Estamos no mesmo sítio, e no entanto, estamos num sítio radicalmente diferente. O mundo transformou-se radicalmente mas tudo (à excepção das Torres Gémeas) se manteve também radicalmente. Vinte e três anos depois, a mesma Manhattan, os mesmo homenzinhos frenéticos, convulsivos de excitação à roda de números que se alinham num ecrã – e no entanto, também eles parecem radicalmente outros. Na capital do capital tudo mudou tanto e tão pouco. Tudo progrediu muito e quase nada. É o que costuma suceder às coisas radicais: consentir paradoxos. E é isto que se sente depois de assistir à sequela de Wall Street (1987), de Oliver Stone, que agora vem subtitulada O Dinheiro Nunca Dorme (estreia-se hoje, dia 23).
O primeiro grande trunfo de Stone, em 87, foi ter conseguido fazer um filme sobre o mundo dos correctores da bolsa e a alta finança sem nos pôr a bocejar. O segundo foi ter criado um dos mais iconográficos vilões dos anos 80 Gordon Gekko (Michael Douglas) que roubou, com a maior limpeza, o protagonismo ao verdadeiro herói da história (Bud Fox/ Charlie Sheen). O terceiro foi ter cristalizado no seu filme toda uma estética iconográfica do look yupiie daquela época, com os seus suspensórios, camisas de riscas verticais, seduzidos gadgets (hoje ridículos de tão grotescamente obsoletos) e obras de arte. Mas o quarto trunfo, Stone, sempre crítico do capitalismo selvagem e da falta de ética que lhe está inerente, lança-o agora com estrondo no tabuleiro, depois de 2008, da crise global, e da grande “bolha” rebentar (há várias bolhas simbólicas ao longo do filme). Ele que fez a sua personagem proferir o célebre e infame “greed Speech” – “A ganância é boa e é o que torna a América bestial” – pôde servir fria a vingança de quem o criticou por denunciar os malefícios da especulação desenfreada. Enquanto isso, o seu herói/vilão, já grisalho, com 65 anos, passou os últimos anos na cadeia a acalentar a ganância. Porque esta como se verá, na sequela, serve-se quente. E o que faz nos anos 00, alguém famoso que acabou de sair da prisão? Escreve um best-seller, pois claro.
No primeiro filme, as mulheres usavam chumaços nos ombros, os homens bigode, os corretores andavam de lápis na orelha como os senhores das mercearias, e os computadores sofriam de obesidade mórbida. Havia imenso papel, uma ventoinha em cada secretária na companhia do jovem Bud e fumava-se nos hospitais – mesmo no quarto onde o pai está a oxigénio depois de ter sofrido um ataque cardíaco. O sexo e a cocaína surgem logo aos 15 minutos de filme, mas sempre em pano de fundo (no segundo filme não aparecem de todo) . Os corretores da banca não têm tempo para essas coisas, embriagam-se nos números e “o dinheiro nunca dorme”- é a frase repescada do primeiro Wall Street, dita por Douglas de madrugada, através de um “tele-tijolo”. Aliás, aparece um portátil que mais parece um pianinho da Chico, um eletrodoméstico que enrola sushi e um robot caseiro. Agora os computadores têm um triplo flat screen e antes as obras de arte (de um péssimo gosto aliás, uma contribuição de Darril Hanna, que ganhou o grazzie para pior actriz e que é uma decoradora de interiores e torna a penthouse do namorado uma casa dos horrores eighties) são substituídas por um autêntico Goya, aquele em que Saturno devora o próprio filho – outra alusão ao capitalismo. Stone volta a bisar o seu cameo. E na verdade é ele a falar quando Douglas se vira para uma assistência de jovens: “You are preetty much fucked! Vocês são a geração Ninja: sem rendimentos, sem empregos, sem património”.
Curiosamente, neste filme Stone tem que fazer um esforço muito maior para tornar o filme energético. Continua a recorrer aos ecrãs divididos, à música de David Byrne, ao skyline de Manhattan, às soluções gráficas, com uma intensidade frenética, às vezes muito pouco subtis, muito à Stone. A crise global é uma entourage muito mais bombástica, só que as personagens e o plot central são definitivamente menos interessantes – e a pretensão de retratar esta geração e estes novos e paradoxais anos 00 está longe de ser conseguida.
Ainda por cima, o Wall Street original tinha uma entrelaçada teia de relações pai/filho que transmitiam uma química especial ao filme. O próprio Stone dedicava-o ao pai, corrector da bolsa. Sheen sénior (Martin) e Sheen júnior (Charlie) contracenavam enquanto pai e filho. Michael Douglas conseguiu aqui o Óscar de melhor actor, o que o libertou, diz, enfim da sombra do pai, Kirk. E a própria história balança entre a lealdade de Bud, que balanceia entre duas figuras paternas que representam o bem (o velho pai mecânico de aviões, sindicalista e honesto) o mal (o especulador bem sucedido, para quem “o almoço é para cobardes” e cujo lema é “se precisas de um amigo, arranja um cão”.
Na sequela há uma filha bem-comportada, empregada numa organização não-lucrativa, o noivo corrector da bolsa, interessado nas energias verdes que moram num loft fabuloso. Mas até os netos podem ser moedas de troca e o toque de um telemóvel com a música de Ennio Morricone faz pensar que as leis do velho oeste continuam a vigorar. Portanto, isto não mudou assim tanto, embora pareça que mudou tanto. E a pergunta a quem ninguém responde é a mesma: “How much is enough?”