Agostinho da Silva dizia que nunca tinha desilusões: porque também não tinha ilusões. Uma vez no jardim Infantil Pestalozzi que ele costumava frequentar, para conversar com os meninos, um deles perguntou ao professor o que ele, enquanto criança, podia fazer para conseguir melhorar o mundo. Agostinho da Silva olhou em volta e disse: “Talvez começar por apanhares aquele papel do chão”. Nelson Mandela é talvez a nossa maior referência viva. No que respeita a tudo: à dignidade humana, em geral. E então a contribuição dele para um mundo mundo melhor foi apanhar um papel do tamanho de um mapa-mundi, que ele simplesmente agarrou, completamente conspurcado e contaminado pelos apartheids e por um dos regimes políticos mais hediondos da História. Quando vemos Invictus, o novo filme de Eastwood, com Morgam Freeman na pele de Mandela, só nos faz pensar na frase cáustica de Óscar Wilde, foi uma oportunidade, ou seja, uma ocasião favorável para apanhar uma desilusão. A questão é que nenhum dos veteranos – nem Morgam nem Clint Eastwood – conseguem “apanhar o papel”. E isso é triste, é absolutamente decepcionante, e é talvez a maior desilusão cinematográfica do ano. Um biopic de Nelson Madela seria demasiado grande, então o realizador apanhou uma história lateral, uma parte que captasse o todo, um episódio aparentemente secundário mas que conseguisse centralizar a grandeza da personagem. A partir do livro de um jornalista John Carlin, correspondente na África do sul, impingido a Eastwood pelo próprio Freeman, o filme conta a história de como Mandela pacificou um país, depois de quase 30 anos de reclusão, quando chegou ao poder, reunindo todo um povo a torcer por um equipa de raguebi. Até aqui tudo bem: o plot era poderoso, tanto mais que Mandela tinha acabado de sair da prisão, tinha acabado de se tornar presidente de um país cheio de chagas sociais, e o râguebi era a modalidade que os negros detestavam por ser desporto de brancos. Claro que tudo termina como Mandela arquitectou, toda a nação, brancos e negros, torceram pela mesma equipa, mas no filme, todo o foco do grande líder mundial é retirado para este epifenómeno bem ardiloso e festivo, desviando-nos completamente da grande personagem Mandela, que francamente, foi mais do que uma velha raposa esperta. O filme recorre a todos os mais estourados clichés dos filmes desportivos, temos tensão nos balneários, agitação nas bancadas, câmaras lentas no relvado, imensos tipos de rabo empinado a empurrarem-se nessas moshes misteriosas, e depois o filme acaba em glória desportiva, como toda uma claque ululante, como costumam fazer todas as claques, esteja em causa a reunificação social de um país ou a jogatana de meia tijela de domingo à tarde. E enquanto os tipos andam à cata de uma bola imperfeita, que nem sequer é redonda, Mandela, o homem que teve a grandeza de repudiar a vingança, fica cada vez mais em background, em background, e daí a nada já estamos no mais banal dos medíocres filmes de desporto. Nem Morgam nem Matt Damon mostram qualquer energia para além do esforço de captarem o sotaque sul-africano. Até nos custa a crer que estamos num filme de Eastwood. Uma americanice. Francamente simplista. Francamente pobre. Francamente Imperdoável.
Nem todas as bolas são redondas
O filme mais decepcionante de Eastwood. Esperávamos muito Nelson Mandela e apanhamos muito chuto de bola e um filme de desporto com todos os clichés do género, muita câmara lenta e euforia na bancada
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