Quem nos segue sabe que já fizemos muitas viagens longas em veículos 100% elétricos. Por exemplo, em 2016, atravessámos o país de norte a sul, numa viagem pioneira de cerca de 700 km entre a fronteira com Espanha, em Valença, e a fronteira com o Atlântico, em Albufeira. Na altura, foram necessárias mais de 10 horas para fazer o percurso e até tivemos de recorrer a um posto de carregamento rápido privado, instalado no CEiiA em Matosinhos, por falta de infraestrutura de carregamento pública que permitisse realizar a viagem em tempo útil. Seis anos depois, a realidade é muito diferente. A rede pública gerida pela Mobi.E aumentou de forma quase exponencial, surgiram postos mais rápidos e a autonomia média dos carros duplicou. Em 2016, usámos um Nissan Leaf com bateria de 30 kWh de capacidade e potência de carregamento máxima de 50 kW. Para esta experiência, usámos um Nissan Ariya que, mesmo na versão com bateria mais pequena, tem 63 kWh de capacidade e potência de carregamento máxima superior a 100 kW.
Planeamento zero
Como referido, desde 2016 foram muitos os testes de viagens longas em 100% elétricos. Mas foram sempre feitas com algum estudo prévio, nomeadamente identificando os postos de carregamento disponíveis ao longo do percurso e no destino. Para quem, como o autor deste artigo, usa um carro 100% elétrico no dia-a-dia, já se tornou hábito, por exemplo, escolher hotéis que incluam postos de carregamento ou, pelo menos, que permitam o acesso uma tomada elétrica comum.
Mas desta vez quisemos fazer diferente: uma viagem sem qualquer planeamento e para uma das zonas do país com menos postos públicos, a Serra do Gerês. No fundo, simular o que normalmente se passa com um carro com motor térmico. E para garantir a não manipulação, nem que fosse subjetiva, do condutor e autor deste texto, as decisões relativas à viagem foram entregues aos outros três passageiros, neste caso passageiras. A ideia base foi simples: foram as passageiras que decidiram onde iríamos ficar hospedados (sem perguntas sobre carregamentos), qual o percurso a fazer, normalmente usando o Waze para introduzir destinos e pontos de visita intermédios, e quando e onde parar (para as refeições, por exemplo). Ficou combinado que esta regra só seria quebrada se o nível da bateria atingisse um valor baixo ao ponto de colocar em risco a resto da viagem de férias. Situação em que o condutor interviria para procurar um posto de carregamento. Spoiler alert: nunca foi necessário quebrar a regra.
O corpo é quem mais ordena
A família optou pela plataforma Airbnb para escolher o local onde iríamos ficar hospedados, uma casa em pedra impecavelmente recuperada e renovada num sítio chamado Cela, junto ao rio Cávado (cerca de 10 km a norte de Vieira do Minho). Saímos da zona de Oeiras, quarta-feira ao final da tarde, para a viagem prevista de cerca de 400 km. Com a bateria a 88% porque o carro tinha sido usado durante o dia e foi ainda necessário ir buscar uma das passageiras antes da saída para norte. A primeira paragem foi feita na estação de serviço de Leiria, 1h23 depois da partida, com cerca de 144 km percorridos usando A9 e A1. Tentámos, sempre que possível, andar a 120 km/h em autoestrada, o que resultou num consumo médio elevado – lá está, uma condução despreocupada. Em termos de gestão de bateria, teria sido preferível carregar um pouco depois porque a previsão de autonomia ainda era de 88 km (30% de carga), e sabemos que a velocidade de carregamento do Ariya com bateria de 63 kWh é bem maior nos primeiros 30% (situação em que ultrapassa os 100 kW). Também sabíamos que uma paragem um pouco mais tarde evitaria termos de carregar uma segunda vez. Mas, seguindo a regra estabelecida, parámos quando as passageiras do banco de trás pediram para jantar e não quando seria preferível em termos de carregamento.
Naturalmente, colocámos o carro a carregar – todas as estações de serviço de A1 têm postos rápidos ou ultrarrápidos – e parámos o carregamento aos 83%, após 19 minutos em que a potência de carregamento andou à volta dos 70 kW. Poderíamos ter carregado mais tempo – o jantar demorou cerca de meia hora –, mas sabemos que a velocidade de carregamento baixa muito em percentagens de carga de bateria elevadas, o que aumentaria o custo do carregamento desproporcionalmente.

A segunda paragem, desta vez para visitas ao WC e hidratação, aconteceu na estação de serviço de Antuã, com a bateria a 31%, 272 km feitos e um tempo de viagem total de 3h10. Carregámos até 66% em 18 minutos – parámos de carregar quando as passageiras voltaram ao carro.

Chegámos ao destino com 15% de autonomia e um total de 417 km, depois de uma parte significativa do final da viagem ter sido feito em estradas de montanha a ritmo elevado. Verificámos que a casa tinha sido remodelada recentemente e que tinha várias tomadas elétricas de qualidade e bem protegidas, pelo que pedimos autorização para usá-las para carregar o carro durante a noite. Autorização dada e acordámos, no dia seguinte (quinta-feira) com 50% de autonomia (138 km previstos) e… infelizmente, muita chuva. A meteorologia foi a principal responsável por termos feito tantos quilómetros no total, já que o plano para as miniférias passava por muitos passeios a pé. Como tivemos muita chuva, optámos por um plano B, com muita estrada.
A primeira saída foi até Vieira do Minho para conhecer a vila e comprar provisões para fazer piqueniques durante o dia – tínhamos esperança que a chuva nos desse tréguas. O primeiro supermercado que encontrámos foi um LIDL, onde ‘demos de caras’ com um PCR (Posto de Carregamento Rápido). O único na zona, o que significa que foi mesmo uma questão de sorte. Carregámos de 43% a 85% em 38 minutos – o tempo que estivemos às compras.
Experiências sensoriais
Partimos para o primeiro dia de descoberta do Parque Natural da Serra do Gerês numa roadtrip cheia de descobertas. Fizemos muitos quilómetros em estradas de terra, naturalmente enlameadas devido à chuva, para visitar alguns dos miradouros e cascatas do lindíssimo parque natural. O que incluiu momentos épicos, com destaque para um encontro de primeiro grau com uma família de cavados garranos. Apesar de não termos usado um Ariya com tração integral, a maior altura ao solo de um SUV e as boas capacidades de tração permitiram-nos arriscar um pouco por estradões pouco recomendáveis. Uma vez mais, o Ariya demonstrou um grande nível de conforto nestas condições. Curiosamente, em Portela do Homem, o Waze recomendou-nos ir por Espanha para o nosso grande objetivo do dia: a aldeiaPitões das Júnias. Como usámos a opção “percurso mais curto” no Waze, o que é sempre um risco, acabámos por circular em estradas muito estreitas e em mau estado, mas muito cénicas. Na zona de fronteira, na reentrada em Portugal, usámos estradas não pavimentadas, lembrando os tempos dos contrabandistas. Passámos pelo menos umas duas horas sem ver um único carro, mas cruzamo-nos com muitas vacas e ovelhas, que várias vezes bloquearam-nos a estrada. O cenário, com mistura de nuvens, nevoeiro, chuva, mas também abertas, criava momentos de incrível beleza. Reforçada pelo silêncio quase total do nosso Ariya, que dava ainda mais vida aos muitos canais de água corrente e ao som dos pássaros.

Chegámos a Pitões das Júnias já depois das 17h para ver o que parecia ser enormes cobertores brancos a destaparem as serras. Uma aberta que nos permitiu conhecer alguns dos tesouros, com destaque para o incrível Mosteiro de Santa Maria das Júnias.
Já quando planeávamos o regresso ‘a casa’, passando por Viera do Minho para jantar, eis que, talvez porque os nossos sentidos estavam mais alerta depois de horas na montanha livres de ruído e fumos de escape, sentimos o cheiro a pão fresco. E foi, literalmente, através do olfato que encontrámos um outro tesouro em Pitões das Júnias, a Padaria Pitões. Fomos efusivamente recebidos por Gervásio, um Burro de Miranda, espécie protegida, que do outro lado da estreita estrada (e do muro) não perdia de vista a dona, que nos atendeu na padaria. “Faz muito barulho, mas não faz mal a ninguém”, assegurou-nos enquanto nos recomendava um pão de centeio e uma rosca de canela que… bem, é preciso provar para acreditar. De tal modo que, uns 15 minutos depois, estávamos de volta para pedir reforço.
Pitões das Júnias já tem carregador
Já a sair de Pitões das Júnias deparamo-nos com um Posto de Carregamento Normal (PCN) e percebemos que até poderíamos ter deixado o carro à carga enquanto visitámos a aldeia. Mas, lá está, a falta de planeamento (propositado) impediu-nos de aproveitar este recurso. O que não fez falta, já que a bateria deu perfeitamente para o primeiro dia de aventura (mais de 170 km entre montes e vales).
Nos dias seguintes, sexta e sábado, fizemos ainda mais quilómetros, já que a chuva continuou durante boa parte dos dias. São Bento da Porta Aberta, Covide, Terras do Bouro, Viana do Castelo, Ponte de Lima, Ponte da Barca, Barga, Guimarães, Arcos de Vadevez, Cabril, Sistelo, Lindoso… Apenas algumas das localidades que visitámos de carro. Além dos carregamentos noturnos, só fizemos um carregamento de ocasião em Braga, num PCR enquanto almoçávamos. Não foi preciso outro carregamento durante as viagens de sexta e sábado. Na componente de descoberta, destaque para Mixões da Serra, uma aldeia que só visitámos porque seguimos, quase cegamente, os percursos mais curtos do Waze. O que nos levou a atravessar a serra por, uma vez mais, caminhos pouco recomendáveis, mas incrivelmente belos.
O regresso
Tudo o que é bom acaba depressa e chegamos a domingo, o dia de regresso a Oeiras. Partimos com bateria quase a 100%, resultado do carregamento durante a noite usando uma tomada normal. Mas continuámos em modo turístico, com um percurso sinuoso, que incluiu passagens pelos rios Tâmega, Douro e Paiva. Antes, passámos por Penafiel, para comprar ‘comes e bebes’ para fazermos piquenique durante a viagem de regresso. Uma vez mais optámos pelo LIDL, onde carregámos durante 22 minutos dos 64 aos 91%. Não era necessário, é verdade, mas a regra foi seguida e foi mais um carregamento de ocasião. Seguimos para a Arouca para conhecer a famosa ponte suspensa e, como o dia estava quente, fomos banhos numa praia fluvial que encontrássemos no caminho. Depois da praia fluvial, a ideia era seguir diretamente para casa, mas, ao passarmos no centro da vila de Arouca, fomos atraídos por uma pequena feira no jardim central. Ao procurar estacionamento nas redondezas, eis que damos com um posto de carregamento rápido. Uma vez mais, sem qualquer planeamento. E foi neste posto que tivemos o primeiro problema: o ecrã estava ilegível porque era difícil seguir instruções. Mas tentámos via app, a Miio neste caso, e carregámos dos 62 aos 96%. Uma vez mais, um carregamento de oportunidade.

Chegados à autoestrada, voltámos a colocar o cruise control a 120 km/h e percebemos que, provavelmente, seria preciso parar para carregar mais uma vez. Mas como as passageiras não pediram, fomos adiando. Até que a vontade de ir ao WC apertou e lá pediram para parar na estação de serviço de Aveiras. Naturalmente, queríamos aproveitar para fazer mais um carregamento de ocasião de alguns minutos. E o Posto Carregamento Ultrarrápido (PCUR) até estava disponível… Mas estava desativado e o PCR ao lado estava ocupado. Mas, mantivemos a regra de não nos deixarmos afetar pelas necessidades de carregamento se seguimos viagem, cientes que, provavelmente, teríamos de fazer uma paragem mais próximo de Lisboa. Mas a verdade é que não foi necessário e chegámos a casa com 6% de bateria e 22 km de autonomia prevista – que sabemos ser bem mais devido ao valor residual de segurança.
Experiência (muito) positiva
Fizemos mais de 1500 km numas miniférias ao volante de um Nissan Ariya com bateria de 63 kWh. Usando apenas carregamentos de ocasião, sem planeamento e sem nunca termos esperado por carregamentos. E com a maioria dos quilómetros feitos numa zona do país especialmente pobre em termos de carregadores públicos. Isto significa que podemos andar de 100% elétrico por todo o país sem qualquer preocupação com autonomia e carregamentos? Claro que não. Estamos cientes que tivemos sorte. Bastaria que tivéssemos escolhido um local onde ficar sem possibilidade de carregar durante a noite para tudo ser diferente. Mas também é verdade que esta experiência prova que, atualmente, usando um carro elétrico recente, já se pode ir a todo o lado do país num elétrico. Mesmo que isso signifique fazer o que não fizemos, mas recomendamos: planear a viagem.