Com toda a honestidade: o escarpado e insular thriller de Martin Scorsese (Shutter Island, que se estreia hoje, 25) – tão sinuoso como a própria ilha onde foi filmado, tão labiríntico como as circunvalações cerebrais das suas alienadas personagens, tão tempestuoso como os ciclones e as intempéries que deixam o cenário de pantanas – não acrescenta nada à gloriosa filmografia do realizador, de 67 anos. Que já fez Taxi Driver (1976), ou Touro Enraivecido (1980), ou Cabo do Medo (1991), ou o menos conseguido Gangs of New York (2002), ou o oscarizado Departed (2006). Mas também em nada a belisca. É só mais um grande filme de um grande realizador. Não menos, não mais. Pela quarta vez, a energia nervosa, cheia de adrenalina, dos filmes de Scorsese transmite-se a Leonardo DiCaprio, aqui também uma personagem nada linear, o que lhe permite aquela expressão muito sua, de sobrolho vincado e olhar de impaciente inquietação… Logo aos primeiros fotogramas tem direito a uma aparição de grande estrela teatral, quando as cortinas se arredam e, numa espécie de fade in feito de nevoeiro, emerge um ferry-boat. Lá dentro está DiCaprio a vomitar. Ele próprio diz ao novo partner que o acompanha, pela primeira vez, numa missão policial, qualquer coisa como, “Bela maneira de eu aparecer, sempre de ‘cabeça enfiada na retrete'”. E já nesta altura, DiCaprio está com a crispação instalada no olhar: ele detesta água. E atenção, ele não diz que está nauseado, ou indisposto: ele diz que detesta água. Todos estes pequenos detalhes de guião são importantes. Todo este thriller policial e de mistério está construído como a ilha escarpada para onde o ferry se dirige, cada pedregulho está ali a sustentar outro, se o retirarmos ou não lhe dermos atenção, a história começa a desmoronar-se. E repare-se que DiCaprio tem uma gravata extravagante e um adesivo na cabeça, algo que não tendo a exuberância do extraordinário penso no nariz de Nicholson, em Chinatown, nos deixa até ao fim do filme a aguardar o respectivo pay off. Ou usando aquela estranhíssima e naïve expressão: com a pulga atrás da orelha. Os cinco primeiros minutos do filme são antológicos em termos de exposição narrativa. Uma dupla da polícia federal vai investigar um estranho desaparecimento numa colónia penal psiquiátrica de alta segurança, de onde é impossível escapar. Sabemos, desde logo, que aqueles criminosos loucos não são só gente que “ouve vozes e é perseguida por borboletas”. Sabemos, desde logo, que os muros são electrificados (algo com que o marshal DiCaprio está familiarizado), que se aproxima uma tempestade, que os guardas prisionais não são particularmente cooperantes (lembram-se do marido da inspectora Marge, em Fargo, dos irmãos Coen, o tal que pensa ganhar um concurso de selos? O actor John Carrol Lynch empresta sempre alguma estranheza ao enredo…) e o sítio é dirigido por um psiquiatra que fuma cachimbo, gosta de ouvir Mahler, condena a lobotomia e professa novas técnicas de psiquiatria modernas (o não menos insondável Ben Kingsley)… A imagem recorrente do gira-discos a rodar remete-nos para um policial em espiral, muito ao estilo edipiano, o detective que anda à procura de si próprio. DiCaprio tem flashs, sonhos e alucinações. Umas muito solares, cheias de música, em que comparece a mulher que supostamente morreu num incêndio: “Mas porque é que tu estás molhada?” Mas as outras alucinações ainda conseguem ser mais sombrias do que a própria ilha: um campo de concentração libertado pelos americanos, onde o capitão DiCaprio viu corpos amontoados dos prisioneiros e executou nazis como pinos de bowling. Praticamente demente Os condenados naquela ilha já ouvem vozes que cheguem. O problema é que o próprio detective também ouve vozes. Ele tem um trauma – que, elucida-nos o psiquiatra, quer dizer “ferida” em grego, e “sonho” em alemão. Ou seja, de noite acorda com os balidos das ovelhas, como diria o Dr. Lecter. Em breve, vemos que o agente sabe mais daquilo de que foge do que daquilo que persegue. O filme está cheio daquilo a que os ingleses chamam “arenques vermelhos”. Dantes, para conseguir caçar nas coutadas dos senhores, na Inglaterra vitoriana, os homens arrastavam arenques defumados pelos caminhos para despistar os cães dos proprietários das terras. Muitas vezes somos levados por cheiros fortes, pistas falsas, interstícios e alçapões. E já se sabe: é sempre um paradoxo entender a mente com a própria mente. No jogo, vira-se o tabuleiro várias vezes, como em Os Outros ou em O Sexto Sentido. Mas a cabeça de Scorsese está cheia de filmes antigos. Ele deu a ver aos seus actores a Ilha dos Mortos e A Casa Maldita, de Mark Robson (1954 e 1963), A Sétima Vítima, de Robert Wise (1943), a Pantera e outros filmes de Jacques Tourneur… Acontece muito aos realizadores da geração de Scorsese que se alimentavam de filmes, até dos europeus. Ao contrário da geração anterior, a de Ford ou a de Hitchcock. O que dá aos seus filmes de agora um certo maximalismo (se é que a palavra pode ser inventada). Algo de semelhante ao que aconteceu com Tetro, de Coppola. São filmes cheios, quase transbordam. Vindos de cabeças também muito cheias de background visual, referências e símbolos. No final, Scorsese inspirou-se no Retrato de Jennie (William Dieterle, 1948) e na cena do farol. DiCaprio também terá de subir o túnel para ver a luz. Talvez uma nova reviravolta, um terceiro turning point nos deixasse mais reconciliados com o filme. Ou talvez não. Diz ele, no final: “Mais vale morrer como um homem do que viver como um monstro.”
O arquipélago Scorsese
Como depois das tempestades, muitos despojos vêm dar à costa desta Shutter Island, o novo filme de Scorsese: fantasmas, arenques vermelhos, filmes antigos e Leonardo DiCaprio