O setor imobiliário tem sido um dos mais resilientes da economia portuguesa. Mesmo com a pandemia e a instabilidade económica, milhares de famílias estão a avançar para a compra de casa com recurso a crédito bancário. E com a procura a fluir e a oferta estabilizada, os preços das casas vão continuar a subir. Dados avançados pela Confidencial Imobiliário mostram que no primeiro trimestre deste ano os preços da habitação subiram, em comparação homóloga, de “4% para o distrito de Lisboa, 6,5% para o distrito do Porto e 2,5% para o de Faro”.
“Existia uma expectativa de que o mercado iria sofrer um embate grande com a pandemia mas a verdade é que isso acabou por não se confirmar. Tirando o segundo trimestre de 2020 em que houve uma redução de atividade ligada ao confinamento as vendas recuperaram fortissimamente nos últimos trimestres. E há razões que ajudam a explicar essa resiliência. Desde logo a questão das moratórias e o apoio que houve em sede de layoff, a manutenção do emprego, etc. Tudo isso permitiu manter os mecanismos de estabilidade do ponto de vista do rendimento das famílias”, sublinha Ricardo Guimarães, economista e diretor da Confidencial Imobiliário, empresa especializada em dados do setor.
Mas no jogo da oferta e da procura do mercado, o outro elo, o dos promotores, tem também determinado a manutenção dos valores dos imóveis ao contrário do que chegou a acontecer na crise anterior. “Os atuais protagonistas do mercado ao nível da promoção imobiliária não estavam sequer em Portugal na crise de 2008. Estes promotores estão muito cimentados numa estrutura de capitais próprios. Não têm necessidade de começar a vender ao desbarato para pagar dívidas”, acrescenta o responsável da Confidencial, lembrando também o estímulo dado pelas taxas de juros dos empréstimos bancários a níveis historicamente baixos.
Estes aumentos dos preços, ainda que contidos, preocupam Luís Lima, que presidiu até à semana passada à APEMIP (Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal), lembrando que é fundamental a intervenção do Estado, principalmente em zonas muito valorizadas. “Por exemplo, em Lisboa, não há oferta para a classe média. Quando um T1 custa 200.000 ou 300.000€ pergunto-me para quem se destina, e não é certamente para jovens que têm um rendimento líquido de 1.000 € por mês e cuja prestação não deveria ir muito além dos 300 para cumprir a taxa de esforço. E está nas mãos do Estado alterar esta dinâmica tornando-se um operador ativo no mercado”, reforçou Luís Lima, acrescentando que só com mais oferta de imóveis podem existir preços de habitação mais acessíveis.
A iniciativa por parte de um número crescente de autarquias, não só em Lisboa e Porto, em apoiar programas de comparticipação de rendas também não é a solução, atira Luís Lima. “Várias autarquias do país querem atenuar o problema da habitação através de apoios nas rendas e isso é louvável mas a verdade é que apenas adia o problema por um ou dois anos. E depois? Eu não acredito que as autarquias vão ter dinheiro, todos os anos para este tipo de apoios”, realça o responsável, apelando à intervenção do Estado para a criação de habitação acessível, cuja necessidade, segundo as contas da APEMIP chega aos 70 mil fogos.
Vendem-se 470 casas por dia
Dados divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos a 2020 mostram que foram vendidas 171.800 casas, um rimo médio de cerca de 470 habitações por dia. E apesar dos confinamentos terem provocado a redução no número de casas transacionadas (menos 9.700 que em 2019) , o acréscimo de valor das habitações na ordem dos 8,4% permitiu assegurar no ano de 2020 um volume de transações na ordem dos 26,2 mil milhões de euros, mais 2,4% que no ano anterior.
Em 2020, os bancos concederam um total de 11,4 mil milhões de euros. Para encontrar valores similares é preciso recuar até 2008 , pouco antes do estalar da anterior crise económica. Um volume de crédito a que acresce, também, um outro dado divulgado recentemente pelo Banco de Portugal (BP) no final do passado mês de fevereiro: os depósitos de particulares nos bancos residentes atingiram o valor mais elevado de sempre, totalizando 163,8 mil milhões de euros.
Poupanças que para muitos fazem a diferença e que lhes permite avançar com o sinal necessário para desencadear o processo de aquisição de habitação. O Banco de Portugal, recorde-se, desde 2018, impôs medidas de prevenção ao incumprimento no pagamento das prestações de forma a evitar que as famílias possam perder a sua habitação para a instituição que lhes concedeu o crédito tendo em conta as elevadas taxas de esforço implícitas. Uma determinação que obriga os bancos a não financiar a 100%. Num dos seus mais recentes relatórios, o BP adianta que o crédito concedido pelos bancos para comprar casa atingiu 90% do valor do imóvel em mais de 90% dos casos.
Ricardo Sousa, CEO do grupo Century21 em Portugal, lembra também um outro fator tem estimulado a procura mesmo num momento tão conturbado como o que vivemos: “Com a pandemia, a habitação ganhou uma dimensão que não tinha e isso revela-se não só na aquisição de casa como no disparar das reabilitações e remodelações, no maior consumo de materiais de construção e compras nas lojas de decoração”.
Mas, reforça o responsável, com o m2 demasiado elevado nos centros das duas principais cidades do país, este segmento não teve outra alternativa senão virar-se para as periferias, muito antes até da pandemia, e onde foi surgindo nos últimos anos alguma oferta de imóveis que acompanharam a procura. Nesta dinâmica, os acessos mais rápidos à cidade, têm sido fundamentais. “Pegando no exemplo da área metropolitana de Lisboa, é notória a preferência deste segmento da classe média por zonas servidas pelo metro. Isso explica a procura nos anos mais recentes por concelhos como Amadora, Odivelas ou Almada, onde os preços dispararam”, acrescenta o CEO da Century21, acrescentando que este fenómeno deverá replicar-se em outras localizações onde existe a expetativa da extensão do metro, onde se incluem, por exemplo, Santo António dos Cavaleiros ou Loures”.
Dados dos valores do m2 para o primeiro trimestre deste ano avançados à Visão pela Confidencial Imobiliário mostram, por exemplo, que para a aquisição de um T3 com 120 m2 já é necessário desembolsar cerca de 213 mil euros em Almada, 215 mil na Amadora ou 245 mil em Odivelas.
“O mercado residencial mudou muito. Neste momento, cerca de 80% das transações passaram a ser asseguradas pelos clientes nacionais e destes, uma percentagem significativa, recorre ao crédito bancário. Estamos a falar da classe média e dos jovens que precisam mesmo fazer crédito para ter acesso à habitação porque o mercado de arrendamento poucos ativos tem”, diz o antigo presidente da APEMIP (que se afastou da associação por motivos pessoais e entretanto foi substituído por Paulo Caiado), sublinhando que em certos locais, onde se destacam as cidades de Lisboa e do Porto, “existe um grande desfasamento entre os valores disponíveis no mercado e aquilo que as pessoas podem realmente pagar, pelo que muita gente não vai conseguir cumprir a sua taxa de esforço”.
Empurrados para as periferias
Alexandra Pereira, consultora da Remax Prestige que intermediou a casa vendida à família Cunha, confirma que estas localizações têm absorvido grande parte dos investimentos imobiliários dos clientes que lhe têm chegado.
“Tenho acompanhado muitos casais jovens ou famílias da classe média que por trabalharem em Lisboa gostariam de comprar aqui a sua primeira habitação. Com rendimentos por agregado familiar que podem ir até aos 2.200 ou 2.300 euros, só conseguem comprar em zonas como Arroios, Olivais ou Marvila e muitas vezes num terceiro andar em prédio sem elevador ou para reabilitar”, especifica a responsável.
Zonas “consolidadas” e com bastante procura junto do mercado nacional e também já do estrangeiro como as Avenidas Novas, Alvalade, Areeiro ou Campo de Ourique já entram num patamar da classe média-alta, “onde não há casas com valores abaixo dos 300 ou 400 mil euros”.
“A opção acaba muitas vezes por recair em periferias como Amadora, Odivelas ou Sintra, preferencialmente junto ao metro ou ao comboio que permitam um rápido acesso a Lisboa, poupando gastos com combustível e parquímetro para o automóvel”, reforçou ainda a consultora da Remax Prestige.
No Porto, a lógica é a mesma. À impossibilidade de se chegar aos preços praticados no centro ou na Foz onde o m2 pode chegar facilmente aos 5.000 euros, os casais jovens estão a descobrir alternativas habitacionais em Matosinhos, Paranhos, Ramalde, Leça da Palmeira ou Antas, onde até está a surgir produto novo, com o m2 a rondar os 3.000 euros, explica Ana Jordão, consultora imobiliária da Predibisa.
“Sentimos que as pessoas estão a repensar o seu modo de vida e a tomar decisões rápidas. Com o teletrabalho percebem que se calhar já não precisam de dois carros, basta-lhes um. E também fazem contas ao que vão poupar em viagens ao estrangeiro, por exemplo”, detalha ainda.
E também os promotores se estão a ajustar às restrições, desta vez, económicas, impostas pela pandemia. “Muitos promotores com projetos em obra estão a alterar os seus planos de pagamento exigindo um máximo de 20 ou 30% de sinal com o restante a ser entregue na altura da escritura através de concessão de crédito. Até há bem pouco tempo e em alguns casos, chegavam a pedir 60% de sinal mas isso mudou”, conta a responsável da Predibisa.
No estudo “Habitação Própria em Portugal numa Perspetiva Intergeracional” pela Fundação Gulbenkian, uma das principais conclusões apontava precisamente para o facto de “ao contrário das duas gerações anteriores, só uma baixa percentagem de Millennials conseguir tornar-se proprietária com hipoteca antes dos 30 anos”, registando “as famílias mais jovens uma quebra de riqueza líquida superior a 50% nos últimos anos”.
Entre as várias fontes que suportam a investigação (dados Pordata, Banco de Portugal, INE, etc) constava também o Eurobarómetro que num inquérito feito aos jovens europeus (15-30 anos), apresentou também dados relevantes para esta questão. À pergunta “o que leva os jovens a ficarem a viver até mais tarde na casa dos pais”, 63% dos jovens portugueses responderam que não tinham condições para sair.
“Em 2004 esse percentual era de 55%, em 2017 já tinha subido para esses 63% referenciados no estudo e dados mais recentes da Eurostat, reportando-se a 2019 já apontavam para uma subida, ainda que ligeira de 64% de jovens portugueses. Quando média na União Europeia é de 48%. Isto é bastante demonstrativo do que está a acontecer à geração Milénio em Portugal, em termos de habitação”, sublinha Romana Xerez, co-autora do estudo (em parceria com Elvira Pereira e Francielli Dalprá Cardoso).
E vai piorar, acredita a investigadora. “É muito previsível que esta situação se agrave bastante nos tempos mais próximos. Não temos uma bola de cristal mas todos os indicadores apontam para o crescimento do desemprego e o que estava a acontecer com a geração Milénio, que já tinha sofrido com o impacto da crise de 2008, é que voltará a ter de lidar com uma nova crise de dimensões inimagináveis e de características únicas”, rematou ainda Romana Xerez.