O debate da RTP só foi noticiado na véspera, e em primeira mão, pelo vespertino A Luta. Previsto para demorar, “no máximo, duas horas” – como advertiram os moderadores, logo a abrir –, prolongou-se por quase o dobro: precisamente três horas, 40 minutos e 41 segundos, sem contar com o intervalo, aproveitando uma pausa obrigatória para a mudança das bobinas em que ficou gravado para a História – não apenas da televisão, mas da própria democracia.
Segundo o alinhamento do programa, este começou exatamente às 22 horas. Antes, e após o Telejornal das 20h30, que se estendeu, como de costume, por apenas 30 minutos, surgira nos ecrãs o secretário de Estado da Administração Escolar, o capitão-de-fragata Mário José Aguiar, no âmbito de “uma campanha de esclarecimento público iniciada por membros do governo”, como explicou o pivô de serviço, o jornalista António Santos. Seguira-se o habitual bloco de publicidade, de três minutos e meio, com nove anúncios, de marcas como Gillette, Woolmark, Timex, Maggi e Sagres.
Às 23h24 fez-se um único intervalo. Com a duração de cerca de oito minutos e meio, foi ocupado com pouco mais de dois minutos para sete curtos anúncios (Knorr, Nilfisk, Bic, Schweppes, CUF…) e com o oráculo da programação do dia seguinte, lido em off pelo locutor Eládio Clímaco. A segunda e última parte iniciou-se às 23h32 e prolongou-se, ininterruptamente, por quase duas horas e meia. Quando terminou, passava da 1h50, apareceu nos ecrãs um slide com o dizer “Exija fabricado em Portugal”. Sendo demasiado tarde para a última edição do Telejornal, voltou a ouvir-se a voz de Eládio Clímaco, desta feita para encerrar a programação e dar por finda a emissão – uma invulgarmente longa emissão, que estivera no ar durante quase 13 horas e meia.
Apresentado como uma “edição especial” do programa Responder ao País, surgiu nos ecrãs com o título “Frente a Frente… Mário Soares. Álvaro Cunhal”. A moderação foi entregue a José Carlos Megre e a Joaquim Letria, que apareceram perante os telespectadores a fumar. José Carlos Megre chefiava o Departamento de Programas Políticos e Sociais, que tinha a responsabilidade por este programa; Joaquim Letria, por sua vez, fora até há bem pouco tempo diretor-adjunto (para programas de atualidade) da RTP e era um dos jornalistas portugueses mais conhecidos e prestigiados. Nos televisores, ainda a preto e branco, Soares surgiu do lado esquerdo e Cunhal à direita, enquanto numa terceira mesa, sentados, estavam os dois moderadores, Letria e Megre, a quem, hierarquia oblige, competiu abrir e encerrar o programa. Ambos desempenharam um papel secundário: o palco pertenceu por inteiro aos dois líderes partidários. Ao todo, limitaram-se a fazer oito perguntas: duas na primeira parte e as restantes seis na segunda. Bastante mais experiente na condução de entrevistas, Letria foi quem mais perguntas colocou: sete, limitando-se Megre praticamente a tentar pôr alguma ordem no debate. Com quase uma hora de discussão já decorrida, e ainda em torno da primeira pergunta, Megre esboçou um pedido: “Já agora, gostávamos de ter possibilidade de fazer mais algumas perguntas.” Mas não era necessário, como os dois moderadores disseram, quase em uníssono, no princípio da segunda parte, reconhecendo que “é quase um crime interromper esta conversa”.

A gafe da noite partiu de José Carlos Megre, que, por cansaço e atrapalhação, a meio do programa tratou o secretário-geral do PCP por “Dr. Mário Cunhal”… Já a frase da noite pertenceu a Álvaro Cunhal: “Olhe que não, olhe que não!”, foi a forma como o líder comunista contrariou ou comentou, meia dúzia de vezes, afirmações ou acusações do adversário. O primeiro “olhe que não!” fez-se ouvir à meia hora, numa observação crítica, acompanhada de um sorriso de algum desdém, à pesada acusação que Soares acabara de lançar, a de que o PCP “quer transformar este país numa ditadura”.
Curiosamente, a expressão “olhe que não, olhe que não” – que entrou rapidamente no vocabulário político corrente e passou a estar colada à simples evocação deste debate televisivo – escapou, na altura, a todos os órgãos de informação escrita. O primeiro a destacá-la terá sido Manuel Sertório, numa análise política do debate publicada 11 dias depois no semanário O Jornal.
A realização do programa pertenceu a Herlânder Peyroteo, que aos 21 minutos experimentou dividir o ecrã em duas partes: a metade do lado esquerdo com Soares e a do direito com Cunhal. Estava encontrada a fórmula que melhor captava a vivacidade do confronto, a ponto de não mais a largar. Assim se percebeu melhor o jogo fisionómico de ambos, as pausas, os sorrisos e os esgares, o frequente jogo de braços de Soares, o uso constante da caneta por parte de Cunhal, as interrupções do socialista, os protestos do comunista, o constante jogo de ataque e de defesa de ambos. Eram quase duas horas da manhã de dia 7 quando José Carlos Megre terminou o programa com um seco “boa noite a todos”.
Entre o debate na Antenne 2 e o da RTP haviam transcorrido apenas quatro meses. Só que foram meses alucinantes, em que muita coisa mudou no País! Se em julho Soares e Cunhal ainda eram colegas do IV Governo, como ministros sem pasta, agora nenhum deles integrava o VI Governo e liderava, cada um deles, um bloco político em oposição frontal, por vezes mesmo a raiar a iminência de uma guerra civil. Se em julho apresentavam alguma proximidade, ainda que num crescendo de divergências, agora estavam em choque: viam-se mutuamente como adversários, mesmo inimigos. Se o debate em francês e para um público estrangeiro fora deveras polido e diplomático, agora, em português e para os portugueses, era a altura de falar claro, alto e bom som. Tendo quase o País inteiro agarrado ao televisor, havia que aproveitar a oportunidade, não para conquistar votos (não era disso que se tratava) mas para esclarecer e convencer, derrotar o oponente e, acima de tudo, mobilizar todos os potenciais apoiantes, porque ainda havia grandes batalhas a travar, sendo que um dos palcos principais eram as ruas e praças de Portugal.
No plano formal, a discussão manteve-se sempre num tom elevado e de mútuo respeito, com ambos a tratarem-se por “doutor”. Mas o debate tornou claras as enormes diferenças e o fosso que separava os dois dirigentes e os seus partidos. “O diálogo terminou em posições irredutíveis”, reconheceu o diretor de A Luta, Raul Rêgo. Na mesma linha, e perspetivando o futuro, Portela Filho escreveu no Jornal Novo: “Se aquela é a fratura, quatro horas de exposição de fratura, de consolidação de fratura, de pedagogia de fratura, vão consolidá-la.” Inteiramente diferente foi a leitura, no Expresso, de Marcelo Rebelo de Sousa, para quem o debate “não fechou a porta ao diálogo PS-PCP, antes se abriu um futuro caminho de progressiva troca de pontos de vista”.
