A premissa de
Os Miúdos Estão Bem (estreia-se hoje, 18, em Portugal) resume-se a isto: uma família normal enfrenta circunstâncias inusuais. Esta é apenas o alinhamento horizontal de notas musicais, sons e silêncios que constituem a melodia do filme. Pode ser a mesma de tantos outros filmes. Só que depois há um conjunto de nuances, ritmos, arranjos e harmonias que transformam por completo a música . E fizeram do “drama cómico” de Lisa Cholodenko, um dos filmes mais falados do Festival de Sundance 2010 (também vencedor de um prémio em Berlim), a acenar aos Oscars. E essas pequenas grandes nuances são tantas e tão curiosas que se corria o risco de deslavar esta página apinhando-a de enumerações, como monótonas listas de compras. Mas para já, mantemo-nos na metáfora da melodia, porque vem mesmo a calhar, já que o título coincide (por acaso ou talvez não) com a música dos The Who,
The Kids Are Alright, do seu primeiro álbum
My Generation, de 1965. E é disso justamente que se fala aqui, daquela que ainda é a nossa geração. Daquela que já consegue olhar um filme de uma família composta por duas mães e dois meios-irmãos adolescentes, concebidos por um anónimo dador de esperma, sem colocar logo à cabeça a questão do lesbianismo. E isso é bom, porque apetece muito mais falar do extraordinário elenco: as maravilhosas, e mais luminosas que nunca, Annette Bening e Jullianne Moore, a interpretarem o mais luminoso casal do cinema dos últimos anos; a filha Mia Wasikowska (a Alice de Tim Burton), e o filho, o estreante Josh Hutcherson… E ainda o intruso nesta família tão (dis)funcional como as outras, que não vai deixar tudo como dantes – o aparecimento do pai biológico, um “cool guy” americano, descontraído dono de um restaurante rústico, que anda de mota, tem namoradas ocasionais e nos seus tempos de estudante doou esperma “porque era fixe” e para ganhar alguns trocos: Mark Ruffalo, talvez no seu mais intenso papel. Não só ambos os miúdos como uma das mães (Julliane Moore, com quem já protagonizara um casal em Ensaio sobre a Cegueira) deixam-se seduzir por ele . O que provoca um abalo sísmico num casamento de longa data. Ou seja a ordem torna-se desordem quando a normalidade (a existência de um pai) acontece. Uma espécie de dessarrumação afetiva, como uma peça de um outro jogo que se vem infiltrar num puzzle já (quase) completo. E esta peça desalinhada descobre, aos 50 anos, que nem lhe desagrada o enquadramento acolhedor de um lar, de uma relação estável, de uns filhos impecáveis, de uma casa formidável nuns subúrbios do sul da Califórnia. E de todo aquele ménage criado, inadvertidamente, num tubo de ensaio. Romances russos O que há de mais comovente, vibrante, e até cintilante neste filme é o facto de a realizadora (também ela protagonista de um casamento gay prolongado) e o co-argumentista, Stuart Blumberg (também dador de esperma nos tempos da faculdade) não usarem a singularidade sexual desta família para jogar com os estereótipos e tirar daí os habituais dividendos humorísticos. Neste aspeto, é um filme na linha de
Brokeback Mountain, que não se enfia na gaveta dos filmes gay. Claro que é divertido ver quatro braços estendidos a pedir “abracinho” a dois adolescentes enfadados. Mas esse é um lado ternurento, que faz apenas sorrir, e não rir com os gags e as paródias óbvias do costume. Até porque este é um filme tecido com várias dores. As dores de separação (quando a filha mais velha sai de casa para ir para a faculdade e tem de cortar não um mas dois cordões umbilicais). As dores de amadurecimento do limiar da meia idade, onde todos os três adultos se encontram. As dores da infidelidade e de outras imperfeições humanas. As dores de extenuamento de um matrimónio de longo termo, quando a habituação desgasta e o sexo é rotina. Dores de dantes, dores de agora, dores de sempre, dores de todos. Nesta família tão exclusiva que nos é tão universalmente… familiar. Há sempre algo de absurdo nestas nossas existências humanas. Ou como diz Julliane Moore perto do final: “Se calhar devia ter lido mais romances russos…”.
Os miúdos estão bem: MÃES HÁ SÓ DUAS
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Afinal, ao contrário do que dizia Tolstoi, as famílias incomuns também não tem nada de especial: Os Miúdos Estão Bem é um retrato doméstico da pós-contemporaneidade