É fácil ceder à tentação de chamar biopic (biographical picture) a este A Complete Unknown, até porque os filmes biográficos de grandes figuras da música têm sido uma tendência recente (Freddie Mercury, Elton John, Elvis…). Mas é preciso dar ouvidos ao realizador James Mangold, que já em 2005 tinha assinado um filme sobre a vida de um nome grande da música norte-americana: Walk the Line, em que Joaquin Phoenix interpretava o papel de Johnny Cash. E diz Mangold à revista francesa Les Inrockuptibles: “Nunca encarei este meu filme como um biopic, que me parece uma expressão redutora, muito cara aos críticos e ao campo académico, mas pouco respeitadora das naturezas, por vezes muito diferentes, dos filmes que são assim designados.”
Não lhe chamemos, pois, biopic, mas desde as primeiras imagens sabemos que estamos perante um filme que nos quer contar uma história, de uma forma bastante clássica. E essa história é a de Bob Dylan, acabado de chegar do seu Minnesota a uma Nova Iorque invernal com um estojo de guitarra na mão e o ar tímido, introspetivo, de quem tem dificuldade em encarar diretamente os seus interlocutores. A narrativa seguirá por ordem cronológica, sem que Mangold sinta necessidade de experimentalismos e abordagens menos convencionais. O jovem ator francês Timothée Chamalet, nascido em 1995, compõe um retrato muito convincente desse outro jovem norte-americano no início da década de 60, de cabelos desgrenhados, à la Rimbaud, acabado de chegar à grande cidade.
No dossier de imprensa de A Complete Unknown, Chamalet resume assim este trabalho para o qual se preparou durante cinco anos: “Podem fazer-se dois tipos de filmes sobre Bob Dylan: um estudo comportamental sobre um tipo suspeito que não consegue olhar as pessoas olhos nos olhos ou uma espécie de panegírico sobre os seus grandes sucessos, o que mascara o facto de que a sua carreira também atravessou momentos tempestuosos. James [Mangold] conseguiu encontrar uma brecha entre a homenagem e a desmistificação.”
Ao ator que interpreta Dylan coube a mais árdua tarefa nesse projeto, sobretudo depois de decidir interpretar ele próprio várias canções do autor de Blowin’ in the Wind, imitando a sua carismática voz nasalada (e também é a atriz Monica Barbaro que interpreta as canções da personagem a que dá corpo: Joan Baez, com uma voz não menos carismática e reconhecível do que a de Dylan).
Se é verdade que a ordem cronológica nos vai guiando por esses anos em que, rapidamente, Bob Dylan conquistou o público norte-americano com as suas inspiradas canções folk, interpretadas em pequenos bares e clubes do bairro nova-iorquino Greenwich Village, há que estar consciente de que o realizador não se preocupou em ser absolutamente factual, como se estivesse a compor um documentário.
Essa liberdade nota-se logo no arranque do filme. Vemos Dylan chegar a Nova Iorque, com ar de aventureiro solitário meio perdido, e indagar onde fica o hospital em que está internado Woody Guthrie, dirigindo-se imediatamente para lá, de noite, num táxi que não podia pagar.
Esse encontro aconteceu, de facto, mas não foi exatamente assim, nem ocorreu logo após a chegada de Dylan a Nova Iorque. Guthrie morreria em 1967, aos 55 anos, com a doença de Huntington que nos últimos anos o afetou profundamente, dificultando-lhe os movimentos e a fala. Mangold põe Dylan no quarto de hospital cantando para Woody Guthrie (interpretado por Scoot McNairy) e a referência da folk/country Pete Seeger (interpretado por Edward Norton, nomeado para o Oscar de Melhor Ator Secundário por este papel).
O filme coloca a figura de Woody Guthrie no lugar certo, de referência total para a chegada de Bob Dylan ao mundo das canções. Vale a pena recordar o que sobre Woody escreveu o músico no seu livro Crónicas, Vol. 1, em 2004 (12 anos antes de ganhar o Nobel da Literatura): “Uma coisa é certa, Woody Guthrie nunca me tinha visto ou ouvido falar de mim, mas parecia estar a dizer, ‘hei de ir-me embora, mas deixo esta tarefa nas tuas mãos, sei que posso contar contigo’.”
A metamorfose elétrica
Qualquer filme que nos chegue dos EUA neste momento, sobre qualquer época, presta-se a leituras sobre o tempo presente e os ares que sopram desse lado do Atlântico. Se O Brutalista, agora nas salas de cinema e um dos grandes favoritos na corrida aos Oscars, nos obriga a uma reflexão sobre os desafios da imigração, em tempo de ameaças e deportações, A Complete Unknown talvez nos mostre, embalados pela letra de The Times They Are A’Changin’, que os tempos não mudaram assim tanto e é fácil que canções antigas (como Masters of War, de 1963) ecoem no tempo presente. Ou seja: podemos sentir nas mais antigas canções de Dylan o que Dylan sentiu cantando as letras ainda mais antigas de Woody Guthrie, em batalhas que se perpetuam.
Outras batalhas podem parecer-nos, hoje, anacrónicas. Boa parte da tensão/conflito e clímax do guião deste filme vem da célebre e então polémica viragem de Bob Dylan, passando de estrela folk, sozinho em palco com as suas canções e uma guitarra acústica, para um rebelde rocker com uma banda de guitarras elétricas, baixo e bateria. O que hoje nos pode parecer risível (porque não vislumbramos uma muralha assim tão sólida entre folk e rock), na primeira metade da década de 60 era quase uma questão de vida ou morte, com dois lados da barricada bem definidos.
Mangold investe bastante na dupla Pete Seeger e Alan Lomax, diretor do festival de folk em Newport, como elementos apavorados com a hipótese de Dylan, novo herói da folk, subir ao palco desse festival destruindo a sua pureza com o “ruído” de instrumentos elétricos (como acabou por acontecer). Por outro lado, mostra-nos um rebelde Johnny Cash (Boyd Holbrook) a dar todo o apoio a Dylan nessa metamorfose. Essa história surge bem contada no livro publicado em 2015 Dylan Goes Electric!: Newport, Seeger, Dylan, and the Night That Split the Sixties, de Elijah Wald, que está na base do guião deste A Complete Unknown.
Entre todas as personagens importantes do filme, só uma tem um nome fictício, por sugestão/pedido do próprio Bob Dylan. A sua primeira companheira e musa em Nova Iorque, Suze Rotolo, surge em A Complete Unknown como Sylvie Russo (personagem interpretada por Elle Fanning) porque, segundo Dylan, é a única, nesta história, que nunca se tornou uma celebridade, era uma pessoa real, sem uma persona pública, que aqui devia ser protegida.
Quem tem, claro, um papel de protagonista quando se aborda a vida de Dylan nestes escaldantes anos 60 é Joan Baez (interpretada por Monica Barbaro), que, quando já era uma voz reconhecida e célebre na música folk norte-americana, se sentiu magneticamente atraída por este jovem tímido chegado do Minnesota para conquistar o mundo a partir das caves de Greenwich Village. As suas vozes soaram muitas vezes juntas, lado a lado, em vários palcos, chegaram a ser vistos como uma dupla, mas parecia inevitável que cada um seguiria o seu caminho…
O filme/documentário Joan Baez, I Am a Noise (que ainda está em exibição esta semana nas salas de cinema portuguesas) dá algumas respostas a questões que podem parecer suspensas em A Complete Unknown. Baez conta como ficou entusiasmada e intensamente apaixonada pelo talento de Bob Dylan e não hesita em dizer que, depois, o músico a deixou de coração partido. Fala especificamente da digressão que ambos fizeram a Inglaterra, quando viu que Bob Dylan, já uma celebridade, se afastava para um mundo só seu, misterioso, influenciado por drogas ou apenas pelo duro embate do seu lado introspetivo com o mundo a seus pés. Talvez esse Dylan enigmático, aí anunciado, de olhos escondidos e fugidios, seja o mais real de todos. E talvez nos escape para sempre.
Excerto do texto publicado na edição da VISÃO desta semana
As oito nomeações para os Oscars de A Complete Unknown
Melhor Filme
Melhor Realização (James Mangold)
Melhor Ator Principal (Timothée Chalamet)
Melhor Ator Secundário (Edward Norton)
Melhor Atriz Secundária (Monica Barbaro)
Melhor Argumento Adaptado
Melhor Som
Melhor Guarda-Roupa