Mas não se consegue vê-lo!” Eram muitos os que se debruçavam para a figura inclinada sobre o seu próprio reflexo no espelho, que, paradoxalmente, não revelava o rosto. Um ensimesmamento de Narciso a mirar-se no lago, mas que parecia dizer “não te deixo ver-me, não me descobres, serei sempre só eu”. Alice do outro lado do espelho, em negativo e a cinzento. Espelho, espelho meu, existe alguém mais enigmático do que eu, do que tu, do que eles? Na sala branca do Museu Guggenheim de Bilbau, junto da peça Uma Figura (2000), era palpável, audível, a perplexidade primeiro, a frustração depois, a rejeição finalmente. Até chegar a incómoda sensação de se estar a ser arrastado para uma cena já preparada, quando os espectadores se apercebiam de que, em vez de vislumbrarem o rosto arredio – um auto-retrato do artista, ainda por cima, sussurrava-se -, viam-se a si próprios ao espelho: corpos inclinados a entortarem a cabeça, pernas dobradas até ao chão, num assomo de surpresa e indignação. Uma ratoeira, um truque. Para que servem os espelhos senão para nos mostrarem? Para que servem as esculturas de homens senão para nos reflectirem?
Ensaio sobre a cegueira
Enigmas, alguns apenas, que o artista madrileno Juan Muñoz gostou de espalhar pela sua obra. A partir de amanhã, 31 de Outubro, serão colocados perante os incautos, nas salas de Serralves. Haverá anões misteriosos em palcos vazios, a fazerem de ponto, costas viradas para o público – a peça (que nome melhor?) chama-se The Prompter (O ponto) (1988). A seu propósito, os críticos insistiam em falar de Beckett a Muñoz. O artista espanhol irritava-se, respondia que o seu trabalho era sobre “um homem que espera qualquer coisa”. E que preferia falar de “efeitos” em vez de “teatralidade” no que diz respeito aos seus trabalhos. Acrescentava que devia ter ido ao teatro apenas umas dez vezes.
Sim, Juan passou mais tempo a viajar – fugiu de casa aos 17 anos, foi viver para Londres com Vicente, um dos seis irmãos. Depois, estudou gravura em Nova Iorque. Viveu ainda em Roma e na Suécia, antes do regresso a Madrid. Os amigos contam que Muñoz se embebia no quotidiano, que a sua mente era uma correnteza a transbordar as margens. Certa vez, dentro de um táxi amarelo a fender as artérias de Nova Iorque, declarou ao amigo Adrian Searle que devia ali haver uma espécie de “chamamento muçulmano à oração”, algo que parasse as formigas humanas e as pusesse a olhar para cima, durante uns minutos. Olhar e perceber que não se está a ver é uma sensação comum, perto das esculturas de Juan Muñoz. Enigmas, já se disse, que serão sentidos pelos visitantes desta retrospectiva. Que outro nome dar ao boneco de ventríloquo pendurado numa prateleira, ambos suspensos de qualquer coisa, lá longe, à distância de dez passos, sobre um chão de ilusões ópticas? Tem-se medo de entrar, parece que se está a invadir qualquer coisa que não é nossa. Mas a figura órfã olha-nos, desafiante, em A Terra Devastada (1986), baptizada segundo um poema de T.S. Eliot – que era o preferido do pintor Francis Bacon. Uma das referências apontadas a Munõz por causa da maneira como inventou o espaço – uma arena plástica, onde se está simultaneamente fora e dentro – dimensão arquitectónica reivindicada por Muñoz, devorador de livros sobre arquitectura e filho de construtor civil. Mas há outras referências – Velázquez pelos seus anões, Giacometti pelas suas esguias figuras de ferro.
Muñoz nunca se afirmou como artista espanhol, nem gostava de citar a ditadura de Franco para explicar a dificuldade de expressão e movimento das suas esculturas – como se observa nas figuras humanas enxertadas em sacos gigantes de resina, bronze ou aço, puxando-se umas às outras (em Cena de Conversação, de 1996). Ele identificava-se, dizia, com a vaga de artistas da Península, “nascidos no lado errado dos Pirenéus” como crismou um crítico. Em busca de horizontes maiores. Começou a produzir apenas aos 30 anos, quando descobriu o seu corpo de trabalho, quando se atreveu a dizer-se escultor. A partir daí, criou obras que só se completavam em relação com o que as rodeava – a luz, o espaço, a escala, o público.
Experiências sonoras
Há, em Serralves, varandas suspensas, gradeamentos ritmados, a sublinhar um dísticode Hotel, em Hotel Declercq ou Varanda Dupla (1986). Desenhos até, como os Desenhos em Impermeável (de 1988 a 2000), cenários vazios, buracos negros onde parece ir começar alguma coisa. Descobrirão os mais curiosos que um corrimão banal esconde uma navalha afiada, em Primeiro Corrimão (1987). Uma obsessão de Juan Muñoz: “Costumava andar sempre com a mão no bolso, onde tinha uma navalha. Estava a tornar-se uma obsessão, e troquei-a por um baralho de cartas.” Maravilhosa citação para quem decida descobrir-lhe os naipes e truques. Entre-se numa sala onde uma multidão de chineses inquietantemente sorridentes, ligeiramente menores do que nós (os europeus?), desafiante metáfora sobre a forma de ver o Outro, parecem conviver numa esfuziante animação. De perto, descobre-se que todos os olhos estão cerrados. Seja qual for a forma como nos posicionamos, nunca olham para nós, nunca somos incluídos nesta troca.
As peças de Muñoz falam, mas não para nós. Ou não as conseguimos ouvir. Mas o artista fez experiências sonoras, e obras com som. Veja-se Sombra e Boca (1996): uma figura encostada à parede mexe os lábios, vemos a sua sombra, mas não conseguimos ouvir nada. Mais uma vez, o público debruça-se, entra no espaço da escultura, para se descobrir um eterno excluído. Não há reflexo nesta humanidade. Muñoz está morto, o seu reflexo perdeu-se, fulminantemente extinto num dia quente de Agosto de 2001, numa dessas casas brancas da sempre-feliz Ibiza. Falecido aos 48 anos de idade, casado com a escultora Cristina Iglesias, pai de Lucia e Diego, tinha em exibição a mega-exposição Double Bind, na Turbine Hall da Tate Modern, em Londres – um emaranhado de silhuetas humanas, elevadores vazios a percorrerem três pisos, e luzes a recortarem a acção, uma Metropolis mais silenciosa do que o filme de Fritz Lang. Muitos viram aí uma representação do céu, inferno e purgatório. O Outono próximo prometia ser o paraíso: uma retrospectiva de meio de carreira estava a ser preparada. Transformou-se numa lápide. E agora, é tempo de prestar-lhe homenagem, nesta retrospectiva (até 31 de Janeiro de 2009) co-produzida pela Tate Modern e a Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior de España, em associação com o Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Talvez o nome certo seja labirinto, uma peregrinação pela grande solidão humana.