Há poucos dias, recebi duma amiga uma carta bastante irada a respeito da intenção do Governo de
pagar incentivos aos médicos que queiram deslocar-se para o interior do País. Não que fosse contra o pagamento de incentivos “tout court”, dizia ela, mas pelo que isso representava em termos de privilégios que sempre são conferidos à classe médica em detrimento doutras classes profissionais. Citava-me, depois, o caso dos professores, que são colocados onde o Ministério bem entende sem receberem qualquer tipo de compensação por isso.
Pessoalmente, não tenho particular simpatia pelo regime de incentivos. No entanto, respondi-lhe, lembrando-a de que tal se deve meramente a uma questão de oferta e de procura: se há poucos médicos (admitamos que sim, apesar de, contrariamente ao que é propalado aos quatro ventos, não ser verdade), se um não quiser ir para o interior, os doentes de lá ficam, pura e simplesmente, sem médico. Havendo procura e reduzida oferta, o preço sobe – sendo esta uma verdade lapalisseana que muita gente parece não querer perceber.
Já no caso dos professores, se um não quiser ser colocado pelo Ministério na Cochinchina, há 5521 (ou talvez trinta e cinco mil; as opiniões divergem) que querem. Invertendo a verdade de há pouco, se a oferta é muita, o preço desce – ou, neste caso, os incentivos acabam.
O meu argumento ficou por aqui, mas não o meu pensamento. Depois da carta electróncia enviada, continuei a meditar no assunto, para tentar perceber por que raio temos tantos professores no desemprego em Portugal e cheguei à conclusão de que o que falta é planeamento, que até nem é difícil.
Peguemos no exemplo mais simples, o dos professores primários e num ano ao acaso, mas que, como se verá, não foi escolhido à sorte.
Em 2016, o número de crianças a frequentar a escola primária é dado pela seguinte fórmula, muito simples, como se vê:
Crianças a frequentar a escola primária em 2016 = Número de crianças no primeiro ano + Número de crianças no segundo ano + Número de crianças no terceiro ano + Número de crianças no quarto ano
Sabemos quantas crianças nascem a cada ano e quantas morrem até aos cinco anos; sabemos também quantas crianças com menos de cinco anos emigram e imigram com os pais. Nem é preciso muito trabalho; são dados públicos que podem ser consultados no portal do I.N.E..Logo, sabemos que, daqui a cinco anos, vão entrar na escola primária aproximadamente:
Número de crianças no primeiro ano em 2016 = Número de crianças nascidas em 2010 – 5 x Mortalidade até aos cinco anos – Número de crianças emigrantes + Número de crianças imigrantes
Da mesma forma, o número de crianças a frequentar o segundo ano em 2016 é obtido a partir da fórmula anterior (versão de 2015), a que se acrescentam os parâmetros que desejarmos considerar:
Número de crianças no segundo ano em 2016 = Número de crianças no primeiro ano em 2015 – Mortalidade para a faixa etária dos 6-10 anos – Número de crianças emigrantes + Número de crianças imigrantes – Taxa de reprovação no primeiro ano + Taxa de reprovação no segundo ano
Aplicando a mesma fórmula, obviamente adaptada, facilmente se calcula quantos alunos estarão no terceiro e quartos anos e, assim, se volta à fórmula inicial, soma-se tudo e estima-se, com relativa precisão, quantos alunos vão estar no primeiro ciclo em 2016.
Por definição, o ensino é obrigatório até bem depois do quarto ano de escolaridade, pelo que podemos assumir (ou talvez não) que todos os que entram saem ao fim de, pelo menos, quatro anos. No entanto, se quisermos ser primorosos, podemos ainda incluir o abandono escolar no primeiro ciclo e teremos uma estimativa muito aproximada do que se irá passar em 2016.
Feita a primeira parte das contas, sabemos também quantos alunos há por turma. Portanto, como cada turma precisa dum professor a tempo inteiro, facilmente calculamos quantos professores são precisos para ensinar o número de turmas resultante duma simples divisão do número de alunos esperados em 2016 por 24 (mais uma vez, podemos aprimorar a coisa levando em conta as turmas com alunos de anos diferentes, os alunos com necessidades especiais, etc.).
Número de professores primários necessários em 2016 = Número de turmas do ensino primário em 2016 = Crianças a frequentar a escola primária em 2016 / Número de alunos por turma
Está assim determinada a procura.
Vamos então calcular as necessidades de oferta. Sabemos quantos professores há actualmente , quantos se reformarão até 2016 e quantos sairão da faculdade até lá. Dado que dificilmente podemos mexer nestes valores, o factor que podemos alterar para fazer corresponder a oferta à procura é a admissão de alunos à Universidade. Dado que cabe ao Ministério da Ciência e Ensino Superior homologar todas as licenciaturas em Portugal, fica claro que essa homologação, para que a coisa funcione e não acabem licenciados em caixas de supermercado, tem de limitar as admissões em função das reais necessidades do mercado de trabalho, já que este parece ser incapaz de, através da sua “mão invisível”, o fazer. Portanto, voltando às fórmulas:
Número de professores em 2016 = Número de professores em 2010 – Saídas entre 2010 e 2015 (mortalidade, reforma, mudança de profissão, etc.) + Entradas entre 2010 e 2015 (sobretudo novos licenciados)
Para fazer corresponder o resultado desta fórmula ao valor obtido na anterior, como se disse, é necessário modificar a parcela “Entradas entre 2010 e 2015”. Esta é dada por:
Entradas entre 2010 e 2015 = Novos licenciados em 2010 + Novos licenciados em 2011 + …
Como saberemos então quantos licenciados haverá em 2010? Fácil:
Novos licenciados em 2010 = Alunos do último ano dos cursos de licenciatura em Educação Básica (ou equivalente) – Taxa de reprovação nos ditos cursos
Os novos licenciados nos anos seguintes são dados pela mesma fórmula, mas levando em conta as nuances em termos de abandonos, reingressos, reprovações, etc. O que é importante é que o número de licenciados num dado ano depende, em última instância, do número de caloiros cinco anos antes. Logo, se queremos ajustar o número de professores em 2016 às necessidades do País, temos de decidir quantos alunos vamos admitir hoje nas faculdades.
O processo não fica completo imediatamente, como está bom de ver. Será necessário repetir este tipo de estudos durante vários anos e esperar que, progressivamente, a oferta se vá ajustando à procura.
Para os restantes níveis de ensino, a coisa complica ligeiramente, dado que há mais do que um professor para cada turma, mas não são contas do outro mundo. Pelo menos, é mais fácil do que fazer o mesmo tipo de planeamento para a profissão médica.