Apesar das grandes incertezas no mercado automóvel mundial, a Agência Internacional de Energia admite que as vendas de veículos eletrificados irão continuar a crescer e esta tornar-se-á a tecnologia dominante até ao final da década. Esta organização diz, no seu relatório mais recente, que a comercialização deste tipo de veículos continua a crescer, podendo representar um em cada quatro automóveis novos que entrarão nas estradas do planeta no decorrer deste ano. No primeiro trimestre do ano, o crescimento dos modelos eletrificados situou-se nos 35%, quando comparado com igual período do ano anterior, o que se deve, em grande parte, ao surgimento de cada vez mais modelos a um preço acessível.
35% Crescimento das vendas de veículos elétricos nos maiores mercados mundiais durante os três primeiros meses do ano. Todos eles registaram novos recordes de vendas de carros com esta tecnologia.
40% Previsão da quota de mercado dos veículos eletrificados novos em todo o mundo em 2030, segundo o último relatório Global EV Outlook, da Agência Internacional de Energia divulgado a 14 de maio deste ano.
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70% Da produção mundial de veículos elétricos é proveniente da China, país que exportou 1,25 milhões de carros no ano passado.
10% Crescimento das vendas de veículos com motorização elétrica nos EUA nos primeiros três meses do ano.
50% Diferença média do custo de operação na Europa de um veículo elétrico carregado em casa e de um com motor a combustão, segundo o relatório Global EV Outlook.
2% Percentagem de camiões elétricos vendidos em todo o mundo no ano passado, o que corresponde a um aumento de 80% face a 2023. Segundo a Agência Internacional de Energia, este grande crescimento tem sido suportado pelo mercado chinês, onde os custos operacionais dos modelos elétricos já compensam o elevado preço de aquisição.
20 milhões Previsão da produção total de carros eletrificados em todo o mundo em 2025.
1 em cada quatro carros vendidos até ao final do ano em todo o mundo terá tecnologia elétrica, atendendo às vendas registadas no primeiro trimestre do ano.
Um dos mais lendários modelos da Renault surge agora com uma versão totalmente adaptada à nova mobilidade
Renault 4 E-Tech Desde €29 000
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Depois do êxito conseguido com o “relançamento” do novo Renault 5, a marca francesa volta a apostar num dos seus modelos mais icónicos para conquistar espaço na era da mobilidade elétrica.
Lançado no início da década de 60, o Renault 4 apresentou-se como um veículo simples, barato e com capacidade para as mais variadas funções, versatilidade que lhe permitiu conquistar adeptos um pouco por todo o mundo. Manteve-se em produção até 1992 e conseguiu vender oito milhões de unidades em mais de 100 países.
O novo R4 E-Tech surge agora como um SUV familiar compacto, uma das tipologias mais procuradas pelo mercado europeu. Embora em termos de design não seja tão fiel ao seu antecessor como acontece com o R5, existem vários elementos a fazer a ligação com o passado, como os faróis redondos – agora com tecnologia LED – ou as três faixas esculpidas na lateral da carroçaria.
O interior é espaçoso e confortável e os materiais usados no revestimento são de boa qualidade atendendo ao segmento em que o veículo se posiciona.
O painel de instrumentos e o ecrã de infoentretenimento são idênticos aos utilizados no R5, com uma boa qualidade de imagem, intuitivos e de fácil interação. Um dos grandes trunfos deste modelo está no nível de equipamento que, ao todo, incorpora 26 sistemas de apoio à condução, desde o cruise control adaptativo à assistência de manutenção em faixa.
O novo R4 E-Tech estará disponível com duas motorizações. A versão de entrada está equipada com uma bateria de 40 kWh, capaz de debitar uma potência de 120 cavalos e atingir uma autonomia de 308 quilómetros. Já a versão de 52 kWh consegue circular 409 quilómetros apenas com uma carga, e atingir uma potência de 150 cavalos.
Potência: 150 cavalos Autonomia: 408 km
A céu aberto
O Mini apresenta agora uma versão descapotável num segmento onde esta opção é cada vez mais rara
Mini Cabrio Desde €39 990
Longe vão os tempos em que os construtores de automóveis apostavam em lançar versões cabriolet de quase todos os seus modelos, independentemente do seu tamanho ou do segmento de mercado. Atualmente, o que mais se aproxima desse desígnio do passado são os modelos com capota de lona retrátil, que se assemelham mais a um veículo com teto panorâmico aberto do que a um descapotável puro e duro.
Contrariando esta tendência, a Mini está decidida a manter a sua proposta e renovou o seu cabrio, mantendo todo o espírito de condução subjacente a um modelo com estas características.
A abertura e o fecho da capota de lona são automáticos, bastando premir um único botão, e podem ser realizados em 18 segundos. Além disso, o processo de abertura e fecho pode ser feito em andamento, desde que a velocidade de circulação não ultrapasse os 30 quilómetros por hora.
A capota permite ainda fazer uma abertura de apenas 40 centímetros, funcionando como um teto de abrir, pois permite a entrada do sol para os passageiros da frente.
Está disponível apenas com motores térmicos – ainda não é desta que o cabrio entra na era da mobilidade elétrica – que vão dos 1,5 litros, de 163 cavalos, até ao 2,0 litros, de 204 cavalos. Todas as versões estão equipadas com caixa automática.
Ao volante, o Mini Cabrio é um veículo muito agradável de conduzir, mostrando-se bastante ágil, dinâmico, com uma boa resposta do motor e uma direção precisa.
Apesar das suas reduzidas dimensões, o interior apresenta uma boa habitabilidade… nos bancos dianteiros. O mesmo já não se pode dizer para quem viaje na traseira, pois o espaço é reduzido, o que nos obriga a sacrificar a posição dos bancos da frente para poder acomodar dois adultos na segunda fila.
Os materiais usados no habitáculo são de qualidade superior, começando pela pele vegan e terminando nos acabamentos em plásticos agradáveis ao toque.
O centro do veículo é dominado por um enorme ecrã circular onde podemos ter acesso a quase todas as informações e a entretenimento disponibilizado pelo veículo.
Potência: 204 cavalos
Preço de combate
O pequeno citadino tem como principal argumento a relação entre o custo e a tecnologia disponível, num segmento onde a oferta ainda é relativamente escassa
Leapmotor C03 Desde €19 600
Através do Grupo Stellantis, a Leapmotor, um dos principais fabricantes chineses de automóveis, chega a Portugal com o pequeno citadino T03. Apesar das suas reduzidas dimensões – 3,62 metros de comprimento e 1,58 de largura –, este veículo apresenta uma boa habitabilidade a bordo, o que em grande parte se deve ao seu teto elevado, que aumenta o espaço útil no interior, bem notório para quem viaja nos bancos traseiros.
A mala tem uma capacidade algo limitada, num total de 210 litros, contudo o interior disponibiliza 16 compartimentos de arrumação. Os materiais usados no revestimento não são da melhor qualidade, mas estão um pouco acima do que é normal encontrar neste tipo de veículo.
Dispõe de um ecrã tátil central de dez polegadas e de um painel de instrumentos digital de oito polegadas, ambos com boa resolução de imagem.
Neste modelo, a Leapmotor optou por abolir quase todos os botões físicos, o que obriga a que a grande maioria das interações seja feita através do ecrã, do comando de voz ou dos botões instalados no volante.
A lista de equipamentos de série é extensa e com alguns pormenores que são difíceis de encontrar num veículo deste segmento, como é o caso do comando do aquecimento dos espelhos retrovisores ou o controlo de abertura e fecho do teto panorâmico.
Além de uma série de sistemas de ajuda à condução, como a câmara de monitorização do condutor, que avalia eventuais distrações, e o cruise control com regulação automática da distância em relação ao veículo que segue na nossa frente, o Leapmotor T03 disponibiliza ainda câmara traseira de apoio ao estacionamento e ligação Bluetooth para o telemóvel. Tem ainda três modos de condução: Standard, Sport e Eco.
O Leapmotor T03 está equipado com uma bateria de 37,3 kWh capaz de debitar uma potência de 95 cavalos, que permite atingir uma autonomia de 265 quilómetros. Não é um veículo dinâmico, pois precisa de 12,7 segundos para ir dos 0 aos 100 quilómetros por hora, mas, devido às suas dimensões e prestações, mostra-se bastante ágil em circuitos urbanos. A velocidade está limitada aos 130 quilómetros por hora.
Em termos de escolha de cor, existem apenas três opções: glacier blue, starry silver e light white. Toda esta oferta está disponível por menos de 20 mil euros.
Potência: 95 cavalos Autonomia: 265 km
À medida da cidade
A Hyundai apresenta o seu novo citadino 100% elétrico, um pequeno veículo que tem grandes argumentos para conquistar o seu espaço no mercado
Hyundai Inster Desde €24 900
Entrar no Hyundai Inster dá-nos a sensação de estar na cena do último filme do Harry Potter em que o pequeno feiticeiro entra numa tenda de reduzidas dimensões e aparece no seu interior com espaço para tudo e mais alguma coisa.
Este pequeno citadino com apenas 3,83 metros de comprimento consegue albergar quatro adultos proporcionando um espaço generoso para as pernas, mesmo para quem viaja nos bancos traseiros. Além disso, devido à sua altura e ao formato das portas, conseguimos entrar no interior sem sermos obrigados a dobrar o pescoço como acontece na grande maioria dos veículos deste segmento.
Outro dos seus trunfos assenta na modularidade. Por exemplo, a capacidade da bagageira é algo limitada, não ultrapassando os 238 litros, mas pode ser estendida até aos 351 com a deslocação – através de calhas com um curso de 16 centímetros – dos bancos traseiros para uma posição mais avançada. Se os bancos traseiros forem rebatidos, então a capacidade da mala estende-se aos 1 059 litros.
Além disso, as costas dos bancos da frente podem ser colocadas totalmente na horizontal, o que permite criar um pequeno quarto para duas pessoas no seu interior.
Ao contrário do que acontece nos modelos mais pequenos e vocacionados para circuitos urbanos, a Hyundai disponibilizou para o Inster um vasto leque de equipamento de segurança e apoio à condução, nomeadamente a prevenção de colisão frontal, sistema de manutenção na faixa de rodagem, sensores e câmara de estacionamento, cruise control inteligente com função Stop and Go, alerta de atenção do condutor, aviso de arranque do veículo da frente, entre muitos outros.
Na Europa, o Inster será apenas lançado com motorização elétrica. A versão base, de 97 cavalos, conta com uma bateria de 42 kWh, o que permite alcançar uma autonomia de 327 quilómetros. Já o “long-range”, capaz de debitar 115 cavalos, está equipado com uma bateria de maior capacidade, que permite circular, apenas com uma carga, 355 quilómetros.
Potência: 97 cavalos Autonomia: 327 km
Inovar na tradição
O mítico modelo que marcou os destinos da Fiat na década de 80 regressa agora numa versão eletrificada com um preço abaixo dos 25 mil euros
Fiat Grande Panda Desde €23 550
Lançado em 1980, o Fiat Panda foi desenhado como um veículo que pretendia ir ao encontro das necessidades da mobilidade urbana, sendo uma solução acessível e eficiente para o uso diário.
Evoluiu ao longo dos anos e agora apresenta-se como um veículo adaptado à mobilidade sustentável sem perder a essência inerente à sua criação, tendo como um dos principais argumentos o preço com que chega ao mercado, abaixo da barreira psicológica dos 25 mil euros.
Com um design retrofuturista de “inspiração italiana”, a Fiat garante que este é um veículo desenvolvido para ser “funcional e surpreendente”. É marcado por linhas simples, à imagem do seu antecessor, complementado por alguns detalhes mais atuais, como os faróis LED Pixel.
Apesar das suas reduzidas dimensões, com menos de quatro metros de comprimento, 1,76 de largura e 1,57 de altura, o Grande Panda consegue oferecer uma boa habitabilidade no interior, incluindo nos bancos traseiros.
Disponibiliza um ecrã tátil de 10,25 polegadas, onde podemos aceder a toda a informação do veículo, bem como ligar o telemóvel.
Está equipado com uma bateria de 44 kWh, o que lhe permite uma autonomia de 320 quilómetros. O motor elétrico, capaz de debitar 113 cavalos, atinge uma velocidade máxima de 130 quilómetros por hora e consegue acelerar dos 0 aos 100 quilómetros por hora em 11 segundos.
Em termos de inovação, o Grande Panda oferece uma ideia simples e que poderá ser seguida por muitos dos seus concorrentes. O cabo de carregamento é retrátil e fica alojado sob o capot, o que, por um lado, torna este processo mais simples de operar – não temos de andar a desenrolar e a enrolar cabos sempre que necessitamos de carregar – e, por outro, liberta espaço na bagageira.
Além do 100% elétrico, a Fiat disponibiliza ainda o Grande Panda Hybrid, equipado com um motor turbo 1,2 litros, de três cilindros, que consegue debitar uma potência de 100 cavalos. A apoiar este propulsor térmico, existe um motor elétrico de 29 cavalos.
Esta versão chega ao mercado por 18 600 euros, menos cerca de cinco mil euros do que o elétrico. Esta diferença de valor mostra claramente que a indústria automóvel ainda não chegou à tão almejada “democratização” dos carros elétricos – quando estes atingirem a paridade de preço com os equipados com motor térmico –, mas caminha a passos largos para atingir esse objetivo.
Potência: 113 cavalos: Autonomia: 320 km
Diferente entre iguais
O quadriciclo ligeiro da Citroën surge agora com uma nova cara e irá incluir uma versão buggy para um público mais irreverente
Citroën Ami Buggy Desde €9 990
Quando, em 2023, a Citroën decidiu criar uma edição limitada de 800 exemplares de um Ami tipo buggy, estaria longe de imaginar que todos os veículos seriam vendidos em poucas horas. Em relação ao Ami comum, o buggy surgia sem portas laterais e com o tejadilho amovível. As vendas seriam feitas exclusivamente online e apenas em oito países: França, Portugal, Itália, Espanha, Bélgica, Reino Unido, Luxemburgo e Grécia. Dez horas após o início da comercialização, a série limitada estava esgotada. Em Portugal, as 50 unidades disponíveis foram vendidas em pouco mais de três horas.
Face ao êxito desta edição limitada, a marca francesa não quis desperdiçar a oportunidade e decidiu agora aproveitar a renovação do Ami para incluir uma versão buggy na gama de oferta deste pequeno veículo, que, aliás, está homologado como quadriciclo ligeiro, podendo ser conduzido por jovens a partir dos 16 anos.
Para a versão 2025 do Ami Buggy, os técnicos da marca francesa decidiram utilizar umas barras metálicas, pintadas a preto, a substituir as portas e, em vez do tejadilho amovível, colocar-lhe uma capota de lona, que pode ser aberta ou fechada de forma rápida. Assim, o buggy aparece como uma versão mais jovem, moderna e irreverente.
As encomendas começaram em meados de maio e as primeiras unidades deverão chegar a Portugal em agosto.
O novo Ami traz algumas alterações em relação ao modelo anterior, nomeadamente nos grupos óticos que foram colocados numa posição mais elevada e incorporados em molduras pretas. Os para-choques, situados nas extremidades laterais, ganham uma forma cilíndrica, de forma a melhor “absorver” qualquer tipo de toque.
Existem três packs de personalização do veículo, o Spicy, em que predomina o vermelho, o Icy, com dominância do branco, e o Minty, com tonalidades esverdeadas.
O Ami tem motorização elétrica única. Com uma autonomia máxima de 75 quilómetros, a carga da bateria é feita através de uma tomada doméstica de 220 volts e demora apenas quatro horas a carregar.
Os preços começam nos 7 990 euros para a versão mais básica. Autonomia: 75 km
O novo trunfo da BYD
A marca chinesa prepara-se para lançar mais um veículo elétrico na Europa, um modelo citadino que promete um preço de entrada bastante competitivo face ao que existe atualmente no mercado
BYD Dolphin Surf
A mais recente aposta da BYD para conquistar o mercado europeu foi apresentada no dia 21 de maio, em Portugal, mais propriamente na região de Cascais.
Trata-se de um modelo citadino compacto, inspirado no modelo existente na China, o BYD Seagull, que deverá receber algumas adaptações para se estrear na Europa. Foi lançado em 2023 e em menos de dois anos vendeu mais de 200 mil unidades.
Este modelo conseguiu também ser o vencedor na categoria de Citadino Mundial do Ano dos World Car Awards.
Aliás, esta foi a primeira vez que a BYD conseguiu conquistar um prémio neste evento, cujo júri internacional é composto por 96 jornalistas especializados de mais de 30 países.
Tem um design algo inovador, com linhas mais marcantes e definidas do que o que acontece com outros modelos já conhecidos da marca chinesa. Tem 3,8 metros de comprimento e foi desenhado para ser um veículo adaptado às congestionadas grandes metrópoles chinesas.
Apesar de a BYD estar em Portugal há apenas dois anos, desde maio de 2023, este será o décimo modelo da marca a ser lançado no nosso país, juntando-se aos Atto 2, Atto 3, Seal, Dolphin, Han, Tang, Seal U, Seal U DM-i e Sealion 7. Segundo os responsáveis da marca, esta estratégia agressiva de apresentação de mais modelos é para continuar e a BYD pretende ter um total de 13 modelos na Europa até ao final de 2026.
A política de investimentos no Velho Continente passa ainda pela introdução da nova plataforma de carregamento de baterias, a chamada Super e-Platform, que permite um “abastecimento” de energia à mesma velocidade com que se enche um depósito de gasolina. A rede vai começar agora a ser construída na China e terá capacidades de carregamento máximas de 1 000 kWh, o que permite em apenas cinco minutos carregar até 400 quilómetros de autonomia.
Até à hora de fecho desta edição ainda não existia informação sobre os preços de chegada ao mercado, mas, a avaliar pelo que já foi dito pelo responsável da marca no nosso país, este modelo chegará com um preço bastante competitivo face ao que atualmente existe no mercado neste segmento. Também Stella Li, vice-presidente executiva da BYD, admitiu que este modelo irá “oferecer o melhor valor” nos mercados europeus.
Ao que tudo indica, o BYD Dolphin Surf deverá ser colocado à venda em Portugal abaixo dos 20 mil euros.
“Costumo dizer, a brincar, que estamos aqui a devolver algum do ouro que levámos há uns séculos”, afirma Jorge Rebelo de Almeida, a propósito da inauguração do Vila Galé Collection Ouro Preto, que decorreu este sábado, 24, em Cachoeira do Campo, Ouro Preto, no estado brasileiro de Minas Gerais. “É um prazer enorme renovar património histórico”, acrescenta ainda o presidente e fundador do Vila Galé. “Há muitos anos que defendo que o Brasil tem um futuro promissor. E tem um potencial de crescimento tremendo”, remata.
Localizado na região de Ouro Preto, cidade que foi o centro primordial do Ciclo do Ouro no Brasil, conhecida pelas suas igrejas de arquitetura barroca e classificada património mundial pela UNESCO em 1980, o novo hotel do Vila Galé está integrado numa propriedade com 277 hectares, em Cachoeira do Campo (a 22 quilómetros de Ouro Preto). “Recuperar este edifício é mais do que abrir um hotel. É trazer de volta à vida um espaço com história e alma, contribuindo para o desenvolvimento do turismo e da economia local, como temos feito em Portugal e no Brasil”, diz também Jorge Rebelo de Almeida.
Em breve, no Vila Galé Collection Ouro Preto, serão, no total, 311 quartos: 95 no edifício principal e 216 em dois blocos adjacentes construídos de raiz (um dos blocos já está terminado, o outro só deverá ficar disponível no final de 2025). O hotel dispõe de cinco piscinas aquecidas, um spa, três restaurantes, uma biblioteca, um museu, uma capela e um clube para crianças. E ainda um anfiteatro com 130 lugares e uma área de eventos com capacidade para 900 pessoas. Na área da fazenda, também está previsto o planeamento de trilhos ecológicos com acesso a cascatas e a plantação de vinha, em cerca de 15 hectares (o grupo Vila Galé já produz vinho com a marca Santa Vitória no Alentejo, Val Moreira no Douro e Paço de Curutelo, em Ponte de Lima).
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O hotel, que representa um investimento de 30 milhões de euros, está inserido numa fazenda com 277 hectares
O Vila Galé Collection Ouro Preto representa um investimento de 180 milhões de reais (cerca de 30 milhões de euros), origina 120 empregos diretos e mais de 600 postos de trabalho indiretos na região. As primeiras negociações ocorreram em 2021, na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) e, no ano seguinte, um acordo com os salesianos, proprietários do imóvel, permitiu a apresentação do projeto a grupos de hotelaria. Foi assinado um contrato de concessão com a Igreja Católica para os próximos 50 anos (renovável). Do lado do governo de Minas Gerais, o resort é visto como um projeto fundamental porque não só tem impacto na economia local e regional como permite “reposicionar” o estado brasileiro como “um destino competitivo, seguro e acolhedor”.
Novos projetos já em construção
O edifício do Vila Galé Collection Ouro Preto tem uma longa história para contar. Trata-se de um imóvel histórico onde funcionou o primeiro regimento de cavalaria de Portugal no Brasil, mandado construir em 1779 pelo então governador António de Noronha. O brasão da coroa portuguesa, ainda hoje localizado por cima da porta principal, costuma ser atribuído a Aleijadinho (1738-1814), mas não há certezas de que, efetivamente, tenha sido esculpido pelo conhecido artista do período colonial. Em 1789, o edifício foi também um dos focos principais da Inconfidência Mineira, a revolta de natureza separatista liderada por Joaquim José da Silva Xavier, o célebre “Tiradentes”.
O movimento da Inconfidência Mineira acabou reprimido pela coroa portuguesa e a maioria dos seus autores foram condenados ao degredo perpétuo. “Tirandentes” – hoje considerado um herói nacional, símbolo da identidade brasileira – foi executado no Rio de Janeiro, a 21 de abril a 1792. O corpo foi esquartejado e a cabeça foi exibida no cimo de um poste em Ouro Preto, que então se chamava Vila Rica.
Depois da revolta da Inconfidência Mineira, o edifício de Cachoeira do Campo teve ainda duas vidas: em 1816, começou a ser adaptado para a Coudelaria Imperial de Cachoeira do Campo, fundada a 29 de julho de 1819. E, no final do século XIX, em 1897, foi também ali que se instalou o Colégio Dom Bosco, uma escola agrícola orientada por salesianos. Funcionou até 1997 e, por isso, ainda hoje, muitos mineiros têm memórias familiares desse período em que ali esteve instalado o colégio.
O Vila Galé Collection Ouro Preto já é o segundo projeto de recuperação de património levado a cabo pelo grupo português no Brasil, depois do Vila Galé Rio Janeiro, um antigo hotel convertido em colégio nos anos 40 do século XX reconvertido, depois, novamente, para hotel pelo Vila Galé. No total, o grupo dirigido por Jorge Rebelo de Almeida conta com 12 hotéis no Brasil. Recentemente, antes da unidade de Ouro Preto, no final de 2024, foi também inaugurado o Vila Galé Cumbuco, no Ceará.
Ainda em 2025, em outubro, a tempo da COP 30, a reunião da ONU sobre alterações climáticas que juntará 140 chefes de Estado de todo o mundo, em Belém, no estado do Pará, também está prevista a abertura do Vila Galé Amazónia. Em construção, o grupo Vila Galé tem já quatro novos empreendimentos: dois em São Luís do Maranhão e dois em Coruripe, em Alagoas. Em conferência de imprensa, realizada este sábado, 24, em Ouro Preto, Jorge Rebelo de Almeida também confirmou um novo hotel em Inhotim, um museu de arte contemporânea a céu aberto em Brumadinho, no estado de Minas Gerais, a 60 quilómetros da capital de Belo Horizonte.
Tirando as pessoas que o conheceram pessoalmente, Herberto Helder era, para leitores e mesmo não leitores, um oceano misterioso e desconhecido. Como começou a navegar por essas águas? Quem começou por me orientar neste trabalho foi o tradutor Aníbal Fernandes, amigo de Herberto. Foi ele o meu primeiro contacto. Tivemos inúmeras conversas durante semanas, meses… E essas conversas fizeram-me disparar para vários sítios, pessoas, histórias. Foi uma espécie de bola de neve que começou aí. E as pessoas que segui a partir desse processo davam-me acesso a outras pessoas e histórias. O Herberto Helder é um biografado muito diferente do habitual porque houve um silenciamento em vida, promovido pelo próprio. Havia, a partir de certa altura, uma espécie de medo dos seus amigos e mais próximos de deixarem de conviver com o Herberto se violassem essa regra que ele impôs. E eu entendo que ele tinha todo o direito à sua privacidade.
Até agora. Sim, ninguém fez uma biografia em vida, e eu percebo isso. Mas achar que depois da sua morte não iria haver uma biografia do Herberto Helder não faz sentido. E esta, provavelmente, não será a única. Se a sua obra continuar a suscitar interesse junto das novas gerações, acredito que haverá outras biografias. Mas sem acesso a muitos destes testemunhos que eu tive. Das cerca de 70 pessoas que entrevistei, muitas já não estão vivas, outras têm uma idade avançada. Mas podem aparecer novos documentos, correspondência nova, há aqui questões que podem ser aprofundadas ou corrigidas.
Foi avançando quase como um detetive, a partir dessas conversas com Aníbal Fernandes? Sim, e percebi rapidamente, pelas histórias que ia ouvindo, que havia, de facto, matéria para uma biografia interessante.
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Outra fonte fundamental, que percorre o livro, é a viúva do escritor, Olga Lima. Sem dúvida. Foi muito difícil convencê-la a colaborar, de início, mas tenho dezenas e dezenas de horas de gravações com ela. Entre o primeiro telefonema e a primeira conversa para a biografia, ainda sem gravar, passou mais de um ano…
Foi persistente… Sim. E também aprendi a conhecer a Olga, que tem uma personalidade muito diferente da maioria das pessoas com quem falei. É uma pessoa muito frontal e interessante, com uma frontalidade de que a maior parte das pessoas não gosta. Percebi que a Olga era, de certo modo, desprezada pela intelectualidade, que a silenciaram por não ser uma pessoa com um curso superior, com interesses literários… E das poucas vezes que se encontravam com ela, encontravam uma mulher que não era submissa, antes pelo contrário.
Nesta biografia sentimos que Herberto era muito bipolar, com momentos depressivos e desesperados e outros eufóricos e de entusiasmo… Sim. Era instável nos seus humores. Tinha momentos obscuros e outros de grande luminosidade… De certa maneira, acho que todas as pessoas são bipolares. E ele nunca foi diagnosticado como bipolar ou maníaco-depressivo, como se dizia antes. Mas tinha, claramente, humores circulares, e a eles se refere muitas vezes.
Herberto Helder escondeu-se, a partir de certa altura não deu mais entrevistas, recusou prémios, mas tinha uma grande preocupação com o modo como era lido, recebido, procurava o “sucesso” à sua maneira… Queria ser amado pelo seus leitores, sim…
Acha que os extremos se tocam, neste caso? Uma pessoa que quer ser invisível, mas que se preocupa muito com a sua imagem como poeta… Isso também é uma forma de chamar a atenção. Eu acho que isso era genuíno no Herberto, e é fácil reconhecer que há aspetos da vida mundana que são muito aborrecidos e prejudiciais para quem quer escrever e desenvolver a sua criatividade. Mas claro que ele percebeu que essa atitude dele suscita muita curiosidade e chama a atenção, é diferente do que é comum.
Mas só funciona quando já se atingiu alguma notoriedade… Claro. E nessa fase ele já tinha, e sabia que tinha, reconhecimento. Julgo que foi, ao mesmo tempo, genuíno, com esse sentimento “estou farto disto, quero ter paz e sossego”, mas depois percebeu que aquilo o tornava mais interessante, o distinguia dos outros, o tornava mais autêntico. Ele tinha essa ideia de reduzir ao máximo os intermediários entre o texto e o leitor, de tentar que esse encontro com os poemas fosse o mais direto possível, sem interferências, sem badanas a explicar quem ele é, sem citações de outros autores a dizerem como ele é “maravilhoso.”
Ao contrário de muitos contemporâneos e amigos, politicamente, Herberto Helder era muito ambíguo. Politicamente, era um tipo escorregadio. Há uma carta à Maria Lúcia Dal Farra em que ele é muito crítico do Partido Comunista e, mesmo, do espírito revolucionário. E na PIDE, quando fez uma declaração de apoio ao Salazar, extravasou um bocado o que era normal nas declarações que os intelectuais eram obrigados a assinar sob coação para poderem continuar com as suas vidas.
Mas pode-se dizer que era um homem de esquerda? Eu presumo que sim. Mas como todos os homens de esquerda da geração dele, nos comportamentos e nas práticas tinha coisas muito conservadoras. Sabemos, aliás, que o PCP é um partido muito conservador.
O amor e as mulheres são o grande combustível da sua vida e da sua obra. Mas nesta biografia encontramos várias vezes uma visão bastante misógina e machista de Herberto Helder. Quanto mais escavamos e aprofundamos a vida de uma pessoa, mais rugosidades encontramos, mesquinhezes, contradições, defeitos… Isso não o desculpa, mas ele vivia numa época em que não havia o nível de consciencialização, nessa matéria, que existe hoje.
E há, ainda, a importância das prostitutas na sua vida ao longo de vários anos, desde os tempos de estudante em Coimbra… Chegou a viver em bordéis. Isso também tinha que ver com aquele imaginário do poeta maldito, que se dá com os bêbados, os loucos, as prostitutas… É uma coisa muito de época.
Há uma grande tradição de mulheres que têm muita importância na vida e na obra de escritores: Borges e María Kodama, Saramago e Pilar… Como vê o papel de Olga, que chega a dizer na biografia que a cultura portuguesa lhe deve muito? De certo modo, tem razão. Se ela quis responsabilizar-se pela parte toda da vida doméstica, da casa, dando todas as condições a Herberto Helder para escrever e viver a sua vida como queria, ninguém tem nada que ver com isso… É uma decisão pessoal dela. E acho que teve esse papel importante para a criação da obra de Herberto Helder, sim. Nesse aspeto, a cultura portuguesa também deve muito às mulheres do Vergílio Ferreira, do Jorge de Sena, de muitos escritores.
Este livro (o muito aguardado Se Eu Quisesse Enlouquecia, de João Pedro George, a partir desta quinta, 22, nas livrarias) devia ter um aviso logo nas primeiras páginas, ou mesmo na capa, como os maços de tabaco. Aí, podia alertar-se os muitos leitores e leitoras de Herberto Helder: se quiser manter uma imagem difusa, misteriosa e enigmática do poeta, valorizando só os seus fulgurantes versos e os seus extraordinários poemas, não comece a ler este livro. Depois de começarmos, já é difícil parar, entre revelações, surpresas, mundanidades, tricas, conflitos… “Sei uma quantidade de histórias terríveis” poderá dizer o leitor no final das quase 900 páginas, citando o segundo verso do célebre poema que dá título a esta biografia, Se Eu Quisesse Enlouquecia. E a ideia do biógrafo era mesmo essa. “Nos obituários feitos depois da morte de Herberto Helder [em 2015] havia sempre uma mitificação, como se fosse uma espécie de deus ou figura mitológica”, diz-nos João Pedro George, que fez um texto de análise sobre esses obituários. “E houve sempre esse discurso, sobretudo dos literatos e intelectuais, como se ele fosse uma figura fora deste mundo; julgo que isso é um mau serviço à cultura e à literatura, porque tende a afastar a maior parte das pessoas, passando a mensagem: ‘É tudo tão extraordinário e especial, vem de uma inspiração tão misteriosa, de um super-homem, que o comum dos mortais não tem acesso a isto, é só para especialistas’.” E conclui o sociólogo e biógrafo: “Eu quis trazer o Herberto à Terra.”
Não é preciso avançar muito nas páginas deste calhamaço para que o mito comece a diluir-se, para que a cortina que nos separa do grande poeta Herberto Helder caia com estrondo. De repente, estamos a visualizá-lo, já velho e cansado, a comer os seus cereais favoritos ao pequeno-almoço, All-Bran, enquanto mexe “vigorosamente” numa chávena “duas colheres de sopa de café solúvel” com uma “pequena porção de água a ferver.”
Os mitos, é sabido, não comem All-Bran.
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Algumas páginas mais à frente, somos obrigados a ver o nosso poeta, ainda jovem, em cima de uma “carripana” na Queima das Fitas de Coimbra, de garrafa na mão, desequilibrando-se constantemente e recitando versos a uma cantora mexicana, Ana Maria González, que assistia ao desfile a partir duma janela do café Nicola. Ou, também por esses dias, a meter-se em confusões num jogo de futebol entre a Académica de Coimbra e o Benfica. Episódio que anos depois, em 1972, Herberto recordaria assim num texto publicado na revista Notícia, de Luanda, onde então trabalhava: “Éramos um grupo que se tinha vindo a preparar desde muito cedo com copos de tinto e pasteizinhos de bacalhau. Foi uma boa preparação, porque, quando chegámos lá, estávamos prontos para uma quantidade de coisas. Começámos a gritar. De repente, alguém achou que era necessário as pessoas darem porrada umas nas outras. Depois, acabou. Nunca mais fui ao futebol. Tinha sido divertido de mais, e eu receava dedicar o resto da minha vida às fascinações do tinto, do grito e da batatada no meio da cabeça. Vê-se que foi breve, ainda que intensa, a minha formação desportiva.”
Eis Herberto Helder de Oliveira na Terra. Humano.
“Um anarquista pacífico”
Como em muitas biografias, sabemos de peripécias, reflexões, confissões, rotinas e episódios do dia a dia através da correspondência do biografado. E Herberto Helder desde cedo escreveu muitas cartas. Nascido em 1930, fazia parte de uma geração que valorizava muito, quotidianamente, essa prática. (Os biógrafos do futuro terão, certamente, mais dificuldade, na tarefa de vasculhar emails, mensagens digitais e presenças nas redes sociais, apagadas ou protegidas…). Além de ter ouvido cerca de 70 pessoas para esta primeira biografia de Herberto Helder, João Pedro George teve acesso a vasta correspondência. E teve a sorte de ver o seu biografado – com fama e proveito de fugidio e discreto, sobretudo na segunda metade da vida – a definir-se a si próprio em várias ocasiões, de acordo com os humores e os acontecimentos da vida e da “vidinha”.
Alguns exemplos: “Não me ligo a ninguém. Como artista (e como homem também) prezo quase fanaticamente essa coisa admirável (e tão frágil!) que se chama Liberdade. Já vês portanto que grupos, escolas, correntes, modas, tertúlias – não são para este teu pobre amigo que prefere a solidão à limitação que todas essas coisas impõem. Faz-me a justiça de acreditar que te falo sinceramente”, em carta a Carlos Cristóvão, escrita quando tinha 22 anos. “Sou um desesperado em quase todos os dias da minha vida, embora sinta em mim grandes forças de alegria. Falta-me só o motivo forte e ando à procura. Penso no amor, mas o amor num sentido muito profundo. Enquanto não aparece, vou enchendo a solidão de prostitutas e literatura. Impuro na vida, vou sendo puro noutros planos”, escrevia, em 1956, a Eurico de Sousa. Também ao mesmo amigo, e pela mesma época: “Sou daqueles que fazem coisas extremas, que jogam tudo para possuir o que amam. Mas talvez em criaturas assim as fraquezas sejam ainda mais radicais. Aceite você o que sou – um forte com intermitências.”
“Se eu quisesse, enlouquecia”
(Contraponto, 897 págs., €24,90)
Quando João Pedro George, ao fim de oito anos de trabalho, entregou o texto final à editora, esta biografia de Herberto Helder tinha quase duas mil páginas. Apesar de ter sido reduzido para metade, este é um livro exaustivo, que revela, com a ajuda de muitos testemunhos e correspondência, uma vida que até agora estava na sombra.
Já em março de 1975, escrevia à investigadora e poeta brasileira Maria Lúcia Dal Farra (que fez a tese de doutoramento A Poética de Herberto Helder), possuidora de uma vasta e rica correspondência escrita pelo poeta: “Sou uma espécie de anarquista pacífico, um cidadão da indisciplina ociosa, um militante marcusiano do erotismo.”
Tantas frases escritas na primeira pessoa do singular, em forma de autorretrato, são um tesouro para qualquer biógrafo. E também na obra poética de Herberto Helder, sobretudo em prosa, há uma escrita do eu, certamente com pendor autobiográfico. Um exemplo entre muitos, saído de um conto/poema de um dos seus livros mais célebres, Os Passos em Volta: “Sou uma criatura devastada pelo egoísmo”, escrevia em Duas Pessoas. Mais: “Sou um porco. Estas mãos mexeram na merda.” “Não gosto de ninguém.”
No princípio, era a culpa
Ao longo desta muito aguardada biografia revela-se um homem instável, capaz do mais exacerbado estado de paixão e de momentos sombrios; confiante na qualidade da sua produção literária, grande prioridade da sua vida, e ao mesmo tempo inseguro, ao ponto de várias vezes, ciclicamente, declarar que iria deixar de escrever para sempre e que nada do que tinha escrito lhe agradava (Herberto Helder era conhecido pelo modo quase obsessivo e minucioso com que reescrevia e corrigia a sua obra). De onde vinha tanta inquietação e instabilidade?
Há respostas que podem vir dos primeiros anos de vida. De certo modo, há uma espécie de maldição que vem da infância na Madeira, acontecimentos funestos que marcam toda uma existência, impossíveis de apagar.
Herberto Helder nasceu no dia 23 de novembro de 1930, um domingo, no Funchal, ilha da Madeira. Seria registado como Herberto Elder de Oliveira, e só a partir da adolescência passou a acrescentar um agá ao segundo nome próprio. O seu pai, filho de um tanoeiro, era Romano Carlos de Oliveira, que se tornaria uma figura respeitada na burguesia funchalense, com uma vida dedicada ao comércio. A sua mãe era Maria Ester Luís Bernardes. O casal teve duas filhas: Maria Regina Gisela, nascida em 1923, e Maria Elora, três anos depois, irmãs mais velhas de Herberto. Ter um rapaz era um desejo antigo de Maria Ester, mas o nascimento desse menino a que chamariam Herberto Elder foi um ato de desafio e rebeldia. Os médicos avisaram que ela correria risco de vida se engravidasse uma terceira vez. Maria Ester insistiu e teve o seu sonhado menino.
Sempre que a mãe, de frágil saúde, piorava ou apresentava sintomas de doença, o nascimento de Herberto era visto como causador desses padecimentos. E isso era algo que ele não ignorava quando foi ganhando consciência de si, ouvindo as irmãs, o pai e outros familiares (também a avó materna Matilde vivia com eles). A relação com a mãe foi breve, mas forte e intensa. Ela lia-lhe histórias e poemas e gostava de os comentar com o curioso rapazinho. Tinha, ainda, um estranho hábito: Maria Ester escrevia cartas para si própria, que enviava pelo correio, recebia e lia. Certo é que a relação entre filho e mãe era muito próxima, ao ponto de ele faltar à escola com a cumplicidade da mãe e às escondidas do pai, até chegar violenta e abruptamente ao fim. Herberto tinha apenas oito anos quando a sua mãe, em abril de 1939, morreu em casa, não resistindo mais aos seus problemas de saúde. Os tais que supostamente tinham sido causados pelo nascimento do terceiro filho. Como lidar, ao longo da vida, com um tal sentimento de culpa? E como é que ele se forma numa criança de oito anos, que, de repente, se sente perdida no mundo, na ilha?
Entre os textos inéditos de Herberto Helder, João Pedro George encontrou esta passagem: “Apenas sussurrada crónica de família dizia que eu fora filho do erro, macho querido desde o princípio tendo vindo sempre fêmeas, duas, e aos médicos que aconselhavam não impor a paixão materna de mais uma gravidez, e sim, agora fora um filho, mas a mãe, já abalada, não morrera logo não. Desfuncionava agora em tudo e foi morrendo durante oito anos. E eu fui crescendo com a morte dela que também ia crescendo. Quando eu morrer não os deixes enterrar-me sem me cortarem as veias dos pulsos, tens de jurar, não os deixes, quero a tua palavra, quero ter agora a certeza de que não serei enterrada viva. Este senhor, que em tempos foi caoticamente intenso, sou eu agora.” Parece quase uma mitológica tragédia grega.
A quinta edição de Encontros Para Além da História decorre em torno da obra de Herberto Helder
Para piorar a situação, a relação com o pai começou logo aí a deteriorar-se (mas o pequeno e franzino Herberto seria, por alguns anos, mimado pelas irmãs mais velhas, em esforço maternal). Romano Carlos apressou-se a mudar de casa, para grande desgosto do filho, e não demorou muito a arranjar outra companheira, com quem se casou em 1941, uma madrasta que Herberto rejeitou, o que só aumentava a irritação e as zangas do pai. O afastamento parecia inevitável, e aconteceu mesmo ao longo da vida; mesmo quando muitos anos depois o pai, então a residir no Brasil, onde moravam as duas irmãs de Herberto Helder, tentou uma reaproximação, depois de perceber que o filho se tinha tornado numa prestigiada figura das letras em Portugal. A desilusão e o gradual corte com o filho acentuou-se quando Romano Carlos, respeitado homem de negócios no Funchal, percebeu que o seu único filho não estava, afinal, a cursar direito em Coimbra, como ele imaginava, e tinha optado por uma vida boémia alimentando a ambição de ser poeta… Herberto Helder esteve inscrito no curso de Ciências Pedagógicas, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e, depois, em Filologia Românica, na mesma faculdade. Não avançou muito em nenhum dos cursos e nunca completou uma licenciatura, criticando várias vezes, ao longo da vida, o academismo e o Ensino Superior tal como o conheceu. “Tive 23 desempregos”, diria. Foi funcionário das bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, foi um relapso delegado de propaganda médica, angariador de publicidade, trabalhou em forjas de metal, guiou marinheiros chegados ao porto de Antuérpia às casas de prostituição… Nunca ficou muito tempo em cada “desemprego”, aceitava-os por necessidade urgente. “Os empregos dele eram só para o desenrasca”, contou Olga Lima, viúva do poeta, com quem casou em 1973, ao biógrafo. “Quando estava muito aflito, aceitava um emprego, estava dois, três meses para pôr as continhas mais ou menos em ordem. Depois, quando recebia o dinheiro, escapava-se. Era preguiçoso? Não. O número de títulos que ele tem mostra que ele não era preguiçoso. Agora, ele não queria um trabalho convencional e sistemático como as outras pessoas.”
“Uma libido hiperativa”
O amor, as mulheres, o erotismo e o sexo e, claro, o discurso poético, a palavra, parecem ser o núcleo central da vida e obra de Herberto Helder. Os seus mais atentos leitores e admiradores sabem-no. E é mesmo por isso que algumas das passagens mais surpreendentes desta biografia, e que mais podem chocar sobretudo as muitas leitoras apaixonadas, são aquelas que nos dão acesso a um Herberto misógino e machista com declarações (em cartas privadas…) que se fossem ditas hoje, publicamente, seriam motivo para críticas ferozes e cancelamentos. Exemplos? Ainda muito jovem, escrevia assim a um amigo na Madeira que tinha conseguido comprar um carro: “Um carro é um animal, uma nesga somente abaixo na escala da tentação – da mulher. Um carro é uma mulher bonita em metal. Mas é necessário não se lhe entregar demasiado, tal qual como à mulher.” E já adulto, dirigia-se assim ao amigo Eurico Sousa, num momento em que estava interessado na sua irmã, Alice: “Você é um homem, e um homem é um ser poderoso. A mulher é sempre uma criatura pobre. A sua força provém de qualidades negativas, dos poderes da fragilidade, da sujeição, da ternura. Julga que um ser, assim organizado, poderá resistir ao abandono, à entrega a si próprio que é fundamentalmente a solidão?” É precisamente Alice Sousa, uma das primeiras grandes paixões do poeta, que conta, a páginas tantas: “O Helder escreveu-me uma carta onde essa faceta aparecia, mais ou menos: ‘A mulher deveria sempre acatar as recomendações do marido.’ Em resposta, escrevi-lhe: ‘Sim, deve acatar se forem recomendações razoáveis, lógicas, caso contrário, não.’ Mas, segundo ele, mesmo que fossem ilógicas, a mulher devia acatar. Ele não conseguiu superar essas convenções.
“Penso no amor, mas o amor num sentido muito profundo. Enquanto não aparece, vou enchendo a solidão de prostitutas e literatura. Impuro na vida, vou sendo puro noutros planos”, escrevia Herberto Helder, em 1957, ao amigo Eurico de Sousa
”Além de frequentar prostitutas em várias fases da vida (a proximidade era tanta que, quando era estudante em Coimbra, chegou a ficar instalado num bordel numas férias de Natal em que decidiu não ir à Madeira, e anos depois também seria acolhido num bordel em Antuérpia), Herberto Helder teve inúmeros casos e affairs, muitos deles depois do casamento com Olga Lima, respeitando (quase sempre…) o acordo que tinha com a mulher: ela não queria saber desses casos por terceiros. Os amigos recordam essa faceta do poeta. “Havia uma característica estranha nele, que era a desenvoltura com que contava as suas peripécias sexuais. Era algo que não se ajustava a essa faceta misteriosa. Falava de sexo como se estivesse a discutir o preço das batatas” contou ao biógrafo o tradutor Aníbal Fernandes, amigo do poeta ao longo de décadas. E, mais à frente, também nas palavras de Aníbal: “Gostava dos amigos, mas principalmente das mulheres dos amigos. Uma vez, depois de ter estado com o Manuel Alegre, só me falava da mulher do Alegre, quando me falava do [Augusto] Abelaira, falava-me só da mulher do Abelaira, quando era o Carlos de Oliveira falava-me da mulher do Carlos Oliveira.”
Olga Lima, a mulher ao longo de mais de 40 anos, di-lo com toda a clareza, no seu estilo frontal e sem meias-tintas: “Muitas mulheres, muitas admiradoras teve aquele cabrão. Dava-me cabo da cabeça com as admiradoras dele. Acho que o Herberto tinha uma tesão por mulheres um bocado doentia, devia ter uma libido hiperativa. (…) O Herberto era assim, se uma saia lhe fizesse frufru, ele estava sempre pronto.”
Muitas decisões e viragens no seu percurso estiveram relacionadas com relacionamentos com mulheres. Como quando viajou para Paris e depois para a Bélgica, onde vadiou, trabalhou e sobreviveu com dificuldades. Tinha-se casado, em 1958, com Maria Ludovina, de quem teve uma filha, Gisela (em homenagem à irmã), mas mantendo uma relação com Alice Sousa, e vendo-se perseguido pela sogra, decidiu dar um salto para a Europa (de que resultaram, aliás, vários textos poéticos).
O outro filho de Herberto, Daniel Oliveira (o conhecido comentador, com óbvias parecenças físicas com o pai) nasceria em julho de 1969, do relacionamento com Isabel Figueiredo. Nos dois casos, nunca foi um pai muito presente.
“Uma intoxicação ideológica”
Num momento em que os bons costumes tinham força de lei, também teve a PIDE à perna por várias vezes. Mas eram as suspeitas de comunismo e más companhias que mais vezes o colocaram no caminho da polícia política do Estado Novo. Nesse aspeto, Se eu Quisesse, Enlouquecia revela-nos um homem livre e sem compromissos partidários nem convicções políticas muito claras e profundas. Detestava a corrente neorrealista que, a certa altura, dominava a vida literária nacional ligada a uma oposição comunista. E dizia, mesmo: “Eu atiro-me para a poesia com a mesma convicção com que vocês vão para a clandestinidade.” Escreve João Pedro George: “Os posicionamentos ideológicos de Herberto não eram reconhecíveis nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira vista. Produziam até uma certa estranheza.” Em 1965, o poeta colaborou, com uma tradução, numa revista declaradamente de extrema-direita, a Sulco. Mas também é verdade que chegou a inscrever-se no Partido Comunista Português (ver entrada sobre Saramago na caixa H.H. e os Outros), onde resistiu poucos meses.
Em março de 1975, em pleno fervor revolucionário nacional, analisava assim a situação em carta dirigida a Maria Lúcia Dal Farra: “Este desejo de paz e segurança favorece perigosamente o projeto das direitas. A verdade é que os militares e os partidos políticos da esquerda não têm sabido resolver, sequer, abordar, com alguma eficácia os problemas concretos postos. Há uma intoxicação ideológica que impede a visão objetiva das coisas. Grandes contradições, programas irrealistas, vontades frenéticas de poder. E agora, com a campanha eleitoral, tudo irá decerto exacerbar-se. Estás a ver? Não me admiraria que uma direita implacável e vingativa viesse a tomar conta do País. A esquerda tem vindo a fazer cegamente por isso.” Os grandes poetas são sábios e visionários? Ou a História repete-se sempre, entre mitos e homens?
H.H. e os outros
O poeta tinha fama de eremita, mas, apesar de tímido, foi também muito sociável e cruzou-se com várias figuras do seu tempo. Alguns exemplos, saídos das páginas de Se Eu Quisesse, Enlouquecia
SOPHIA DE MELLO BREYNER “Nesta época, era já um grande leitor de poesia. O próprio dizia-o numa carta à poetisa Sophia de Mello Breyner, enviada de Santarém, em 5 de junho de 1962 (Herberto tinha 31 anos e estava a pouco mais de cinco meses de completar os 32): ‘A cada livro novo seu que leio, reata-se o antigo encantamento da minha primeira juventude, quando descobri a sua poesia. Nunca lhe contei? Uma tarde, na ilha da Madeira, tinha eu a idade maravilhosa que já não sei, descobri numa livraria a sua Poesia. E foi um dos mais belos encontros da minha vida. Não há aqui literatura: tudo isto é verdadeiro.’”
LOURDES CASTRO “Depois de um Natal passado na Madeira, Manuel Rosa [editor na Assírio & Alvim], na véspera de regressar ao continente, recebeu das mãos de Lourdes Castro algumas plantas e frutos (pitangas, anonas, etc.) que ela colhera no jardim de casa, alguns deles para que oferecesse a Herberto. Quando abriu a caixa com as pitangas, começou por cheirá-las e, de imediato, deflagrou nele um movimento regressivo, uma nostalgia proustiana. Quando Olga, a mulher, se aproximou para ver os frutos, Herberto, que desde a infância provavelmente nunca mais os provara, afastou a caixa: ‘Não! Ninguém mexe!’”
[Herberto Helder e a artista plástica Lourdes Castro nasceram no Funchal no mesmo ano, 1930. Chegaram a ser colegas de turma, e quando eram crianças as suas famílias passavam férias no mesmo local madeirense, o Monte, e ao longo da vida nunca se perderam de vista]
MANUEL ALEGRE “Nessa altura [1958], Herberto voltara a Coimbra, como disse Manuel Alegre, que o acolheu em sua casa: ‘Ele tinha chegado a Coimbra debilitado. Contava as suas deambulações pelas ruas de Lisboa, as noites dormidas nos bancos dos jardins, por vezes em albergues, os dias sem comer e a beber água das fontes. Contava com um certo deleite, como se falasse de uma espécie de iniciação. Tinha cortado com os estudos e o pai deixara de lhe enviar a mesada. Vinha um bocado em baixo, minha avó e minha mãe engraçaram com ele e obrigaram-no a comer. Passámos o tempo a falar de poesia e a ler poemas um ao outro.’”
JOSÉ SARAMAGO “Olga diz que ‘inscrever-se no PCP foi daquelas gracinhas que o Herberto gostava de fazer. Para saber como era aquilo por dentro, ele gostava de conhecer as coisas por dentro, não tinha nada a ver com elas, mas gostava de conhecer. E gostava do Manuel Gusmão, que estava lá. Mas o Herberto inscreveu-se no PCP depois de muitos terem saído do partido após terem visitado a URSS. Depois de terem visto como era o Sol da Terra, perceberam que aquilo era um filme de terror. Portanto, quando todos os intelectuais estavam a sair do Partido Comunista, à boa maneira do Herberto, entrou ele. Eu pus as mãos na cabeça. Passados dois ou três meses, disse-me: ‘Vou-te dar uma alegria. Pões isto no correio?’, ‘O que é isto?’, perguntei. ‘Vou devolver o meu cartão ao PCP’, ‘Deixaste!?’, ‘Deixei.’ A atividade dele era ir uma ou duas vezes por semana ao Hotel Vitória, na Avenida da Liberdade. Quando lhe perguntei o que ele ia lá fazer, disse-me que ficava a discutir literatura com o Saramago. Ficavam ali os dois a serrar presunto. Era essa a atividade política dele’. Herberto nunca pareceu ter tendências ideológicas ou partidárias muito vincadas.”
TOMÁS TAVEIRA “O Tomás Taveira costumava dizer que aprendeu tudo com o Herberto, mas depois, quando apareceram as cassetes de vídeo, eu dizia ao Herberto, a gozar com ele: ‘Também lhe deves ter ensinado as poucas-vergonhas.’ ‘Lá estás tu com as tuas coisas’, dizia-me ele. Mas eram sobretudo as mulheres que o assediavam. Estava sempre a receber cartas de doutoras. ‘Ó Herberto, não me tragas cá a Faculdade de Letras’, dizia-lhe eu.”
[Citação de Olga Lima, viúva de Herberto Helder, com quem casou em 1973. O poeta conheceu o arquiteto Tomás Taveira, em Santarém, em 1961, e até chegaram a colaborar no projeto de uma loja de discos da Valentim de Carvalho, em Cascais.]
Cinco livros marcantes
Herberto Helder tinha uma abordagem perfeccionista à sua poesia e ao modo como era editada, sem reimpressões. Alguns dos seus livros são hoje preciosidades difíceis de encontrar e que podem atingir preços muito altos nos alfarrabistas
O Amor em Visita Contraponto, 1958
Depois de ter tido vários poemas publicados em revistas literárias, quase todas efémeras, e de já ter dado nas vistas no meio restrito da poesia portuguesa (António Ramos Rosa foi o primeiro a reconhecer publicamente o seu génio), esta é a estreia em livro de Herberto Helder. Luiz Pacheco, sempre atento a novos autores, foi o editor, na sua Contraponto. O título é uma referência direta a um texto do francês Alfred Jarry (L’Amour en Visites). Está aqui um dos seus poemas mais célebres. Aquele que começa assim: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite.”
Os Passos em Volta Portugália, 1963
Não sendo menos poético, é o primeiro livro em prosa de Herberto Helder, e um dos mais celebrados da sua bibliografia, com vários contos, muitos com pendor surrealista, mas também com um marcado cariz autobiográfico. A sua deriva por Paris, Bruxelas e Antuérpia, no fim dos anos 50, está aqui presente em vários textos. “Uma daquelas obras que toda a gente que gosta de literatura deveria ler”, escreve João Pedro George em Se Eu Quisesse, Enlouquecia. “É um livro de uma indiscutível singularidade estética e estilística.” A partir da terceira edição (na Editorial Estampa), Os Passos em Volta passou a contar com mais cinco contos em relação à primeira.
Cobra & Etc, 1977
Não sendo uma das mais (re)conhecidas obras do autor, é o primeiro livro de Herberto Helder na editora de Vítor Silva Tavares, a histórica & Etc, fundada em 1974. Era apresentado como um “opúsculo, com um mínimo de circulação comercial”. Em carta ao poeta Gastão Cruz, o seu autor descrevia o que aqui tinha procurado fazer: “Uma espécie de ‘carnificina da escrita’, o que não ser confundido com ‘prosaísmo.’ Antes alguma coisa como um estilo canhestro, desajeitado, grosso, e ao mesmo tempo rebarbativo.” E terminava essa missiva bem ao estilo herbertiano: “Nesta perspetiva, estes textos não me dececionam. Não me agradam, claro, mas isso não posso pretender: nada do que fiz me agrada.”
Aqui, o poeta recupera o título da primeira coletânea de poemas seus (publicada em 1967, na Portugália). É uma excelente porta de entrada no universo de Herberto, contendo os poemas escritos (e, muitas vezes, reescritos) até A Faca Não Corta o Fogo – Súmula e Inédita (2008).
Poemas Canhotos Porto Editora, 2015
Publicado já depois da morte de Herberto Helder, é o seu derradeiro livro com novos poemas. Um ano antes, tinha surpreendido muita gente com a transferência da Assírio & Alvim, onde editava desde o fim dos anos 70, para a Porto Editora. Começava fazendo pensar na ilha onde nasceu – “a amada nas altas montanhas/ o amador ao rés das águas” – e em certas páginas soava a despedida – por exemplo, aqui: “em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas/ agora não tenho nada (…)”.
Acordamos com o coração acelerado, a mente cheia de tarefas por cumprir e a sensação de que o tempo não chega para tudo. A ansiedade instala-se de forma subtil e vai-nos ocupando por dentro – sem pedir licença.
Todos temos dias difíceis. Mas quando a ansiedade se torna rotina, o corpo e a mente começam a dar sinais. O problema é que, muitas vezes, ignoramos esses sinais porque achamos que “não é nada”. Só que é. E quanto mais cedo cuidarmos dela, mais leve se torna a vida.
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A boa notícia? Cuidar da ansiedade não tem de ser um processo demorado ou complexo. Às vezes, bastam pequenas ações – microdesafios – que, repetidos diariamente, ajudam-nos a recuperar a sensação de controlo.
O que são microdesafios e como funcionam?
Na prática, são pequenas atividades com intenção. Segundo a neurociência, o cérebro responde muito bem a ações curtas e repetidas que envolvam foco, segurança e bem-estar. Ao darmos pequenas pausas intencionais à mente, ensinamo-la a sair do piloto automático e a entrar no presente.
O segredo está na consistência, não na duração.
5 Microdesafios para Começar Já
1. Respirar para reiniciar Durante 1 minuto, inspire pelo nariz em 4 tempos, segura 2, expira pela boca em 6. Repete. É o atalho biológico para sair do modo “stress” e entrar em modo “presente”.
2. Dizer um “não” consciente por dia Aprender a colocar limites reduz a sobrecarga e melhora o foco. Pôr limites é como pôr protetor solar: no início parece opcional, mas depois percebe-se que salva a pele. Por isso, afirme mais vezes: “Não, hoje não vou responder a e-mails depois das 19h.”
3. 20 minutos longe de ecrãs Afasta-te dos dispositivos e foque-se num estímulo real: ouvir uma música, olhar pela janela, conversar com um amigo ou vizinho. A exposição contínua a estímulos digitais aumenta a tensão e o cansaço cerebral.
4. Criar uma âncora Escolha uma palavra que lhe traga segurança (“agora”, “foco”, “força” “apressadamente”) e repita-a mentalmente nos momentos de maior ansiedade. A repetição ativa o córtex pré-frontal e ajuda na regulação emocional.
5. Tarefa mínima com propósito Quando tudo parece demasiado, escolha uma só tarefa concreta e termina-a. A sensação de conclusão liberta dopamina e reforça a autoconfiança.
A mente não precisa de grandes soluções. Precisa de pequenos gestos com intenção.
Estes microdesafios não substituem terapia, mas podem ser o primeiro passo para reconstruir a sua autorregulação emocional.
E isso tem um impacto real e duradouro.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
No dia em que acordou da cirurgia de reconstrução mamária pós-mastectomia, Cláudia Kieffer sentiu-se bem como nunca. “Foi como se uma brisa de primavera tivesse soprado na minha cabeça e limpado todo o lixo que se acumulara durante anos”, contou ao Guardian.
E não era apenas por estar prestes a recuperar a sua autoestima. “Quando se sofre de depressão durante tanto tempo como eu, parece que estamos a afogar-nos”, comparou a norte-americana. “Por isso, ao aparecer algo que nos faz sentir muito diferentes e saudáveis, queremos saber que droga é essa.”
O ano era 2011 e Claudia acabara de se encontrar por acaso com a cetamina, um conhecido anestésico, com propriedades psicadélicas, que por aquela altura andava a ser testado em cada vez mais ensaios clínicos por causa dos seus efeitos antidepressivos.
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No currículo, ela trazia três colapsos nervosos e outros tantos internamentos, uma dúzia de sessões de choques elétricos (terapia eletroconvulsiva) e muitos anos de automedicação. Já tentara todos os tratamentos disponíveis e pensava em suicidar-se todos os dias.
Claudia não descansou, por isso, até ser incluída num desses ensaios, passando mais tarde a receber infusões de cetamina uma vez por mês. Oito anos depois, ficava naturalmente feliz ao ver a Food and Drug Administration (FDA) aprovar o Spravato – um spray nasal com escetamina, que é uma forma de cetamina de ação rápida – como medicamento para a depressão.
“Agora tenho esperança”, dizia, então, a norte-americana ao Guardian. Além da facilidade em aceder ao novo tratamento, livrava-se do estigma de ter de recorrer a uma droga popular em festas e discotecas por provocar alucinações e experiências fora do corpo.
Milhares de euros
Há mais de três décadas que não havia uma novidade farmacêutica nesta área. A última tinha sido a fluoxetina, comercializada inicialmente como Prozac.
Março de 2019 entrou, por isso, para a História dos antidepressivos como o mês em que a agência norte-americana responsável pela regulação de fármacos autorizou finalmente um novo medicamento.
E o Spravato, da farmacêutica Janssen, apresentava bons resultados contra a depressão resistente, não era uma mera bravata.
Pouco depois, também a Agência Europeia de Medicamentos aprovou a sua utilização em caso de adultos com depressão grave, combinado com um antidepressivo convencional. E, logo no primeiro trimestre de 2020, vários países da UE avançaram com a comparticipação estatal.
Este componente da cetamina estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas, em vez de demorar dias ou semanas
Era só uma questão de tempo até o spray nasal com escetamina chegar a Portugal, sabiam os médicos que logo em 2019 olharam com esperança para as notícias vindas do outro lado do Atlântico.
Mas foi preciso esperar até este mês de maio para o Infarmed autorizar o seu financiamento a 100%, especificando ser para uso em meio hospitalar e em adultos “com perturbação depressiva major resistente ao tratamento, que não responderam a pelo menos três tratamentos diferentes com antidepressivos”.
A luz verde da Autoridade Nacional para o Medicamento e Produtos de Saúde foi recebida como uma “excelente notícia para os doentes”, repete desde então Albino Oliveira-Maia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, lembrando que o tratamento com Spravato era muito caro: “Correndo bem, podia chegar a várias dezenas de milhares de euros.”
A partir de agora, “a escetamina vai permitir tratar mais doentes, de uma forma equitativa, com maior rapidez e melhores resultados”, aplaude o também diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud.
O atraso de cinco anos em relação aos EUA e a tantos outros países explica-se pelo facto de o Infarmed repetir o processo de uma maneira muito rigorosa, sublinha o psiquiatra e investigador: “Temos um regulador com parâmetros técnicos de elevadíssima qualidade que aumentam as garantias do processo.”
Mudança radical
Percebe-se facilmente por que razão a comparticipação a 100% do Spravato é uma excelente notícia quando se pensa no problema que tenta resolver: a depressão refratária ou resistente ao tratamento.
Fala-se em depressão resistente quando a pessoa continua com sintomas apesar de ter sido tratada com dois medicamentos diferentes.
É uma situação clínica que preocupa os médicos porque existe evidência de que, depois de terem falhado dois medicamentos, a probabilidade de haver uma boa resposta a um terceiro é muito mais baixa.
“Ao segundo medicamento, um terço dos doentes vão ficar bem, mas, a partir do terceiro e para a frente, a probabilidade de uma remissão é apenas de 10% a 15%, ou seja, cai para metade”, faz notar Albino Oliveira-Maia.
Esses são os números dos antidepressivos convencionais. Depois, existem dois tratamentos não medicamentosos eficazes, mas de acesso difícil: a terapia eletroconvulsiva e a estimulação magnética craniana (ver caixa).
A primeira exige bloco operatório e a segunda uma máquina cara. “Os sistemas de saúde estão mal preparados para assegurar estes tratamentos”, lamenta o psiquiatra, “e, em paralelo, também devemos utilizar a psicoterapia, que é igualmente de difícil acesso”.
Já a escetamina apenas tem de ser administrada em ambiente clínico, sob supervisão médica, ficando o doente em observação durante cerca de duas horas após cada sessão.
Enquanto os chamados antidepressivos tradicionais atuam na bioquímica cerebral, interferindo em três neurotransmissores associados à sensação de bem-estar (serotonina, dopamina e noradrenalina), a escetamina atua sobre o glutamato, uma outra molécula da rede neural que estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas.
Três décadas depois dos primeiros estudos sobre cetamina, liderados por John Krystal, psiquiatra chefe da Escola de Medicina de Yale, nos EUA, pode dizer-se que os psicadélicos vieram operar uma mudança radical no tratamento da depressão resistente.
Claudia sentiu isso mesmo na pele. Diz que a cetamina lhe devolveu a vida.
Terapias eficazes, mas de acesso difícil
Ambas visam modificar a atividade elétrica e química cerebral para tratar a depressão e outras doenças psiquiátricas
ELETROCONVULSO-TERAPIA Indicada para depressão grave com risco suicida, depressão com sintomas psicóticos, perturbação bipolar resistente, esquizofrenia refratária, entre outras.
Envolve estímulos elétricos controlados, sob anestesia geral curta e relaxante muscular.
Induz uma convulsão terapêutica que promove mudanças na atividadedos neurotransmissores, com a consequente melhoria rápida dos sintomas.
O protocolo padrão inclui 12 sessões de ciclo agudo.
Pode provocar perdade memória temporária.
ESTIMULAÇÃO MAGNÉTICA TRANSCRANIANA Indicada para depressão resistente, perturbação obsessivo-compulsiva (POC), tratamento de zumbidos, cessação tabágica, ansiedadee défice cognitivo ligeiro.
É um tratamento não invasivo que usa pulsos magnéticos para estimular repetidamente regiões delimitadas do cérebro, modulando a atividade cerebral e reduzindo os sintomas.
Na depressão estimula-se o córtex pré-frontal dorso lateral esquerdo e na POC estimula-se o córtex orbitofrontal.
O tratamento dura entre 20 e 30 sessões diárias ou bidiárias.
Pode provocar uma leve dor de cabeça nas primeiras sessões.
Diz-se que a melhor maneira de contar uma história é começar in media res. Do meio se compõe a tessitura dos acontecimentos, que se vão revelando, camada após camada, com fios entrecruzados, até se ver surgir o tecido completo de uma vida.
A história do economista de sucesso que abandonou tudo, o conforto, o dinheiro, a convivência prolongada com a família, para se dedicar à fotografia também pode iniciar-se nessa mina de ouro com que se abre o documentário O Sal da Terra, realizado por Wim Wenders e pelo filho do fotógrafo, Juliano Salgado. Wenders, que sempre teve uma fotografia de Salgado à secretária (o retrato de uma mulher cega, que mesmo assim nos fita com olhos de não ver), comprara, anos antes, uma cópia da imagem dos homens transformados, eles próprios, em terra, «pareciam esculpidos em barro», no fundo de uma mina a céu aberto. É que estas fotos de «homens-terra», formigueiro de gente, silhuetas ocre que sobem e descem em carreiros a acarretar torrões, em composições miniaturais, e ao mesmo tempo demoníacas, à Hieronymus Bosch, têm já qualquer coisa de genesíaco. De inicial. Apesar de a carreira de Sebastião Salgado, nessa fase, ainda só ir a meio (entre 1986 e 1992 percorreu 26 países para a sua série O Trabalho). Quando Salgado, nos anos 80, se aproximou da boca desta mina de ouro no Brasil, na Serra Pelada, no Pará, uma cratera maior do que um estádio de futebol, e ouviu todo aquele rumorejar de 50 mil vozes humanas, vindas das entranhas, a 70 metros de profundidade, e os ruídos secos das pás e picaretas, sem qualquer motor mecânico, teve esta mesma sensação de génese: viu, numa fração de segundo, conta no filme, a história do mundo, a construção das pirâmides, da Torre de Babel, as Minas do Rei Salomão.
Foto: Sebastião Salgado
Lentidão Mas estava muito longe de bater no fundo. Ali, «o gringo» (à época de barba e cabelo ruivo, impossível passar despercebido) viveu durante semanas com os mineiros. Sem mulheres num raio de 50 quilómetros, e uma violência latente. O trabalho era penoso, mas não eram escravos: «A não ser, talvez, da sua própria vontade de enriquecer», comentou a Isabelle Francq, no livro Da Minha Terra à Terra (lançado em Portugal em 2014, na editora Individual). Aliás, nesta mesma série dedicada ao trabalho, focada na produção em grande escala, em que procurou traçar «uma arqueologia visual» do que ainda restava da era industrial, de todos os trabalhos que testemunhou, em todos os continentes -desde a tecelagem no Bangladesh aos infernais po- ços petrolíferos em chamas no Koweit, o trabalho que mais o chocou encontrou-o nos EUA, num matadouro no Dakota, onde eram abatidos mil porcos por hora e duas mil vacas por dia: «Os trabalhadores repetiam incansavelmente o mesmo gesto sangrento, em salas sem janelas. O odor era insuportável. No primeiro dia, foi impossível tirar uma única fotografia, não parava de vomitar».
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Mas para perceber como Sebastião Salgado conseguiu chegar até às profundezas mais tenebrosas do planeta é preciso ir encontrá-lo menino, na fazenda dos pais, situada em Minas Gerais, num vale tão grande que cobria a dimensão de Portugal. Aí, o único rapaz de sete irmãs teve o seu primeiro ensinamento: o da luz e o da sombra. Tem a sensação de ter crescido com a contraluz, as palas dos chapéus, as sombras das árvores onde o colocavam para proteger a pele branca: «Nessa altura não havia protectores solares». «Essa luz, esses espaços são a minha história». A segunda lição foi a do espaço aberto: nadava em riachos cheios de jacarés, galopava a cavalo, saía de manhã e só regressava à noite, percorria sozinho distâncias equivalentes às de Paris a Lisboa. Só para transportar os animais da quinta ao matadouro, ele e o pai levavam mais de um mês, era comum para ele fazer 50 dias de estrada; habituou-se às transumâncias, e sobretudo à lentidão, ao tempo de espera para conversar e admirar a paisagem (terceira lição): «Essa lentidão é a mesma da fotografia». E acrescenta: «Se não se gosta de esperar, não se pode ser fotógrafo. É preciso descobrir o prazer da paciência». Com os homens, o tempo de chegar, de se apresentar, conversar, conhecer as pessoas, até se tornar parte da paisagem. Mas também os animais, conta, neste último seu projeto Génesis, em que, ao longo de oito anos, viajou pelos lugares ainda preservados do planeta. Até aqui só tinha fotografado uma única espécie: os humanos. Quando passou a fotografar animais, percebeu que era também essencial um pacto de respeito mútuo. No filme, vê-se a espera de Salgado, no Ártico, numa espécie de contentor de vigia, a aguardar que um urso branco lhe permita a passagem para uma comunidade de morsas. Ou, relata nesse livro, a vez em que levou um dia para se aproximar, nos Galápagos, de uma ancestral tartaruga de 200 quilos, que, quem sabe, até se cruzou com o próprio Darwin, na viagem do navio Beagle… De cada vez que se aproximava da tartaruga, ela afastava-se, não conseguia fotografá-la. Fez como com os humanos, nunca chegar de surpresa, ou incógnito; teria de travar também conhecimento com o monumental réptil: «Fiquei agachado e comecei a andar à mesma altura que ela, mãos e joelhos no chão. A tartaruga parou de fugir. Quando se deteve, fiz um movimento para trás, ela avançou na minha direção e dei eu mais uns passos atrás» o tempo necessário «para a fazer entender que respeitava o seu território». Em Génesis (ver caixa), Salgado não se comportou como zoólogo ou jornalista. Queria homenagear o planeta, constatar que, apesar de tudo, ele ainda está vivo. E a ideia surgiu após décadas a fotografar a crueldade e a loucura feroz mais extrema da humanidade, as catástrofes desnaturais, os 150 quilómetros de mortos no Ruanda, os campos de refugiados e fome em África, as atrocidades inimagináveis nos Balcãs. Voltou doente, nunca acreditou que pudesse reaparecer tanto ódio étnico e tamanha brutalidade na Europa, depois dos massacres e genocídios que presenciou em África.
Foto: Sebastião Salgado
Regressou à terra. Há sempre um regresso à terra. À sua terra de infância, onde dantes havia mata Atlântica que cobria metade do vale (o tal que era do tamanho de Portugal). A desflorestação descontrolada tornou-a feia, pobre, desolada. Ele e Lélia, sua mulher e sócia de sempre, criaram o Instituto Terra, projeto ambiental para repor o ecossistema, já com dois milhões de árvores plantadas. Foi daí que partiu a ideia de fotografar árvores, seixos, aves, os olhos dos gorilas, a mão de uma iguana como a de um soldado numa armadura medieval, as rugas de uma tartaruga do tempo de Darwin. Quase como se, ao fazer este outro trilho no seu percurso de fotógrafo, precisasse de uma desintoxicação, de uma limpeza por dentro. Encher-se de beleza, esperança e confiança depois de ter testemunhado tanta agrura, carência de quase tudo, mas também muita dignidade em sítios e circunstâncias onde ela se julgara impossível.
Uma forma de escrita universal Desde muito cedo, enquanto estudante de Direito (depois acabou por se doutorar em Economia), apercebeu-se de que o mundo está dividido em dois: «De um lado a liberdade para aqueles que têm tudo e do outro uma privação de tudo para aqueles que não têm nada».
A aproximação à «fotografia social» aconteceu-lhe como um prolongamento do seu envolvimento político e das suas origens. O que os escritores relatam com a caneta, ele retrata com as câmaras. Para ele, a fotografia é uma forma de escrita, talvez a mais universal, como a utopia do esperanto concretizada. Com a vantagem de poder ser lida em qualquer lado, sem tradução. O preto e branco é uma abstração, irreal: trata-se de reconstituir as suas emoções através das várias gamas de cinzento. Frações de segundo que contam a história de uma vida ou de um povo. «É uma paixão, porque amo a luz, mas também uma linguagem poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria ir a todos os locais onde a minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também a todos os locais onde houvesse injustiça social, para a descrever melhor».
O mais incrível é que um dos mais célebres e premiados fotógrafos do mundo pegou numa máquina fotográfica quase por acaso, e já adulto e casado. O pai queria-o fazendeiro ou estudante de Direito. Ingressou em Direito, acabou por terminar Economia. Eram os tempos do presidente Kubitschek, «o Brasil começava a despertar de um sono de 400 anos, tivemos a sensação de viver num país novo», e in teressava-lhe não a economia empresarial, mas a macroeconomia e as finanças públicas. O menino do interior vivia agora em São Paulo, onde integrava um grupo restrito de formação de altos quadros para fazer face às necessidades do país. Doutorou-se em Paris, já exilado, em fuga da ditadura militar pela sua militância ativista muito próxima dos partidos comunistas e de esquerda. Em Londres, arranjou um cargo internacional na Organização Internacional do Café. Começou a ganhar muito bem, o casal comprou um apartamento perto de Hyde Park, um magnífico carro desportivo. O trabalho de economista levava-o a África. Vinha de lá muito mais satisfeito com as suas fotografias do que com os relatórios económicos. Em África reencontrou-se com o Brasil que lhe estava interdito, e aos 29 anos desistiu da sua promissora carreira para se dedicar ao instável mundo da fotografia independente.
Foto: Sebastião Salgado
A importância de regressar Quando pegou pela primeira vez numa câmara, comprada pela mulher, estudante de arquitetura, teve de ler o manual de instruções para perceber como funcionava. O casal largou o apartamento, o carro, o salário e partiu para a zona do Níger, para as regiões onde as organizações internacionais combatiam a seca e a fome. Lélia estava grávida do primeiro de dois filhos Juliano, o corealizador do documentário. Foi duro, passaram por situações complicadas, «mas apaixonante, sentíamos que as nossas imagens podiam ser úteis». Ao fim de 40 incursões a África, em 30 anos, publicou o livro África (2007). Não lhe interessavam as paisagens, muito menos o foclore. Mas a fome, as migrações em massa. Sempre numa lógica de trabalho de longo prazo, em vez de saltitar de um tema para o outro. «A única forma de contar histórias é regressar ao mesmo local diversas vezes». Só os meses que passava com as pessoas, os percursos que palmilhava com elas, as noites em que dormia nos campos de refugiados, ou o acompanhamento a tempo inteiro do Movimento dos Sem Terra, davam coerência aos seus projetos. E é assim que procede há mais de 40 anos. Chegou a estar 18 meses no Mali, na Etiópia, no Chade, no Sudão. E as suas fotos são esmagadoras quando mostram vultos errantes nos campos onde se amontoavam 80 mil desterrados, ou a famosa imagem dos três bebés famélicos, envoltos, em que apenas pelos olhos opacos de um deles se pressente a morte. Os sete anos em que viajou pela América Latina parecem-lhe sete séculos: «Permitiu-me viajar através de culturas onde o tempo se desenrola ao ritmo do passado».
Por todo o seu percurso, por ter assistido de muito perto às gritantes injustiças sociais, por ter sido, também ele, um perseguido e exilado político, sente uma enorme alegria ao ver que os outrora torturados e presos, como Lula ou Dilma, estão agora no poder. Não se considera fotojornalista, nem ao serviço de uma militância. Rejeita a ideia de voyeurismo, apenas tem consciência do desequilíbrio mundial. «Todas as minhas fotos correspondem a momentos que vivi intensamente. Uma raiva dentro de mim levou-me àqueles locais». E não prega a objetividade: «Fotografo em função de mim mesmo e assumo-o». Geralmente fotografa as pessoas de frente, ninguém se furta às suas objetivas e tacitamente autorizam. Parte do seu trabalho prévio é dedicado a conhecer e falar com as gentes. «Nenhuma foto, por si só, pode mudar seja o que for na pobreza do mundo», admite no livro Da Minha Terra à Terra. Mas aliadas a textos e à ação das organizações humanitárias e ambientalistas, engrossa-se o vasto movimento de denúncia.
Cor. Brilho. Modernidade. Esta era a santa trindade da Imprensa da década de 1980, com as grandes revistas internacionais a apostarem milhões na reconversão para as páginas a cores.
Por isso, quando Sebastião Salgado explicou a Neil Burgess (que acabava de ser nomeado diretor da Magnum, em Londres, em 1986) que pretendia dedicar os anos seguintes a fotografar apenas a preto-e-branco as vidas de trabalhadores pobres e explorados em 42 locais do mundo, ele deitou as mãos à cabeça. Comercialmente, o projeto do fotógrafo brasileiro tinha tudo para ser um desastre.
Alguns meses mais tarde, Salgado telefonou-lhe contando que acabara de regressar do Brasil, onde decidira iniciar o projeto que daria origem ao livro Trabalho. Agora, dizia, precisava que a Magnum vendesse algumas dessas fotografias, para prosseguir para os 41 destinos que lhe faltavam.
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“Perguntaram quanto custava o trabalho e eu pedi o dobro do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’”
No escritório da Magnum foi entregue uma caixa com 40 fotografias impressas em 24 x 30 cm, e Burgess ficou deslumbrado, como veio a contar, em 2019, ao British Journal of Photography. Ligou para Salgado, que havia sugerido tentar a publicação na Granta, e disse-lhe que uma das grandes revistas iria comprar a reportagem. Ele achava improvável porque a serra Pelada já tinha sido fotografada por outros, incluindo pelo correspondente da Magnum no Brasil, Miguel Rio Branco. Mas todos fizeram fotos a cores, passando apenas um dia ou dois a registar o espetáculo de 50 mil homens a procurar ouro na lama, no meio da Amazónia.
Salgado, por outro lado, fotografou a preto-e-branco e viveu quatro semanas com os “peões” num “barraco”, acompanhou todas as fases daquele trabalho colossal, ouviu-os falar dos seus sonhos e dos monstros que os atormentavam.
Essa imersão nos assuntos retratados foi sempre condição essencial para o trabalho do brasileiro, mesmo quando fotografava para as agências de notícias (e a cores), em que iniciou a sua carreira, no final da década de 1970. Em 1983, durante a grande vaga de fome na Etiópia, por exemplo, fixou-se num campo de subnutridos e criticava os jornalistas que mal contactavam com a realidade que pretendiam retratar – viu 34 equipas de reportagem a chegarem e a partirem durante os dez dias em que ali permaneceu.
“A paciência e a concentração necessárias para permanecer num só lugar, para tentar ver além das primeiras impressões, para se forçar a olhar para um assunto de maneiras diferentes, sob diferentes luzes, e depois voltar e olhar novamente, é algo essencial”, considera o ex-diretor da Magnum, que, uma hora depois de receber as fotografias de Salgado, estava a entrar no gabinete do editor de arte do Sunday Times.
Michael Rand, um homem pioneiro na introdução da cor nos suplementos de fim de semana, seria, talvez, o pior interlocutor possível para a venda de um portefólio a preto-e-branco, e Neil Burgess não havia revelado nada sobre o trabalho que iria apresentar, temendo que Rand nem sequer aceitasse vê-lo.
Durante uns instantes, depois de dispor sobre a mesa algumas das fotografias da corrida ao ouro no Brasil, instalou-se um silêncio incómodo na sala e Burgess temeu o pior. Mas, quando olhou para o rosto de Michael Rand, percebeu que era “um silêncio bom”, quase reverencial. Poucas foram as vezes que ele sentiu nos editores internacionais esse respeito que se mistura com o encantamento, como uma espécie de feitiço que conduz à rendição total. “Perguntaram quanto custava e eu pedi o dobro do preço do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’.”
A reação foi semelhante na revista do New York Times, quando o editor de fotografia, Peter Howe, mostrou as fotos de Salgado à direção do jornal. “Em toda a minha carreira, nunca vi os diretores reagirem a um trabalho daquela forma”, escreveu Howe, no mês passado, a propósito da nova edição em livro desta reportagem, com a chancela da Taschen.
Na manhã seguinte à publicação, os telefones da Magnum não paravam. Editores de todo o mundo queriam comprar as fotografias e, a partir de então, Sebastião Salgado teve financiamento garantido para percorrer o mundo e ir publicando, reportagem a reportagem, o portefólio que, anos depois, seria agregado na obra Trabalho.
O retrato da escravidão a que aqueles homens se sujeitavam viria a garantir a sua liberdade como autor. Quem viu as fotografias do formigueiro de homens cobertos de lama naquela mina de ouro nunca mais esqueceu o nome de quem estava atrás da câmara.
Salgado também guardou para sempre o que sentiu na serra Pelada. “Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho”, escreveu na introdução de Trabalho.
“Só se ouvia o rumor humano, murmúrios e gritos silenciados e o ruído de pás e enxadas impulsadas por mãos humanas, nenhum som de máquina.” Num local onde estavam proibidas as armas de fogo, o álcool e as mulheres, “havia uma indizível necessidade de tudo, de afeto, de calor humano. Havia um perigo constante e uma vida sem consolo. Escravos da ilusão, revolvendo a terra”.
Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho
Sebastião salgado
Só permanecendo e conquistando a confiança dos homens que Salgado pretendia retratar foi possível fixar em película a esperança e a violência latentes naquela cratera com contornos irreais, de outro mundo ou de outros tempos.
Só assim foi possível ver além da lama que cobria aqueles milhares de corpos e conhecer histórias únicas, como a do dirigente sindical que liderava a ala dos mineiros homossexuais. “Era um valente, respeitado por todos, e sonhava encontrar ouro e ir para Paris”, recorda Salgado. O seu grande sonho era pôr seios de silicone. “Ninguém, como os franceses, para este tipo de operação. Os de Paris são os seios mais lindos do mundo”, dizia.
Provavelmente este mineiro nunca terá saído do Pará, como a grande maioria dos “peões” que ali perdeu anos de vida a correr atrás de uma miragem. A serra Pelada “secou” pouco tempo depois, e desses tempos restam apenas as lendas sobre pepitas do tamanho de couves – e as imagens que Salgado nos deu.
Dois livros e uma exposição
Sebastião Salgado voltou a olhar para os 400 rolos fotográficos que trouxe da serra Pelada, em 1987, para selecionar as 300 imagens (31 das quais inéditas) que integram o novo livro Gold, publicado, em novembro de 2019, pela Taschen, em três versões: uma para o público em geral (€50) e outras duas para colecionadores. A edição XXL custa €800 e cada livro está numerado e assinado pelo autor; a Art Edition, numa caixa em tons de terra, com uma fotografia impressa assinada pelo fotógrafo, custava 5000€ (já está esgotada). Editado em várias línguas, o livro tem uma edição trilingue (português, italiano e espanhol), com um texto de enquadramento do jornalista Alan Riding, antigo correspondente internacional do New York Times.
Em simultâneo, foi também criada uma exposição com 56 imagens inéditas, inaugurada em São Paulo, no Brasil, não havendo ainda informação sobre a sua passagem por Portugal, embora existam já datas para a sua apresentação em Londres, Talin e Estocolmo.
Sebastião Salgado formou-se em Economia, mas a paixão pela fotografia levou-o a arriscar uma carreira como fotojornalista, em 1973. Trabalhou para as agências Sigma e Gamma e, em 1979, passou a integrar a Magnum. Queria conhecer e dar a conhecer o mundo, compreender as motivações dos homens, documentar uma sociedade em mudança – e foi isso que fez nos últimos 40 anos. Depois de Trabalho, iniciado com as fotografias na serra Pelada, dedicou vários anos aos livros Terra, Êxodos, África e Génesis, entre outros projetos-causa. Da militância fotográfica passou à militância efetiva, em 1998, ao fundar o Instituto Terra (com a mulher, Lélia Wanick Salgado), promovendo a educação ambiental e a recuperação da mata atlântica e das florestas da Amazónia. Venceu o World Press Photo e o Prémio Príncipe das Astúrias, entre dezenas de distinções, e, em 2017, passou a ocupar a cadeira nº 1 das quatro existentes para fotógrafos na Academia de Belas-Artes de França. Tem 75 anos e, apesar de ter casa em Minas Gerais e em Paris, vive quase sempre em viagem.
“Temos a certeza que nenhum dos nossos associados esteve presente nessas referidas manifestações espontâneas”, diz à VISÃO Bruno Gonçalves, da associação Letras Nómadas, uma das associações de ciganos visadas nas declarações de André Ventura que, em reação à investigação de que está a ser alvo por alegadas declarações xenófobas contra esta comunidade, apontou o dedo às organizações que, em seu entender, não repudiaram atos de violência de que diz ter sido alvo durante a campanha das legislativas.
Bruno Gonçalves assegura que as associações que representam os ciganos em Portugal se demarcaram desses protestos. Para o provar, mostra uma notícia publicada no Expresso, no dia 10 de maio. O título é: “Associações de ciganos processam Ventura pelo ‘discurso de ódio’, mas dizem que manifestações contra o Chega são espontâneas’”.
Nesse texto, Gonçalves afirmava que os protestos “não têm nada a ver com as associações”, mas são “legítimos, porque as comunidades estão muito cansadas”. E defendia que esses protestos só ajudariam Ventura. “Fazer manifestações ainda lhe dá mais votos, porque adora vitimizar-se”, afirmava Bruno Gonçalves ao Expresso, anunciando ter avançado com queixas-crime no Ministério Público por mensagens “de teor racista” e a “incitamento ao ódio” que o líder do Chega publicou nas redes sociais. “Vamos usar os instrumentos do Estado de direito, em que todo o prevaricador tem de ser alvo da justiça”, declarava.
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O dirigente associativo diz agora à VISÃO que as queixas foram entregues no dia 17 de abril, muito antes dos protestos em que Ventura foi alvo de alegados ataques por parte de membros da comunidade cigana.
Mais uma vez, Bruno Gonçalves repudia as generalizações. “Durante uma entrevista conduzida por José Alberto Carvalho, ao ser confrontado com os casos do Chega, André Ventura respondeu com uma pergunta: ‘Se o José Alberto Carvalho for roubar um carro, é a TVI a responsável?’, insinuando assim, que o partido não se pode responsabilizar pelos seus militantes ou deputados. Da mesma forma, estas associações ciganas, não podem ser responsabilizadas pelos comportamentos de alguns cidadãos ciganos…”, argumenta.
Bruno Gonçalves diz estar apreensivo com o aumento de casos de ataques verbais e agressões a ciganos depois do resultado eleitoral que reforçou a representação parlamentar do Chega. “Estamos muito preocupados. Há já vários relatos. Há uma desumanização total dos ciganos”, critica, notando que, ao contrário do que afirma o dirigente do Chega, a comunidade cigana está longe de ser privilegiada em Portugal. “Em média, os ciganos vivem menos 12 anos do que a generalidade dos portugueses. Isso tem que ver com vários fatores, entre eles a iliteracia, a falta de acesso a educação e saúde. São problemas que em 500 anos não conseguimos resolver”.
Queriam eliminar-me a mim e à minha família”, diz Ventura
Na sequência da abertura do inquérito por parte do Ministério Público, André Ventura deu uma conferência de imprensa para anunciar que irá apresentar à Justiça as ameaças que recebeu.
Ventura afirma ter sido “ameaçado de norte a sul” durante a campanha eleitoral, tendo mesmo sido alvo de lançamentos de material pirotécnico, que “passaram a centímetros” do deputado. “Queriam eliminar-me a mim e à minha família”, acusou.
Esta quarta-feira, em entrevista à TVI/CNN, André Ventura voltou a visar os ciganos. “Não quero tirar direitos a ninguém. Quero é que todos cumpram os mesmos deveres que têm que ser cumpridos em Portugal. Não quero que ninguém tenha privilégios por ser cigano: não tem que ter casa por ser cigano; não tem que ter um regime especial na justiça e poder casar com 13 anos por ser cigano”, disse.
Ciganos sem regime especial
Como concluiu o jornal Polígrafo, não é verdade que os ciganos tenham algum regime jurídico especial que lhes permita casar antes da idade legal. De resto, a comunidade cigana não recebe nenhum apoio específico, acendendo a apoios sociais, como o RSI, de acordo com a condição de recursos, como qualquer outro português. Segundo dados de 2019, apenas 3,8% dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção eram de origem cigana.
Para contribuir para a ideia de que os ciganos são privilegiados, o Chega tem feito eco nas redes sociais de um projeto em Amarante de habitação para ciganos que viviam em barracas, aprovado em 2025. Apesar de haver programas específicos para albergar comunidades ciganas em zonas em que estavam a viver sem condições mínimas de habitabilidade, na generalidade dos bairros sociais em que vivem os ciganos acedem às habitações seguindo o mesmo procedimento que outros portugueses que se candidatam a receber essas casas.