A era digital trouxe avanços inegáveis na comunicação, no acesso à informação e na produtividade. Mas existe um paradoxo inquietante neste progresso: quanto mais avançamos, mais arriscamos perder de vista o essencial. Literalmente. A nossa saúde ocular tem sido posta à prova por um estilo de vida que parece não conhecer pausas nem limites. Vivemos rodeados de ecrãs. Estudamos, trabalhamos, comunicamos através deles e até nos momentos de lazer continuamos agarrados a eles. Mas a conectividade tem um preço que poucos estão verdadeiramente conscientes de estar a pagar. Basta lembrar que a visão fornece uma quantidade significativamente maior de informação sobre o ambiente em comparação com outros sentidos, sendo crucial para a orientação espacial, reconhecimento de objetos e tomada de decisões rápidas. Para a maioria das atividades diárias, desde a navegação até à interação social, a visão é a principal fonte de dados sensoriais, fornecendo detalhes sobre cor, forma, movimento e profundidade, que são essenciais para a perceção completa do ambiente*¹. O desempenho visual influencia diretamente a performance cognitiva, motora, social e emocional. Assim, um sistema visual ineficiente compromete bem mais do que nos apercebemos.
Um dos desafios mais evidentes da era tecnológica é a Síndrome de Visão ao Computador (SVC), resultante da utilização prolongada de dispositivos digitais. Os sintomas – ardor ocular, sensação de olho seco, hiperemia conjuntival, visão turva transitória, cefaleias – são hoje quase uma extensão natural do quotidiano de estudantes e profissionais. A razão é simples e inquietante: pestanejamos menos, forçamos mais, e raramente descansamos. Ainda mais inquietante é o crescimento da miopia entre crianças e adolescentes. Os dados são inequívocos e perturbadores, associados não só aos ecrãs, mas também à reduzida exposição à luz solar natural. A culpa não é dos dispositivos em si, mas da ausência de equilíbrio: entre o ecrã e o mundo real, entre o esforço e o descanso, entre a luz artificial e a natural.
Em Portugal, embora a prevalência da miopia seja ainda consideravelmente inferior à observada nos países asiáticos – onde se estima que cerca de 80% dos jovens sejam atualmente míopes*² -, os dados mais recentes apontam para um crescimento preocupante. Um estudo publicado em 2024, que avaliou mais de mil crianças entre o 5.º e o 9.º anos de escolaridade*³, identificou uma prevalência de miopia de 21,5%. Entre essas crianças, 34,6% não utilizavam a compensação ótica mais adequada e 26,4% não usavam qualquer tipo de compensação – situação que não só compromete o conforto visual, mas que também pode acelerar a progressão da miopia, pondo em causa a saúde visual a longo prazo e afetando diretamente o desempenho académico e social. É como se aceitássemos que uma parte significativa da geração futura cresça a ver o mundo desfocado – e, desta vez, não apenas no sentido literal.
Estes dados refletem uma tendência crescente à escala global, que poderá agravar-se nas próximas décadas, caso não sejam adotadas medidas eficazes de prevenção e controlo. A ausência de diagnóstico precoce e a escassez de estratégias de controlo podem acelerar a evolução da miopia para formas severas – atualmente, cerca de 10% a 20% dos indivíduos míopes atinge níveis de alta miopia*⁴, dependendo da região geográfica e nível de escolaridade*⁵ -, com risco acrescido de patologias como degenerescência miópica, descolamento da retina, glaucoma ou mesmo perda de visão.
Infelizmente, a banalização do diagnóstico e a escassez de campanhas de sensibilização têm contribuído para uma desvalorização generalizada do problema. É urgente incorporar a saúde visual nas políticas públicas, nos programas escolares, nas campanhas de literacia em saúde. Implementar programas estruturados de rastreio visual pode também ser determinante, assim como valorizar os cuidados primários de saúde visual. Se queremos proteger a visão, precisamos de reconquistar o tempo ao ar livre, repensar hábitos escolares e profissionais, e adotar rotinas visuais saudáveis, como evitar aproximar objetos a menos de 30 centímetros dos olhos e a simples mas eficaz regra 20-20-20 (que recomenda que, a cada 20 minutos de esforço visual ao perto, se olhe para algo a 20 pés – cerca de 6 metros – durante 20 segundos). A deteção precoce na infância pode mudar o curso de uma vida, assim como o acompanhamento regular na velhice pode preservar a autonomia. E, para todos os outros, está o direito a ver o mundo – com nitidez, conforto e qualidade. A visão não é um luxo; é uma necessidade biológica. E cuidar dela é, mais do que nunca, um imperativo. Porque se há algo que não podemos mesmo perder de vista é a própria capacidade de ver.
*¹ Goldstein, E. B. (2014). Sensação e Percepção
*² Morgan, I. G., et al. (2022). China turns to school reform to control the myopia epidemic: A narrative review. Asia-Pacific Journal of Ophthalmology
*³ Nunes, A. (2024). Prevalence, sociodemographic risk factors, and coverage of myopia correction among adolescent students in the central region of Portugal, 24, Article number: 2490 *⁴ Morgan, I. G., et al. (2022). China turns to school reform to control the myopia epidemic: A narrative review. Asia-Pacific Journal of Ophthalmology
*⁵ Zhang, J., et al. (2022). Prevalence of myopia: A large-scale population-based study among children and adolescents in Weifang, China. Frontiers in Public Health, 10, 924566
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.