A alemã Anuskha anda há dois anos a deixar mensagens poéticas em colchões abandonados. Encontra-os, trabalha-os, fotografa-os e divulga essas imagens numa conta de Instagram que vale a pena conhecer, a @dear.anuskha. O projeto é a soma de várias paixões, a fotografia, o teatro e a poesia, que se juntaram de forma quase acidental. “So this is Christmas and what have you done? War is not over and the next already begun”, ou “Break my heart and serve me a drink”, são duas das mais de duzentas frases que Anushka já pintou em colchões espalhados por todo o país. A matéria de trabalho fica no local, mas as fotografias são colecionadas e já deram origem a uma primeira exposição a solo, Chaos, stains, and stupid feelings, a mattress collection of longing for lovers & losers, inaugurada a 13 de janeiro na galeria Little Chelsea, em Lisboa, e que está patente até dia 10 de março. Um mês depois, integrou uma nova exposição coletiva na galeria Plato, em Évora, para onde levou um colchão pintado com uma lata de tinta.
Anushka, de 41 anos, é natural da Alemanha e mora em Portugal há seis anos. Viveu cinco anos entre a Zambujeira do Mar e São Luís – “podia ouvir o oceano da minha cama” – e há cerca de um, elegeu Lisboa para ficar. Ainda antes da sua chegada a Portugal, frequentou a escola de representação, depois estudou Arte e Música com ênfase na Fotografia e no Canto, assim como Literatura Alemã e tanto antes, como durante os estudos, trabalhou como jornalista. Quando acabou de estudar, decidiu mudar de rumo e seguir teatro. Na verdade, “eu queria ser atriz, mas não me tornei atriz”, trabalhando antes como assistente de diretora de palco no Deutsches Theater, em Berlim, até a vida a trazer rumo a Portugal.
Atualmente, é mãe, gere contas nas redes sociais, pontualmente faz traduções e escreve poemas, sobretudo na língua com que se sente mais confortável, o alemão. “No meu coração, sou poeta.” Acredita que os poemas não devem ser traduzidos, pois assim, diz, “perdemos toda a beleza das palavras”. E foi neste contexto que, de forma não intencional, desenvolveu um projeto artístico feito em colchões.
Tudo começou com um colchão abandonado por uns amigos e uma lata de tinta. Viviam-se tempos de pandemia, os amigos estavam no Alentejo e o colchão encontrava-se “encostado à parede”, relembra. “Eu vi-o e era um dia estanho, cinzento, frio e senti que lhe gostaria de dar uma voz, poderia simplesmente escrever qualquer coisa.” Por mero acaso ou destino, os seus amigos também tinham uma lata de tinta e, sem saber muito bem ainda que palavras usar, escreveu algo que naquela altura lhe fez sentido. “Foi o meu primeiro colchão e desde aí que ando sempre com uma lata de tinta na mala”.
Mas afinal, porquê colchões? “Preocupa-me o mundo, o lixo e a poluição que estamos a fazer, nunca seria capaz de deixar um colchão na natureza”. Para além disto, fascina-se por certos objetos, exemplo da máquina de escrever que usa regularmente. “Nunca gostei da minha letra, por isso comecei a escrever em máquinas de escrever, não queria que a minha letra influenciasse a minha forma de pensar ou de sentir, o que foi uma liberdade”. Porém, “sou uma colecionadora” e por isso tem mais de quarenta máquinas de escrever diferentes. “Se eu gostar de um objeto, preciso de ter uma série deles, apenas um, não faz sentido”. Os colchões não foram exceção. São os pormenores nos colchões portugueses que a fascinam, “são lindíssimos, os colchões portugueses. Para mim, como objetos, são peças de arte”. Encantam-lhe as suas variadas texturas e padrões, com flores miudinhas e botões, “às vezes levemente dourados”, outras vezes rosados. No entanto, por falta de espaço não os pode levar para casa. Na sua mais recente exposição em Évora, está exibido um colchão que foi encontrado, pintado e fotografado no Templo Diana.
Sem os procurar, os colchões encontram-na e Anushka, com o material sempre à mão, pinta-os, fotografa-os e deixa-os no mesmo local, “simplesmente encontro-os e deixo-os onde os encontrei”. Aquilo que neles escreve é criação sua e “depende da situação, às vezes tenho uma coleção de palavras e frases na minha cabeça ou no meu telemóvel, outras vezes encontro os colchões num contexto muito particular ou ainda pode depender totalmente do colchão em si”. Esta é a técnica sem técnica da Anushka, ela não pretende alterar o natural, mas sim moldar-se àquilo que o natural e o inevitável proporcionam. A primeira e única vez em que Anushka moveu de forma propositada um colchão de sítio, foi por ter encontrado o colchão perto da praia e ter pensado “consigo fazer uma fotografia melhor”. Então, “coloquei o colchão esborrachado dentro do carro, conduzi até à praia e encontrei uma rapariga que passava no parque de estacionamento e pedi-lhe que se pusesse atrás do colchão e o segurasse para poder tirar uma fotografia”.
“Para mim é como se fosse um momento íntimo, quando os vejo na rua, nus, expostos, têm historias, têm tanto para contar, gosto de lhes dar uma voz que eles possam de facto ter”. E Anushka sempre acompanhada pelo seu cão Cheesy e pela sua mala com latas de tinta, escolhe sempre percorrer a cidade de Lisboa a pé na esperança de ser surpreendida por aquilo que não procura, mas que acaba por encontrar.
*Texto de Mia Shore