“Dizer que somos a primeira geração de mulheres a trabalhar é uma grande treta”

“Dizer que somos a primeira geração de mulheres a trabalhar é uma grande treta”

Chama-se Uma História das Mulheres em 101 Objetos e acaba de chegar a Portugal pela editora Planeta. É fruto de um trabalho de dois anos levado a cabo pela jornalista franco-alemã Annebelle Hirsch, habituada a escrever sobre temas relacionados com as mulheres. Com uma organização cronológica, que arranca com um texto sobre um osso de fémur sarado, data de 30 000 anos a.C., e termina numa madeixa de cabelo, pretexto para falar do cabelo feminino ao longo da história, pretende ser uma viagem sobre a vida mais íntima e doméstica das mulheres, que a partir das suas rotinas e pequenas (grandes!) ações, fizeram andar o mundo. A PRIMA entrevistou a autora, e transcreve esta conversa no digital. Mas leva também ao papel um texto sobre este livro e uma seleção de peças escolhidas para ilustrar o trabalho. Para ler n’A Nossa PRIMA Nº23, que chegará às bancas no início da próxima semana.  

Como nasceu a ideia deste livro? 
Mais do que a ideia, foi uma espécie de processo. No meu trabalho enquanto jornalista, faço muitas entrevistas a mulheres. Quando vivia em Paris [agora mora em Roma], sobretudo, escrevia quase só sobre mulheres. O meu marido diz sempre que eu só leio livros de mulheres – o que não é verdade, mas também é verdade [risos]. Sempre foi um tema que me interessou muito. E nos últimos anos apareceram aqueles livros todos do género ‘As 100 mulheres mais fixes da história’, ou ‘As 100 mulheres mais poderosas’, este tipo de coisas. O que é bom, mas fico sempre com a sensação de que há algo falso, ou que falta alguma coisa. Por isso, pensei que talvez fosse bom escrever a história das mulheres a partur de outro ponto de vista. Sendo que não sou uma académica, nem sequer estou a tentar sê-lo.

E como chegou aos objetos?

Falei, então, com o meu editor e tivemos esta ideia dos objetos. Como explico um pouco na introdução, os objetos são uma porta para o espaço íntimo das mulheres. E, de certa forma, fazem-nos sentir – pelo menos a mim – muito próxima dessas mulheres. Podem ser muito particulares, muito íntimos, mas também podem dizer muito sobre o tempo em que foram usados, ou em que foram inventados ou em que tinham um significado. Por isso, gosto muito deste vai e vem entre algo muito pequeno, muito privado, e a grande História. E sinto que há formas muito boas de tornar a História viva. 

Porque a partir destes pequenos objetos ficamos a conhecer muitas histórias que aconteceram no mundo. São o mote para falar de teorias maiores. É uma espécie de fórmula?  
Sim. E isso também tem a ver com a ideia base do livro. Ou seja, ao que damos valor hoje, ou pela forma como o mundo está construído hoje em dia, pensamos que o mais importante de tudo é ser grande, ser poderoso, ter sucesso. E é, obviamente. Mas também há coisas mais aborrecidas que são tão importantes, se não mais importantes. Porque o que nos faz é o que fazemos todos os dias e não uma única coisa especial que fazemos uma vez. É por isso que esquecemos as mulheres na História, porque fizeram coisas que não foram feitas uma vez num determinado momento, mas que foram feitas todos os dias. E gosto que os objetos falem realmente disso.  

Gostei muito do primeiro texto, de um osso de fémur sarado, com data de 30 mil anos a.C.. A ideia de que o facto de as mulheres terem tomado conta de homens, crianças, famílias, permitiu que o mundo continuasse a andar. Foram essas particularidades que escolheu falar?   
É porque foi isso que nos tornou fortes. E minha esperança é um bocado essa: não dizer que ser bem sucedido, poderoso e barulhento não é importante, mas apenas frisar que talvez possamos suavizar a nossa forma muito rígida de ver e de agir nos assuntos relacionados com as mulheres. Por vezes são as coisas mais ruidosas que têm significado, outras vezes são as coisas que ignoramos completamente. Por isso, de certa forma, a ideia era ter algo mais dinâmico do que aquilo que tendemos a pensar. Além disso, em relação à história das mulheres, penso que temos uma ideia errada, e muitas vezes contamos a história dessa forma, a de que passámos da submissão total para a liberdade total, certo? E isso é totalmente falso. Por exemplo, quando fiz a minha investigação, fiquei muito surpreendida por saber que na Idade Média as mulheres tinham algum poder, estavam muito presentes no espaço público, trabalhavam muito. Dizer que somos a primeira geração de mulheres a trabalhar é uma grande treta. 

Sim, a Annebelle escreveu: as mulheres trabalhavam em lojas, eram padeiras, faziam parte da sociedade.  
A minha esperança era mesmo contar algo que mostrasse que as coisas são mais complexas do que se pensa. Que estão a mudar, mas sempre tiveram a avançar e a recuar e que assim continuam. E que a vida é como uma luta constante para, de certa forma, encontrar o equilíbrio.   

Com estes pequenos objetos, fala de mulheres importantes, que já foram referidas nos outros grandes livros, mas o que faz é trazê-las para a ribalta de outra forma. Por exemplo, com o chocolate de rádio, conta-se a história de Marie Curie. Não o faz em todos os objetos, mas em alguns deles. Foi de propósito?  
Sim, totalmente. E é isso que, de certa forma, é tão fixe nos objetos. Quando olhamos para eles, não pensamos que há ali uma história tão grande. O chocolate de rádio é muito engraçado. Na verdade, eu tinha outro objeto para a Madame Curie, que já escrevi, que era o caderno, um livro do começo das suas pesquisas, quando encontrou o rádio. E está na BnF – Bibliotèque François-Mitterrand, em Paris. E eu gosto muito. É um caderno castanho muito feio, mas dele vieram coisas muito boas, e muito más. Mas o chocolate de rádio é divertido. É muito divertido contar como as pessoas eram loucas e usavam rádio e tudo, como essa moda se tornou totalmente frenética. Para mim é bom poder contar uma grande história a partir de uma coisa pequena. Acho que escrevi dessa forma porque a minha mente também funciona assim: lembro-me sempre de coisas curiosas, dos pequenos detalhes, e não me lembro das grandes.  

É o que acontece quando se entrevistam muitas pessoas. Às vezes o foco fica nos pequenos detalhes e depois lembramo-nos dele para contar o panorama geral.   
É isso. Recentemente, fiz uma visita guiada em Roma e o guia estava a contar a grande história, que era interessante, mas depois tornou-se super-interessante quando começou a contar pormenores da vida de então, o que as pessoas comiam, o que diziam umas às outras, os gestos. E é isso que dá vida às histórias. As outras coisas são muito interessantes, mas estas são, a meu ver, mais ainda 

Como foi o processo de investigação?  
Comecei durante a pandemia, o que foi bom. Comecei por ler toda a história, depois fui para épocas específicas que achei mais interessantes, porque já queria que tivesse essa organização cronológica. Para que tivéssemos a sensação de ver essas ondas, de idas e vindas, de avanços e retrocessos no papel da mulher na sociedade. E depois tinha alguns temas de que queria falar, como a sexualidade, o espaço público, a escrita, a relação com o poder. Como disse, tinha algumas mulheres de quem queria falar. Como por exemplo a argentina Victoria Ocampo [escritora, editora e fundadora da revista SUR], que se calhar é absurdo que esteja ali. Mas gostei muito da história dela e quis incluí-la.  

O livro chegou a Portugal pela Planeta

Ou a Simone de Beauvoir. Algumas delas são muito importantes e mediáticas.   
O livro continua a ser muito subjetivo – na verdade, é sobre o que me interessa a mim. Há algumas coisas, como o biquíni, que pus lá porque senti que tinha de o fazer, mas não me interessa nada o biquíni [risos]. Mas a maior parte são coisas com que me identifico e, por isso, pesquisei-as. Tentei ter uma imagem do que queria contar e da respetiva evolução. Por exemplo, na Idade Média queria falar sobre o amour courtois [amor cortês], por isso, procurei um objeto que o representasse de uma forma boa. Às vezes tinha os temas antes de ter os objetos. Mas não foi sempre assim. Porque depois, como sempre, quando se começa a procurar, de repente aparecem tantas coisas. Aconteceu com a agulha do chapéu [um alfinete para prender chapéus que servia como arma de defesa no princípio do século XX]. Não fazia ideia desta história e gostei muito dela, porque fala do espaço público. Acho que o espaço público e os movimentos dentro dele são muito importantes para as mulheres. Portanto, tinha a minha lista, e escrevi o livro mesmo como está apresentado, do princípio para o fim, mas já tinha em mente aquilo que queria dizer. 

E como é que se decidiu pela fórmula dos textos, que têm todos a mesma dimensão? 
Foi assim que comecei a escrever o primeiro, que é mais ou menos o tamanho dos artigos que estou habituada a escrever. E achei que era uma boa fórmula. No início, o meu editor pensou que eu ia escrever uma página para cada um, mas numa página não se pode dizer nada. Tento, nas histórias, não falar apenas destes objetos, mas abrir-me a outras coisas e acho que é uma boa fórmula. São cerca de sete mil caracteres. Nestes textos, sinto que consigo contar algo sólido. Não é demasiado, é mais como um aperitivo, mas ainda assim conto alguma coisa.  

A Annebelle é metade francesa, metade alemã. As mulheres francesas são sempre muito associadas ao feminismo. Cresceu com essa tradição?  
Cresci na Alemanha, mas a minha mãe é francesa e andei numa escola francesa, por isso, digamos, a minha cultura é mais francesa do que alemã. Sim, cresci com a Simone de Beauvoir, a Margarite Duras, e todas essas mulheres, que são muito impactantes. A minha avó não era feminista, e a minha mãe também não era feminista, mas quando cresci na Alemanha, a minha mãe trabalhava, era mãe solteira, o que era muito estranho na Baviera nos anos 80 ou 90, por isso acho que sim, havia uma espécie de visão feminista. Mas na minha vida comum, mais do que teórico, era um feminismo vivido, diria eu. E depois, pelas minhas leituras, cresci muito com o feminismo francês e sinto-me muito mais francesa na minha forma de ser mulher.  

Também viveu em França?  
Estudei na Alemanha, e também em França, em Paris. Comecei por trabalhar em Berlim, depois estive durante seis anos para Paris, e agora estou em Roma. Acho que este feminismo francês que era tão aberto e interessante na altura, hoje em dia, para mim, a forma francesa de ser mulher é mais questionável. Acho que toda esta ideia de sedução, todas estas coisas, estão super-presentes em França e são quase uma obrigação. Sinto que não é assim tão fácil para as mulheres saírem disto, porque, por um lado, acreditamos que esta é a nossa liberdade e vamos atrás do que queremos, e depois talvez não… é uma questão complexa. Na Alemanha é muito diferente, é um feminismo muito mais seco, penso, é mais reivindicativo. Não me identifico de todo com o alemão, identifico-me muito mais com o francês, mas questiono-o.  

É o seu primeiro livro? 
Sim.   

Mas parece ter material para outro. Quer continuar?  
Não, muitas pessoas disseram-me que devia, mas acho que não. Fiz um livro a seguir a este, sobre o prato. É muito pequeno, veio para falar da relação das mulheres com a comida, e porque é que é tão complicada. Portanto, é como um pequeno livro sobre um objeto.   

Relacionado com os hábitos alimentares?  
A ideia era nasceu do livro Um Quarto Só Seu, da Virginia Woolf. No início, ela vai a uma universidade masculina e almoça lá, e eles têm muita coisa para comer, é um banquete, têm vinho, tudo; e depois ela vai jantar a uma universidade de mulheres e elas não têm nada, só pão e uma sopa horrível; e então ela pergunta-se, de certa forma, se a forma como se alimenta alguém, os os pratos que lhe queremos dar, refletem a nossa posição no mundo. E eu estou sempre a pensar, e vou fazer um livro maior sobre isto, que é estranho, e talvez seja diferente aqui, mas a maioria das mulheres que conheço tem uma relação muito estranha com a comida. Ou tentam conter-se, ou comem demasiado ou comem muito pouco. Nunca é normal. Não acho que isto se deva aos padrões de beleza. Por isso, pergunto-me, como é este apetite e como é o apetite que nos permitimos ter pelo amor, pela vida, pelo sexo e por tudo.  

Já está traduzido para inglês? 
Ainda não.  

Voltando aos 101 objetos, estando organizado de forma cronológica, é curioso haver um salto temporal grande entre os primeiros anos d.C. e o Renascimento. Há pouquíssimos objetos dessa fase. Porquê?  
Na verdade, eu gostaria de ter mais, mas o meu editor achou que não era boa ideia. Há coisas super-interessantes que se podem contar, mas ele achou que era melhor pôr mais coisas do século XX… Não sei se foi o mais correto. Porque quando falam comigo do livro, a maior parte das pessoas referem sempre as coisas mais antigas. Por isso, havia mais coisas específicas que poderiam ter sido contadas, mas eles pensaram que as coisas antigas não interessavam às pessoas, por isso deixámo-las de fora.   

Então isso significa que houve muitas coisas que ficaram de fora? 
Eu tinha muito mais coisas, talvez devesse fazer algo sobre isso. Mas não sei se quero continuar. É um formato muito bom, mas talvez pudesse fazer uma versão alargada, de certa forma, fazer mais desses anos que ficaram de fora. Porque quando estava mesmo a começar, apercebi-me de que havia tantas histórias que queria contar, que tentei convencer o meu editor a fazer 150. Mas ele não quis. Tentei ter um equilíbrio entre os séculos, mas sim, o século XIX é muito mais presente, obviamente, e também porque, quer dizer, de certa forma acho que podia ter deixado coisas de fora no século XX, mas no século XIX há tantas coisas que queria dizer dizer, e que são super-importantes. E na Antiguidade, há mais coisas que não são tão importantes, são curiosas, são divertidas de contar, divertidas de ler, mas não são assim tão importantes.  

E na verdade não nos definem tanto como estes objetos.  
O que é super-interessante, é a pré-história. Hoje em dia há tantas pesquisas que são feitas sobre essa época, tantas coisas que se descobrem e provam que estávamos totalmente errados.   

Tem alguma favorita? Ou que a tenha surpreendido?   
Acho o autorretrato Beleza Revelada [de Sarah Goodridge, com os seios nus] divertido. Mas o Grupo de Figuras de Porcelana “A Boa Mãe” [obra de 1760, de uma mãe rodeada de crianças], surpreendeu-me. Não porque o ache bonito, mas porque acho curioso que nesta altura, no final do século XVIII, os homens tenham inventado a ideia da mãe que é super carinhosa, e que não tem outros interesses que não sejam os seus bebés. Produziu-se uma peça que podia estar em muitas casas, obviamente, porque se encontram muito nas lojas de antiguidades da Alemanha. Portanto, a mulher tem um ar muito calmo, com aqueles miúdos todos, porque normalmente uma pessoa com aqueles miúdos todos estaria a endoidecer. É quase um poder sugestivo: ter algo que diga, todos os dias ‘lembra-te que isto é que é ser uma boa mãe’, E depois o achado mais tocante para mim chama-se O Saco de Ashley e conta a história da escravatura, das famílias que foram separadas. É uma parte muito dramática da História. Achei muito comovente que uma mãe tenha dado à filha este pequeno saco, de certa forma não é nada, mas é tudo. Esta mulher sabia que a sua filha ia ser vendida e sabia que nunca mais a ia ver, e então teve a força e a coragem, e o amor, para lhe dar algo que a ajudasse a sobreviver. É muito humano.   

E de certa maneira é parecido com as migrações que estão a acontecer na Europa e no mundo.   
Sim. Agora nesta fase não se trata de escravatura, mas é uma história muito humana de perda e também de força nessa perda. Não cair no desespero, mas ajudar o outro a, talvez, sobreviver.  

E porquê a decisão de se focar apenas no Ocidente?   
O livro é sobretudo europeu. Há um objeto da Ásia, porque no início, quando comecei, pensei que ia fazer o mundo todo, mas enquanto estava a pesquisar e quando comecei a ter uma ideia de como queria contar esta história, apercebi-me que é muito subjetivo, é muito o meu ponto de vista. A forma como tento contar as históricas é um pouco pessoal, por isso, senti que se vou contar sobre as mulheres em África, e até mesmo sobre as mulheres em Portugal, teria de pensar e estudar muito. Por isso falei de coisas que conheço, com as quais me consigo identificar, em que me sinto realmente… obviamente não consigo identificar-me com a escravatura, mas mesmo assim há algo muito humano com que me consigo identificar. E o Oriente teria coisas bem interessantes, mas demoraria 10 anos a fazê-lo ou seria um cliché. Mas espero que alguém o faça. Alguém que sinta isso como algo pessoal.  

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