É agosto, turistas e tuk-tuks sobem e descem as ruas movimentadas do Chiado, enchendo o ar de uma energia fervilhante. Porém, ao atravessar a porta da galeria da Brotéria, localizada no epicentro do reboliço, a calma e o silêncio apanham-nos de surpresa.
Num primeiro instante somos imobilizados pela escuridão inesperada. Aos poucos, é possível escrutinar uma quantidade infindável de cabos náuticos emaranhados no chão, uma ténue luz encarnada e baforadas de fumo. O ambiente recorda um cais abandonado às duas ou três da manhã, um lugar de todos e de ninguém, que intimida e fascina.
Há algo de magnético naquela visão de silêncio, na dúvida que se instala: “Podemos avançar? É seguro? É suposto?”. Inquietações que, de resto, ter-nos-ão assaltado noutras situações da vida. De repente, uma voz corta a escuridão. “Porque esperas ainda? Tanto nada”. A frase soa a convite e avançamos mais um pouco.
Passaram-se quase dez minutos e nem demos por eles. Continuamos à espera. Do quê? De mais uma frase, mais uma indicação, de nos sentirmos em paz no escuro, de ganharmos coragem para pisar as cordas no chão e entregarmo-nos às nossas próprias questões. À espera de conseguir fazer do silêncio e da escuridão um espaço de diálogo e luz internos.
A próxima pergunta não tarda em chegar. “Porque esperas o que já não tens?”. São oito, ao todo. Uma seleção muito curta se pensarmos que Samuel Silva, artista responsável pela exposição Rémiges Cansadas, escolheu-as a partir das mais de 40 perguntas que encontrou no poema-objeto País de Deus, escrito pelo monge poeta Daniel Faria, em 1991, e oferecido a um amigo como presente do primeiro passo deste para o sacerdócio.
Rémiges como as penas que orientam o voo dos pássaros. Cansadas como se sentiria qualquer um após um “voo” de cerca de cinco horas através de um poema com 40 metros, escrito em papel de caixa registadora, religiosamente enrolado dentro de um pote de barro, onde, em tempos, se encontravam também pequenos búzios.
Na segunda sala, uma escultura de chumbo suspensa, cuja forma insinua uma cóclea [osso do ouvido interno] recorda-nos o poder da escuta, evocando a forma dos búzios onde ouvimos o mar, mesmo que o mar não se encontre realmente lá dentro.
A escuta, ou que queremos escutar, está assim suspensa sobre o cabos náuticos que nos obrigam a abrandar, a escolher onde pôr os pés, desenrolando-se pelo chão como as palavras se desenrolam pelo ar. É talvez esta a forma do silêncio.
Não é a primeira vez que Samuel Silva dá corpo aos poemas de Daniel Faria. Há quatro anos que o trabalho do artista orbita em torno da obra do poeta. A primeira vez que Samuel foi atingido pelas palavras simples, mas que simultaneamente pareciam “granadas” de significado, conta, “aconteceu enquanto ouvia uma entrevista ao cardeal D. Tolentino de Mendonça”.
A partir daí, o amor às palavras do monge que, morrendo aos 28 anos, deixou uma poderosa obra poética, transformou-se, em 2021, nas instalações Escuto o Calcanhar do Pássaro, exposta na KubikGallery, no Porto, e Levitação, apresentada na Casa da Arquitetura de Matosinhos.
Este ano, a convite da Brotéria e do responsável pela Galeria, João Sarmento sj, Samuel realizou Rémiges Cansadas, com curadoria de Álvaro Moreira, aquela que pensa ser a última obra do ciclo de trabalho em torno de Daniel Faria, completando um tríptico pautado pela materialização da palavra escrita, através de uma exposição onde o silêncio e o convite à reflexão dominam o ambiente, tentando “resumir a ideia de condição humana, do ser humano e da sua circunstância”.
Rémiges Cansadas > Brotéria > R. de São Pedro de Alcântara, 3, Lisboa > até 7 set, seg-sáb 10h-18h > grátis