetarianismo e “a alegria de fazer o bem” que aterra o filme de Hoffman, com a espantosa Helen Mirren no papel de condessa, vulnerável e feroz ao mesmo tempo, e Christopher Plummer, no do ainda vigoroso e de longas barbas brancas Tosltói.
Acaba de ser angariado um novo discípulo para a causa tolstoista ( James McAvoy) e apercebemo-nos que o grande escritor russo e a família devem ter sido os primeiros alvos dos paparrazzi- meio século antes da expressão ter sido inventada. Até nisto Tolstói foi pioneiro. Um punhado de fotógrafos a jornalistas não lhes largavam o alpendre da mansão do campo, a bisbilhotar os pormenores íntimos mais anódinos: “O que é que o conde Tolstói gosta de comer ao pequeno almoço, condessa?”
Sem ser sisudo, apesar de tão fiel ao romance homónimo (ver caixa), o argumento e as câmaras do realizador não descarrilam nesta viagem até à última estação. Como um bom russo vadio e esotérico, Tosltói há-de evadir-se de casa, dos luxos e da luxúria da condessa. Parte à noite, já debilitado pela idade, num comboio, em carruagem de terceira classe. Abandona a vida mundana para passar os dias em paz e solidão. Os seus privilégios repugnam-no. Um médico toma-lhe o pulso, está fraco. Têm de fazer uma pausa até o escritor se recompor. Numa paragem recôndita, no povoado de Astapovo, perdido no meio da estepe russa, o chefe da estação cede-lhes os seus parcos aposentos. Esta há-de ser a última estação e última morada. Entretanto Hoffman segue sempre pelos carris do convencionalismo, e da neutralidade. Não resiste a uma banda sonora escarninha, daquelas muito sublinhadoras. O talento sóbrio e volátil de Helen Mirren salva as cenas que poderiam ser mais caricatas.
Falamos do grande (assumimos a repetição do adjectivo) Tolstói mas na terceira etapa da sua vida. Já não era o jovem nobre que participou na Guerra da Crimeia e que cometia excessos, alvoroços e “ex-sexos” com prostitutas, orgias, jogo e muito vodka. Já não era também o pai de família, sublime escritor de alguns dos clássicos mais definitivos da literatura mundial. Agora ele está a chegar à última estação da sua vida: é um velho ideialista, cioso pela pureza, intolerante com os vícios depois de os ter cometido a todos. E nisto consiste a sua maior tragédia. A renegar a violência depois de a ter praticado na guerra e sobre os subalternos. A repugnar-lhe a carne, depois de passar por faustosos banquetes. A pregar a abstinência sexual, depois de ter tido 13 filhos (mais um, que se saiba, fora do casamento) e todo um historial de turbulências amorosas. A abdicar da riqueza depois de a ter usufruído durante a vida toda – e atenção que os padrões da nobreza russa não têm qualquer paralelo, em opulência e autoridade, com os da aristocracia ocidental. Este é outro Tolstói, de que se fala no livro e no filme. O Tolstói que já não se interessa por romances, mas tão idealista quanto incoerente, tão sentimentalista quanto naif, tão velho quanto confuso, cheio de conflitos existenciais, numa guerra (sem paz) interior.
Nesta sua fase tumultuosa, o filme não desafina, mas também não empolga por aí além. Aliás é extraordinário como numa comunidade em que a abstinência está decretada, se filma cenas de sexo tão frequentemente. O próprio Tolstói não resiste às investidas eróticas da condessa. E a mais recente angariação para a causa, o tal secretário particular, também não tem nada a opor quando a vanguardista Masha (Kery Condon) lhe entra literalmente pela cama adentro. Fica sempre bem num filme. Duas histórias de amor entrelaçadas. Uma no seu ocaso, a outra no seu fulgor – ambas passadas numa estação de comboio.