Há cinco anos, Paula Cordeiro criou o projeto editorial online Urbanista. Um blogue que deu origem a um programa de rádio e mais tarde e um podcast. Pelo caminho, vestiu o papel de influencer no Instagram, entrou no mundo da permanente validação dos likes e percebeu como a rede social pode interferir na construção do amor-próprio. Acaba de publicar o seu terceiro livro, Vida Instagramável, um relato pessoal sobre esta mudança de vida e o impacto que a constante necessidade de atenção dos outros pode ter nas nossas vidas.
Abrimos o apetite para o livro, publicado pela editora Arena (208pp, €14.40), com a publicação de um dos capítulos.
Criar o Urbanista não foi uma epifania do estilo «vou mudar de vida, pegar num saco, levar o essencial e viver em Bali», mas anda lá perto. Tenho orgulho no muito que conquistei ou no que consegui atingir, especialmente porque tal nunca fez parte dos meus planos. Sempre quis rádio, escrever e dançar. Gradualmente, afastei-me de tudo o que me fazia feliz em nome de algo que não sei definir. Neste processo, identifiquei o que me estava a incomodar para perceber a dimensão da pedra no sapato e, assim, retirá-la.
O mundo diz-nos que temos de ser os melhores e ter as melhores coisas. E ser melhor é ter mais do que os outros. É mentira e, por essa mentira, vivemos em função de um ideal cuja origem desconhecemos, sem pensarmos se corresponde ao que sonhámos para nós, procurando padrões que podem não ser os nossos, que se colam a nós para termos uma vida igual à de todos os outros, como se a diferença fosse escandalosamente… diferente.
Se pensarmos na vida como um filme, há vidas tão estranhas quanto Lindquist afirma e outras tão banais que não ficam para a história. São vidas sem autoconsciência das emoções, sem a honestidade que nos permite viver a experiência, aquela que se estabelece entre a realidade e a outra, a dos outros, que nos é sempre diferente. Em filosofia, a ideia de realidade organiza-se em torno de um mundo verdadeiro em contradição com o mundo aparente. Na verdade, é nesse mundo de aparências que muitas vezes vivemos. As aparências são mais profundas do que a mera tentativa de possuir mais do que realmente podemos comprar.
O mundo de aparências é mais subtil, em contraponto face à vida que poderíamos viver. O mundo criou uma cultura de ilusão da qual raramente conseguimos sair. As mentiras vão-se acumulando numa lavagem cerebral que nos leva à universidade, seguros de que esse é o caminho, ao que se seguirá um emprego, uma casa, família e uma vida estável, com uma dívida ao banco, associada a símbolos de status que incluem o carro e as férias em destinos exóticos, colégios e actividades requintadas para os filhos que entretanto nasceram. Além disto, recai sobre nós, mulheres, a pressão da beleza, o peso da economia familiar e a carga mental que lhes está associada. A grande mentira da nossa geração foi dizerem-nos que era possível, que poderíamos ter tudo e ser o que quiséssemos, num contexto de multiplicação das oportunidades que aumentou, também, as expectativas e a culpabilização por não fazermos tudo tão bem como as nossas mães — que ficaram em casa para nos educarem — ou as outras mães, com quem nos cruzamos e que, parece, têm tudo sob controlo. Criamos cenários perfeitos, esquecendo que, como cronista, a Carrie Bradshaw nunca poderia comprar aqueles sapatos ou que as donas de casa estavam tão desesperadas como nós. Neste cenário, o detalhe aproximado à vida do quotidiano torna-nos protagonistas de uma história a que comodamente vamos assistindo, sem dela realmente participar: da publicidade bonita na TV às vidas que acompanhamos no Instagram, tudo serve para nos fazer sentir que estamos a falhar. Não estamos. Talvez por isso sejamos tantos a chegar aos 30 e muitos presos entre o trabalho, a casa e a família, seguindo o padrão dos nossos pais, mas mais modernos e sofisticados. Depois, repetimos a ideia aos nossos filhos, perpetuando tradições. Contudo, ser artista pode ser uma profissão.
Quando percebi que existe uma grande mentira no mundo, decidi parar e pensar.
Foi então que li sobre o encontro com nós próprios e sobre a forma de nos compreendermos. A mudança começou a acontecer. Os livros, as lives, os webinars, os coaches, os filmes… tudo nos diz que podemos estalar os dedos e mudar de vida, mas ninguém nos diz que podemos, apenas, mudar a forma como vivemos a nossa vida. Nem sempre está tudo errado, embora pensemos que sim. Eu pensava que sim, que estava tudo errado. Era mentira. Nessa altura questionei-me. Queria saber quem era como se a pessoa que sou tivesse sido, de alguma forma, esquecida.
Outra pequena mentira que descobri é que se esquecem de nos dizer que, por mais que queiramos, não se apagam os anos que já vivemos e que temos muito a aprender com o nosso percurso. Se há muitos casos conhecidos que vão do financeiro que vibra na cozinha ao gestor que se torna professor de ioga, também há, certamente, o mesmo número de exemplos de quem, como eu, só precisava de se recentrar para recuperar a pessoa que sempre foi e que, algures no tempo, se perdeu.
Tecnicamente, a mudança é entendida como um processo: começa no interior de nós e manifesta-se nas mais pequenas coisas, concretizando-se através de tantas outras, até ser perceptível por todos os que fazem parte da nossa vida. Este não é um livro de auto-ajuda, nem eu sou coach. No entanto, o que fiz foi muito simples e estratégico, pelo que, se a minha experiência vos servir de alguma coisa, oiçam-me.
Era Agosto, estavam mais de trinta graus à sombra, e eu estava sentada, com os pés na água, como quem hesita em mergulhar na água fria. O sol das seis da tarde cegava- -me o olhar, escondido atrás de uns óculos com lentes muito escuras, que também me escondiam do mundo. Nesse dia aconteceu algo mágico: depois de tantos livros e de tanta busca de informação séria, foi nas páginas de uma revista que encontrei a resposta que procurava.
É quase sempre assim: quando baixamos a guarda e deixamos de procurar, o que procuramos encontra-nos. Dizia, de forma muito simples, para nunca perdermos de vista o que nos fazia felizes na infância e que, para sermos felizes na idade adulta, deveríamos ser capazes de continuar a fazer o que, nessa idade da inocência, nos deixava de sorriso no rosto. Era tão óbvio, mas nunca ninguém mo tinha dito. Fala-se muito no propósito, no que nos faz felizes, mas, quando estamos perdidos, não conseguimos saber o que nos provoca essa sensação única de sorrir sem pensar que nos deixa imersos a ponto de nos esquecermos de comer.
Passei dias a pensar naquilo e na ideia de que temos todas as respostas dentro de nós. Porque temos, basta sermos capazes de nos ouvir, por entre o ruído incessante em que se transformaram as nossas vidas.
Tornei-me mais introspectiva, como sempre fui. Escondia-me atrás de um livro, fingia que lia para poder pensar. Quando vivemos uma relação, com filhos pequenos e uma família, o tempo de vigilância na praia, no jardim ou mesmo em casa tem de ser dividido para que ambos possam respirar. A minha táctica, no meu tempo de pausa, na praia, era esta: «ler» para pensar, caminhar à beira-mar, sozinha, para interiorizar, cozinhar com auscultadores e ouvir as minhas músicas preferidas para reflectir e escrever, sempre que possível, para registar.
Comecei por fazer listas das coisas de que gostava e daquelas de que não gostava, dos sonhos e dos pesadelos, daquilo de que poderia abdicar e do que seria indispensável. Levei as listas ao limite do possível, fazendo contas, numa perspectiva financeira da vida, para perceber que o caminho não seria esse. Foi quando regressei à infância que comecei a desbloquear e a listar as minhas grandes paixões.
As paixões? No coaching e na auto-ajuda, o discurso é quase sempre o mesmo e mais ou menos igual: temos de acreditar — principalmente em nós — num momento da vida em que tudo o que mais queremos é que alguém acredite em nós. Na maior parte dos casos, mais do que a vontade de mudar, é a culpa da ingratidão por não valorizarmos a vida maravilhosa que temos que nos consome. Começavam assim os livros que li, para terminarem num crescendo epifânico de quem, finalmente, descobre que, afinal, tudo é possível. Se acreditarmos.
A cada livro que lia, acreditava menos em mim, e menos ainda no potencial de simplesmente acreditar, percebendo, por outro lado, o potencial de uma história bem contada. Mais ou menos pessoais, com mais ou menos exemplos, é de histórias que estes livros nos falam, e, talvez por isso, também eu decidi contar histórias, não sem antes fazer o caminho das pedras, ou seja, mudar. Não acreditem se vos disserem que podem saltar este passo. Sem ele, continuamos num ciclo infinito de desvalorização pessoal.
Estes livros também falam muito dos nossos medos ou crenças limitadoras. Era óbvio que tinha — tenho — medo de não ter dinheiro para pagar as contas. Quem nunca teve? Era muito óbvio que tinha construído uma vida confortavelmente estável e que o que me incomodava não era suficiente para largar tudo. Perante a tal pergunta sobre onde me veria dali a 10 anos, a ideia de manter tudo igual deixava-me louca, mas também não me imaginava a fazer algo radicalmente diferente, pelo que, de acordo com os gurus da matéria, estava naquele preciso momento em que já sabemos que temos de mudar, só não sabemos como. Muitos exercícios depois — e desta vez não fiz batota, como nos testes psicotécnicos do secundário —, percebi que, afinal, sabia menos sobre mim própria do que pensava, não confiava na minha intuição e dependia da aceitação e validação dos outros, aspectos que acabaram por definir a minha vida: em vez de procurar oportunidades, ia aceitando, sem critério, o que a vida me oferecia, sem usar a palavra não.
Foi quando descobri o estado de fluxo — um conceito da psicologia que se refere aos momentos em que nos deixamos absorver completamente por aquilo que estamos a fazer — que as peças começaram, devagar, a fazer sentido. Afinal, era assim que muitas pessoas transformavam os seus hobbies numa profissão. Novo dilema! Será que, afinal, poderia pegar numa das minhas paixões e fazer disso a minha fonte de rendimento? Quando passei à lista das actividades que me deixavam assim, absorvida, percebi que estava perante um problema ainda maior porque seria muito difícil juntar isso ao meu dia-a-dia sem mudar de profissão. Não queria abandonar a minha profissão.
Voltei às listas, para registar aquilo de que gostava e que me dava prazer, os talentos que reconhecia em mim e o que gostaria de transmitir aos outros porque, afinal, que sentido há numa vida em que não vivemos os conselhos que damos aos outros?
Além do exercício à beira da piscina sobre o que me fazia feliz na infância, descobri outro muito interessante: imaginar que recebemos uma avultada herança que nos permite nunca mais trabalhar. E se acontecesse? O que faríamos, realmente? Lembrei-me do quanto gostava de escrever, mas também do muito que gosto de aprender e partilhar. Agora que releio essas descrições, percebo que consegui lá chegar. Talvez não exactamente como imaginei, mas o ciclo está a fechar-se em direcção ao último elemento da lista, o mais improvável de todos, o sonho incrível ao qual nos agarramos independentemente do julgamento dos outros. Sabem? A história do «confia» não é mentira, mas confiar apenas não chega.