O FÚRIA, APONTAMENTO
TEXTO INTEGRAL
A partir deste dia, não há perdão para quem
só me deixou adormecer ontem às 3 e meia da manhã.
Mcb
De pijama fresco, estendi-me sobre uma cama enorme e limpa e fui dormir. Mas, não dormi. O calor em excesso da Ilha entrava-me pela janela; os lençóis Valentino incomodavam-me; o cobertor Pierre Cardin de um amarelo vivo de que tanto gostava e sobre o qual dizia aos meus netos olhem, um dia será vosso, ameaçava afogar-me; a ceia escolhida que ingerira por causa do colesterol pesava-me no estômago. Foi por isso que não dormi…
Mas, meus amigos leitores, acreditam que foi por isso que só adormeci às 3 e meia da manhã? Num Domingo, após um dia de cheiro bom da terra molhada a entrar por todos os sentidos da minha vida longa de tempo mas curta do pouco que a soube viver? Tomem atenção a um novo e extraordinário relato e aprenderão porque alguém tão privilegiado pode não adormecer até às 3 e meia da manhã.
Era uma vez um rapaz que vestia sempre um pijama às riscas. Era uma vez outro rapaz, curioso e bom, que vivia descontente com a sua vida monótona e solitária. Viviam em lados opostos da vida e da vedação. Também usavam cortes de cabelo diferentes. E choravam por razões diferentes. E andavam por razões diferentes. E comiam/não comiam por razões diferentes. Ah! Tinham um factor comum – ambos haviam nascido a 15 de Abril do ano de 1934 D.C.
Um dia, cansado da sua vida
monótona e solitária o rapaz que vivia do lado de cá da
vedação saiu a explorar o fundo do seu quintal/quinta pois reparara, ao olhar pela janela do seu quarto, que do lado de lá da
vedação havia uma grande quantidade de gente pequenina vestidas todas elas de
pijama às riscas. Como criança curiosa sabia que era bom ir explorar aquilo que
ninguém na sua casa ainda tinha reparado. Mas, porque era um explorador de mão-cheia também sabia que os exploradores não devem contar a ninguém sobre o que procuram nem
o que encontram.
Ao aproximar-se da vedação, viu um pontinho que se transformou numa pinta que se transformou numa mancha que se transformou num vulto que se transformou num rapaz. Rapaz que era um menino igual a ele que era outro menino, diferente dele porque vivia do lado de lá da vedação.
As leis gerais da Natureza dizem que
uns procuram outros acham e outros são achados. O
rapaz de pijama às riscas estava ali sentado, de pernas cruzadas, para ser achado. O rapaz que nascera no mesmo dia e ano do rapaz de pijama às riscas foi ali para achar o que tinha que ser achado.
Ao longo de dias e dias que perfizeram um ano, as tardes de Bruno e Shmuel foram-se colorindo de pequenas partilhas cautelosas não ambíguas, ingénuas com pequenas brechas a tentar furtar a inocência dos rapazes que se encontravam em lados opostos da terra dividida pela vedação.
Ah! Também houve o dia em que o rapaz do pijama às riscas
foi encontrado na cozinha da casa do outro rapaz a lavar os copos que precisavam de uns dedos pequeninos para ficarem a brilhar muito. E os dedos eram tão magrinhos que parecia que se iriam partir a qualquer momento. E o rapaz que era dono da casa
teve medo e vergonha de dizer que ele era seu amigo.
Não se encontraram três dias. A morte da avó que era artista e cantava e, também tocava piano, levou o rapaz
que achava que tinha uma casa muito pequena só porque era de três andares a ir a Berlim onde se encontrava a
sua outra casa que o rapaz achava que era muito melhor porque tinha cinco andares com salas luxuosas e baixelas e vidros biselados mais outras coisas bonitas como corrimões brilhando por onde o rapaz às vezes escorregava a fingir que era mais rápido do que aquele comboio quase vazio que um dia o levara dali e estava parado ao pé do outro que partindo na mesma direcção ia cheio de gente suja e toda ela vestida/despida de pijama ás riscas.
O rapaz que viera a Berlim e ia voltar para a Polónia dali a três dias chorou a morte da avó que era artista e cantava e, também, tocava piano. Ah! E ás vezes vestia-o de actor porque dizia que era preciso ter o traje para ser personagem senão nunca mais se era personagem de verdade. Por isso ele pensava que seria bom que a avó não tivesse morrido para lhe fazer um pijama às riscas como o do seu amigo Shmuel.
Chegou o dia em que o rapaz, que tinha ido ao funeral da avó a Berlim, voltou à sua casa de três andares na Polónia. Sentia-se triste porque nunca mais ia ver a avó e contente porque as suas conversas conversadas/silenciosas do lado de cá da vedação com o seu amigo Shmuel que estava sempre sentado no chão do lado de lá da vedação iam recomeçar.
Porém, o rapaz chamado Bruno que era filho de um grande amigo do Fúria e tinha uma irmã que passava muitas horas a pôr as bonecas em ordem porque não tinha mais nada para fazer, além de rir por tudo e por nada sempre que um jovem amigo do pai aparecia e ela julgava que era por causa da sua beleza de doze anos mas era só para os controlar, não fossem eles espreitar o que se passava do lado de lá da vedação, dizia eu que o Bruno estava receoso porque podia ser que o seu amigo já não estivesse sentado no chão à sua espera com o seu corpo muito magrinho e olhos tristes e desiludidos de quem está prestes a desistir.
Foi ao fim de três dias, quando a chuva que caía desalmada parou, que o rapaz saiu de casa escondido de todos para ir ao encontro do seu amigo Shmuel. O seu coração de menino bom e inocente das crueldades do Fúria, que era o chefe do pai e a quem o pai prestava total vassalagem, pulou de alegria verdadeira quando avistou
um pontinho que se transformou numa pinta que se transformou numa mancha que se transformou num vulto que se transformou num rapaz (a frase aqui transcrita em itálico é do autor do livro ” O rapaz do pijama às riscas”, John Boyne).
Conversaram e fizeram silêncio, conversaram e fizeram silêncio, conversaram e fizeram silêncio. E deram as mãos através de uma brecha imprevidente existente na vedação. E o rapaz que vivia sem ter um amigo para brincar porque era pessoa, ao contrário do rapaz do pijama às riscas que não era pessoa, assim lhe tinha dito o tal jovem amigo do pai, combinaram que um dia iriam juntos explorar o campo cheio de gente toda ela vestida de pijama às riscas que ficava do lado da vedação onde vivia/não vivia Shmuel.
Num dia em que o tal jovem amigo do pai desapareceu da casa, não se soube bem porquê, ficou decidido que todos voltariam para Berlim, excepto o pai. Bruno não ficou contente porque assim nunca mais iria ver o seu amigo que não era pessoa e ele, apesar de ser pessoa gostava muito da sua companhia e da sua amizade triste, mas doce e verdadeira.
Na pressa de conhecer e explorar o campo cinzento onde o seu amigo que não podia ser seu amigo vivia sempre vestido de pijama às riscas, Bruno começou a ficar inquieto e receoso que o pai apressasse a sua ida bem como a da irmã e da mãe para a casa de Berlim que tinha cinco andares com salas luxuosas e baixelas e vidros biselados mais outras coisas bonitas como corrimões brilhando por onde o rapaz às vezes escorregava a fingir que era mais rápido do que aquele comboio quase vazio que um dia o levara dali e estava parado ao pé do outro que partindo na mesma direcção ia cheio de gente suja e toda ela vestida/despida de pijama ás riscas.
Então, decidiu para si próprio pedir ao amigo um pijama às riscas emprestado para passar despercebido no meio
de tantos homens vestidos de pijama às riscas, o que veio mesmo a propósito pois Shmuel tinha-lhe dito a chorar que era preciso que fossem ambos procurar o pai que desaparecera há dois dias sem se saber para onde. E, sozinho não o conseguia encontrar.
A seguir à merenda de Bruno e, ultrapassada a brecha imprevidente na vedação, os dois meninos seguiram de mãos dadas vestidos ambos de pijama às riscas através do campo cinzento à procura do pai de um deles que desaparecera sem ninguém saber para onde.
Uma sirene soou. De todos os lados surgiram pessoas que se juntaram em filas empurradas por soldados enquanto os dois rapazes se sentiam esmagados no meio da avalanche ondulando e ajustando, ondulando e ajustando. Ao chegarem a uma porta,
entraram. A porta fechou-se. Ouviu-se um grito que parecia único. Os dois rapazes, de mãos dadas sabendo sem saber razões sem razões…deixaram-se adormecer.
Dra. Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com
05/09/2011