Neste ano da graça de 2024 d.C. tivemos a estreia da milionária superprodução Megalópolis, filme há muito sonhado por Francis Ford Coppola, e agora a chegada do blockbuster de Ridley Scott Gladiador II (estreia-se nesta quinta, 14, em Portugal).
O primeiro escolhia o imaginário, o contexto e rituais do Império Romano como metáfora para uma distopia futurista, com Nova Iorque a transformar-se em Nova Roma. Gladiador II é mais uma declinação, com todo o potencial tecnológico disponível hoje (há, mesmo, uma versão para as salas IMAX), do fascínio pelas histórias sobre os gladiadores, com uma obediência rigorosa às regras dos filmes made in USA que pretendem arrecadar milhões de dólares em todo o mundo.
De onde vem este encanto, sempre renovado, da nossa civilização por acontecimentos e histórias que se passaram há mais de dois mil anos? Porque é que o império da Roma Antiga nos atrai tanto, ao ponto de, em mais de um século de história do cinema, os filmes sobre gladiadores serem praticamente um subgénero cinematográfico (dentro dos filmes épicos históricos)?
Parte da resposta a estas perguntas talvez seja dada neste novo filme de Ridley Scott, quando a personagem Macrinus (num excelente desempenho de Denzel Washington) diz algo como “a violência é uma linguagem universal”. Macrinus parece ser, de início, uma espécie de Jorge Mendes (o influente empresário de futebol) do mundo de negócios dos gladiadores, mas vai-se revelando uma personagem de ambição desmedida, chegando à batalha final, clímax do filme, contra o (super) herói Hanno (Paul Mescal). Explica Macrinus que escolhe os seus melhores gladiadores baseado em três critérios: potencial de entretenimento, força bruta e raiva acumulada.
As plateias do século XXI, afinal, continuam a seguir, com entusiasmo, o que se passa na arena do Coliseu: combates sangrentos, luta pela sobrevivência, superação dos mais fracos contra os mais fortes, heroísmo e sacrifício. No fundo, somos os mesmos Homo sapiens sapiens de há dois mil anos… A grande diferença – e é mesmo muito grande – é que hoje já não lançamos humanos aos leões para gáudio da multidão de espectadores ululantes; civilizadamente, encenamos essas narrativas de violência extrema em salas de espetáculos. E Ridley Scott caprichou nessa enc5/enação. Obedecer ao rigor histórico desses espetáculos no Coliseu de Roma já é suficientemente impressionante, mas o realizador britânico de 86 anos acrescentou tubarões (que nunca existiram nas recriações de batalhas navais) e inventou um assustador guerreiro montado num enorme rinoceronte…
A queda dos impérios
Gladiador II remete para acontecimentos verdadeiros do Império Romano, mas criando uma trama ficcional, naturalmente cheia de liberdades. Tudo gira à volta de Hanno/Lucius, encaminhado para a concretização de uma missão, regressado às origens depois de viver com os “bárbaros” na Numídia (no Norte de África, correspondente à atual Argélia e parte da Tunísia, território que fez parte do império comandado por Roma).
Esse motor da narrativa é ficcional, e obedece à regra de ouro de qualquer épico histórico: dar ao espectador um herói com quem se pode identificar, em lutas impossíveis contra tudo e todos. Mas os irmãos imperadores Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger) foram personagens históricas reais, num período particularmente caótico e sanguinário da História da Roma Antiga (uma qualidade destes filmes é fazer-nos mergulhar, curiosos, nos episódios históricos verdadeiros e documentados). O general romano Marcus Acacius (interpretado pelo ator chileno Pedro Pascal) – que prepara um golpe contra os imperadores e está envolvido com Lucilla (Connie Nielsen), que foi realmente filha do imperador Marco Aurélio – é totalmente ficcionado.
O nosso fascínio pela era romana não virá só da violência e dos seus rituais de poder. Sabemos bem que muito lhe devemos, e ainda hoje os sinais do seu poder nos assaltam aqui e ali, num aqueduto, numa ponte, na beleza de cerâmicas que sobreviveram até aos nossos dias… Se a impressionante força do império que se espalhou por milhares de quilómetros consegue ainda arrebatar-nos, também somos seduzidos pela sua espetacular decadência e pelo seu final.
Num período em que é difícil encarar o futuro com otimismo e quando vemos uma luta de superpotências e uma rearrumação geoestratégica – com os EUA a darem sinais de decadência e uma progressiva afirmação da China no horizonte –, olhamos, talvez, com uma renovada curiosidade para quaisquer ecos das quedas de grandes impérios que pareciam indestrutíveis.
Gladiador II > De Ridley Scott, com Paul Mescal, Pedro Pascal, Denzel Washington, Connie Nielsen > 148 min.