Chamem-lhe documentário – pela primeira vez um filme português, Pilar e José, de Miguel Gonçalves Mendes, inaugurou o DocLisboa. Depois, ante-estreou no dia em que José Saramago faria 88 anos – 16 de Novembro – com estreia comercial em 22 salas em Portugal (coisa rara), com 16 cópias enviadas para o Brasil (coisa ainda mais rara), com exibição prevista em 10 cidades brasileiras (coisa inédita). Sempre com a catalogação documentário a acompanhar. E com toda a legitimidade. Não podia estar mais correcta a classificação de género. Pilar e José é um documentário. Mas tem tantas histórias que se entrecruzam. Tanto mundo, tantos deslocamentos de rotina. Tanta música – alguns temas inéditos. Tantos bons diálogos, como nos bons guiões. Tanto mundo, tanta vida e um bocado de doença e morte, também. Tanto riso, tanta ironia, tanto escárnio e veneno. Tanto tédio. Tanta mágoa. Tanta amargura. Tanto amor. Tantos figurantes, alguns mais patetas, uns que só rogam autógrafos, fotografias, beijinhos. Há uma fã brasileira que diz ao ouvido do Nobel Saramago “eu te amo”, outro que pedincha ao escritor que lhe desenhe um hipopótamo. Há também muitos jornalistas filandeses, mexicanos ou brasileiros fastidiosos (ingrata profissão). E um, em particular, português que faz as perguntas a Pilar, ao nível tão bizarramente simplório que se podia imaginar num sketch dos Mony Phyton (um embaraço de enfiar um saco pela cabeça…).
Mas há sobretudo duas grandes personagens. Pilar Del Rio e José Saramago, que já conhecíamos, é certo, mas ficamos a conhecer de outra maneira. Que parecem tão antagónicas e tão confluentes. Como uma jangada de Pedra, uma união ibérica (como estava inicialmente para se chamar o filme). Ele, um retrato muito perfeito do ser português, introvertido, melancólico, reservado, no trato, na forma de lidar e olhar. Ela, muito espanhola, muito combativa, muito intempestiva, cheia de opiniões e energia. Ele a pensar antes de falar. Ela a falar antes de pensar. E no meio disto tudo está aquele malogrado elefante indiano, que empreende a mais excêntrica viagem por escarpas e serranias nevadas que mal se acomodam às suas pegadas, só porque o rei D. João III resolveu oferecê-lo ao arquiduque Maximiliano da Áustria, e que depois de tão inusitada caminhada, morreu, mas arranjaram-lhe novas valências para as patas e cortam-nas para nelas se depositarem bengalas e sombrinhas. A Viagem do Elefante (2008) era o livro que se ia compondo no computador de Saramago enquanto Miguel o filmava. Uma parábola sobre o sentido da vida, ou a falta dele (ou sobre quem vive sem dar por nada ou quem morra sem tal saber), mas que é ao mesmo tempo um on the road.
E depois há o set mais fora deste mundo para rodar um filme. Tão lunar quanto poético, tão inóspito quanto inspirador, que é ilha de Lanzarote com os seus moinhos eólicos tão marcantes ao longo do documentário. Aquele descomunal calhau vulcânico no meio do Atlântico – a jangada de pedra, outra vez.
Por tudo isto, por ser um on the road de um Nobel, a acudir às mais diversas solicitações do mundo do século XXI, enquanto se vai desenrolando um outro on the road do elefante nas veredas quinhentistas… Por ser uma história de amor tão irreal… Por ter um arco narrativo tão bem delineado que até tem um final feliz (Saramago recuperou da grave doença e terminou o livro – dedicado “A Pilar, que não deixou que eu morresse”) – este é um documentário que podia ser uma ficção. Que é geralmente o que se sente quando as coisas são perfeitas demais para serem verdade.
E com tudo isto quase nos esquecíamos de uma outra personagem. Miguel Gonçalves Mendes, 32 anos, “um chato educado”, nas palavras de Pilar. A admiração pelos livros de Saramago foi precoce: desde os 12 anos (começou pelo Manual de Pintura e Caligrafia) e durante anos, insistiu, insistiu, insistiu para fazer um documentário que retratasse Saramago e Pilar na intimidade. No filme vê-se Pilar a fazer uma pré-selecção de entre um molho de cartas, pedidos, solicitações, requerimentos, que chegam àquela morada de Lanzarote, vindos de todo o mundo. Uns são liminarmente rejeitados, outros lidos e rasgados, outros reconsiderados – Pilar guarda para si uma receita de bacalhau que também chega entre a correspondência. A sorte de Miguel já esteve ali no molho, a ser jogada naquela mesa. O sim de Saramago, só chegou, 10 anos depois, já ele tinha obra para mostrar, nomeadamente Autografia (2004) o documentário sobre Cesariny.
Saíram dois objectos cinematográficos nos antípodas um do outro, a começar pelo aspecto formal: no primeiro recorria a entrevista e depoimento, este está estruturado como se fosse uma ficção clássica. Em Autografia, retratava um homem que já se estava a despedir, à espera da morte, Em Pilar e José, fala de um homem (e de uma mulher) com sofreguidão pela vida. O que mais lhe faltava? “Tempo”, respondia. Também foi um filme doloroso, conta Miguel, Saramago sentia que estava “em contagem decrescente, o game over estava a chegar”. Ele tinha consciência disso: “Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente é isto a velhice”, lê Saramago, em off, um excerto do seu diário. E o homem que defendia que à Carta dos Direitos Humanos faltavam dois (o direito à heresia e o direito à dissidência) ainda tinha tanta coisa para dizer. E para tão longo amor por Pilar tão curta a vida. Quando numa discussão sobre a fundação, Pilar lhe pergunta “o que queres que eu faça?”. Ele responde: “Continuar-me.”
Depressa Miguel se apercebeu que não poderia fazer um documentário convencional. Começou por deslocar-se a Lanzarote para fazer uma entrevistas, filmou a magnífica sequência em Super 8 de Pilar e Saramago nas montanhas, e começou a acompanhá-los nas tournées pelo mundo. No regresso de cada viagem sedimentava-se a confiança. “Foi das coisas mais bonitas e mais corajosas a que eu já me assisti na vida: duas pessoas que são figuras públicas permitirem que alguém esteja durante quatro anos a filmá-los com liberdade total”. Nunca Saramago lhe disse pára, “eu próprio tinha o pudor e o cuidado de saber quando o devia fazer”, conta. O escritor chegou a assistir a uma versão longa do documentário, não fez qualquer reparo nem referência a cortes, nem sequer nas imagens em que se denuncia a decadência e a sua doença. “A única coisa que me disse foi ‘muitas vezes duvidei do interesse do que estavas a filmar e hoje acho que o filme é mais do que sobre nós dois, é sobre a vida”. Depois, conta Miguel, virou-se para Pilar: “É uma dedicatória de amor à tua pessoa”. Pilar respondeu-lhe: “Sim, mas também a minha vida é uma dedicatória de amor a ti”.
Depois foi uma maratona. Quatro anos, milhas e milhas de viagens, 240 horas de filmagens, custos acumulados, cinco meses só para selecionar imagens, uma ano e meio para montar “A certa altura achei que tinha perdido a lucidez”. Endividou-se, teve de reformular o empréstimo da casa, contou com apoios que vieram de patamares onde nunca esperaria chegar: da produtora de Almodóvar ou de Fernando Meirelles… Nunca duvidou do que estava a fazer, sentiu-se privilegiado por ter convivido tão de perto com duas pessoas admiráveis, “mas esgotei-me”: “Nunca mais volto a fazer documentários”.
Quando lhe falam da proverbial arrogância de Saramago, Miguel só lhe ocorre a “lição de humildade” que lhe foi devolvida. Ele invadia, Saramago permitia, tal como acedia às filas de autógrafos, aos debates, às viagens pelo mundo que o debilitavam, às conferências de jornalistas que o entediavam: “É uma tragicomédia, eles já sabem o que eu vou responder, e eu já sei o que me vão perguntar, mas temos de continuar a representar o nosso papel”, respondia a Miguel. No filme, o realizador faz uma analogia animada, com vocalizações de Adriana Calcanhoto, entre um sono infantil recorrente do autor, – um miúdo, ele próprio, encurralado dentro de um triângulo que se ia estreitando como um novelo até ao sufoco,- como as linhas áreas, idas e vindas constantes de avião, sobre o mapa-mundi, que também envolviam e tiravam o ar ao escritor, até à pneumonia quase fatal. O que o fazia correr? “Ele levava aquilo com um profissionalismo extremo, com uma disciplina espartana, quase como uma missão, dizia que era o mínimo que podia fazer por quem o lia e comprava. Penso que ele sentia uma espécie de dever moral para melhorar o mundo – aliás, essa era uma luta a dois, que ambos partilhavam com muita convicção”. Outra vez, a jangada de pedra.
Claro que muitos confundiam timidez com soberba, o escritor sentia-se muito mais à-vontade perante uma plateia de mil e quinhentas pessoas do que diante um inócuo jornalista finlandês. Numa cena do filme, antes de mais uma turba de jornalistas chegar, Saramago desabafa a Pilar: “O que hei-de dizer-lhes, vou reciclar uma frase antiga: “Vivo dessassossegado, escrevo para desassossegar”.
Mas não venerava, não fazia vénias. Era completamente destituído de subserviência. Tratava todos por igual, fosse os jovens estudantes italianos que lhe batiam à porta, fosse o Papa, fosse o Dália Lama. Fosse Deus ou o jovem realizador Miguel: “Ás vezes ele ‘descascava’ em mim. A minha visão do mundo é muito mais ingénua, obviamente. De resto, lidávamos de igual para igual, mas essa é uma regra que devia ser praticada na humanidade. Costuma-se dizer que os franceses fizeram a revolução e fizeram camaradas, nós fizemos a revolução e ficámos doutores. Isso continua a marcar muito Portugal, a visão de um que está lá em cima e de outro que fica cá para baixo. E é triste”.
Não se vergar à veneração dava-lhe uma grandeza imensa. Mas foi também isso que nunca lhe perdoaram. Isso e a sua coerente ligação ao PCP, e sua imensa frontalidade. Ele questionava os adquiridos. Sem contemplações. Em pleno século XXI, eis que no horário nobre das televisões se discute a existência ou não de Deus. Por ocasião do lançamento de Caim (2009), lançaram-se fátuas, foi um fartar vilanagem, um auto de fé caiu sobre um não crente, rolos de tinta, injúrias, tanto veneno destilado, e as vendas da Bíblia a dispararem. Miguel acha que isto tem muito a ver com a mediocridade muito pequenina, muito insidiosa e sibilante, muito à portuguesa, em que sucesso alheio é quase considerado ofensa pessoal. “As pessoas que quiserem ver mal em tudo, continuarão a vê-lo neste filme Não há hipótese de fugir disso. O destilar de veneno que impera neste país só é mau para nós, enquanto povo, este processo de auto-destruição, de auto-flagelação constante… Porque isso nos está a castrar, a impedir de avançar”, comenta Miguel.
Não é só um outro Saramago que vemos nos bastidores, frente à televisão que transmite nem um minuto de atenção ao filme Ensaio sobre a Cegueira, que se estreava na ocasião em Cannes, e que depois retoma a emissão com uma série de senhores de bigode que discutem futebol – “mas quem são estes tipos?, pergunta estupefacta Pilar. Ou que se comove com a voz de João Afonso. Ou se encanta com os malabarismos informáticos num jogo de cartas no seu computador portátil. É também uma outra Pilar que conhecemos, a jornalista que um dia chegou de Espanha para conhecer Saramago, a mais velha de 15 irmãos e que foi freira teresiana cujo lema é “ver, ouvir e não calar”, lembra Saramago no filme. A certa altura, num desses compassos de espera num quarto de hotel, entre uma conferência e mais outra entrevista, o escritor observa: “Eu tenho ideias para romances, ela tem ideias para a vida”. Faz uma pausa e exclama, “estás a ouvir Pilar, acabei de dizer uma frase sobre nós”. “Penso que esse encontro incrível, essa conjugação cósmica entre os dois se resume nessa frase”, observa Miguel. Um Sancho Pancha e um Dom Quixote. Ela a trazê-lo mais para a terra, ele, ao contrário do outro, com a cabeça embebida de uma racionalidade superlativa, a percorrerem o mesmo caminho. Agora os moinhos de vento são mesmo gigantes e geram energia eólica.
Bretch dizia que “um homem que tenha algo a dizer e não encontre ouvintes está em má situação, mas pior ainda estão os ouvintes que não encontrem quem tenha algo a dizer-lhe”. Portugal ficou ainda mais orfão, depois do seu desaparecimento, no dia 18 de Junho de 2010. Saramago dizia esta piada, lembra Miguel: gostaria que na sua campa se inscrevesse- “aqui jaz aqui um homem indignado, um homem que entrou num mundo mau e saiu num mundo pior”. Miguel esfolou-se para fazer o filme, mas não se arrepende, “agora olhando para trás”. Aqueles anos de proximidade com duas das pessoas que mais admirara mudaram-no de certa maneira, não nas convicções, “essas continuam as mesmas”, mas “a olhar para o estado de depressão coletiva do país, a deixar de ter pena de mim próprio, a relativizar tudo”. Como Saramago diz em off, num excerto dos diários selecionado pelo realizador, a certa altura do filme, “um dia o sol deixa de brilhar, o universo desaparece e nem dará conta que Homero escreveu a Ilíada”. E Deus? “Deus não precisa do homem para nada a não ser para se Deus”. E no fim, “pluff” – “há onomatopeias providenciais”.